domingo, 24 de janeiro de 1993

Antes do Continente

          Antes de voltar-se exclusivamente para essa poesia belicosa, militante, que procura e prega uma forma social diferente para viver, antes de voltar-se para a dimensão religiosa que orientará sua vida a partir de 1957, ano em que decide pela vida religiosa, Ernesto Cardenal fez poemas de amor.

          Escritos entre 1952 e 1956, esses pequemos poemas fazem parte de Epigramas, publicado no México em 1961.
          Vivendo na clandestinidade quando Somoza domina a revolta de abril de 1954 que se levantara contra ele e, profundamente, integrado a seu povo e a seus valores, essa experiência estará presente nos versos de então, cuja matéria poética nada despreza desse cotidiano em que vive. Tudo é poesia. Tudo pode se tornar poesia, ele dirá.
          E, assim, é de um instante fugidio, passageiro, de um acontecer aparentemente muito simples e ingênuo que se fazem seus versos de amor.
          Ou para Claudia ou para Myriam ou para aquela que não foi nomeada, mas sempre mulher distante, inatingível devido a desencontros irreversíveis. Então, na estrutura lingüística clara, linear, transparente, se insere a imagem barroca, didática, sobre o passar irredutível do tempo, sobre a natureza que se renova, sobre os sentimentos mortos que jamais tornam a existir.
          Mas, sobretudo, o que prevalece no poeta é a confiança no porvir de seu verso (que o uso do advérbio “talvez” não consegue dissimular) que um dia será conhecido em toda a América Hispânica.
          Confiança ligada à convicção da importância de sua poesia amorosa na medida em que irá salvar a palavra, a linguagem de seu povo que foi distorcida pela ditadura. E, principalmente, porque os seus poemas irão sobreviver ao Ditador, essa terrível sombra a dominar o país que se mescla à poesia de Ernesto Cardenal, para fazer dela uma arma de combate ainda quando aspira ser expressão de amor.
          Mas, por vezes, o lirismo se sobrepõe e o poeta vive um momento em que só o amor importa.
Ao te perder, perdemos tu e eu: eu porque tu eras o que eu mais amava e tu porque eu era o que te amava mais. Mas de nós dois tu perdes mais do que eu: porque eu poderei amar a outras como te amava a ti mas a ti não te amarão como te amava eu.

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