domingo, 3 de janeiro de 1993

América, América

                                                   De tu nombre harán mención los
                                                   libros más allá de tus nietos.
                                                                        Miguel Otero Silva.
 
          Sua vontade e sua ação atravessaram os séculos. E seu nome é mencionado nos livros.
 
          Como regedor, chega Lope de Aguirre a Cuzco em 1536. Diante das pedras talhadas pelos Incas, entendeu que existia, realmente‚ um mundo novo deste lado do Atlântico; e despiu sua pele de conquistador para se reduzir ao ser humano que busca uma pátria e um abrigo.
 
          Passa a viver numa casa de pedra, por ele construída com uma índia e dela tem uma filha. Abandona as armas, depois de ter lutado pelo rei da Espanha em terras do Novo Mundo, para tornar-se comerciante honesto e cristão. E, comerciando andava quando foi acusado pela autoridade espanhola de Potosi de ter cometido uma infração. Os duzentos açoites que recebeu como castigo conduziram seus dias, a partir de então; por mais de três anos perseguiu, sem sossego, seu ofensor que para fugir à vingança, foi pedir abrigo na cidade de Cuzco. Fechado entre quatro protegidas paredes não eludiu, porém, o punhal de Lope de Aguirre.
 
          O orgulhoso espanhol não aceitara o castigo injusto - qual o espanhol que não sobrecarregava o dorso dos índios com pesadas cargas para somente ele ser disso acusado?, se perguntava. E tanto mais injusta era a pena quanto mais ele sabia que essa mão que o castigava era a mesma dos corregedores, dos juízes, dos alcaides, dos frades que despojavam os índios de todos os seus haveres, que deles judiavam, que os mutilavam, cortando-lhes o nariz e as mãos quando pediam piedade.
 
          Mas, ter dado morte a quem detinha o poder espanhol fez dele um perseguido. Como os outros sete mil que, rebeldes, vagavam pelas terras do Continente. Acreditando nas palavras dos que sucessivamente se arvoravam em chefes, negando-os, combatendo-os e, fracassados, errando em busca de um destino.
 
          Trabalhoso e cruel foi o de Lope de Aguirre. Um rosário, sem fim, de tristezas e sofrimentos físicos que Miguel Otero Silva no seu romance Lope de Aguirre, príncipe de la libertad (Barcelona, Seix Barral, 1979) acompanha passo a passo e que Eduardo Galeano em Memorias del fuego - Nacimientos, sintetiza em três breves textos.
 
          Opondo-se aos desmandos impunes e às barbaridades cometidas pelos conquistadores no Continente, ele foi uma ovelha negra nesse rebanho de falsas ovelhas.
 
          Acabou morto pelo poder espanhol que, uma a mais entre tantas vezes, restabeleceu a sua ordem.
 
          A cabeça rebelde de Lope de Aguirre foi exibida como advertência. Era o ano de 1561 e, bem ou mal, certo ou errado, os livros dizem que nela germinaram as primeiras idéias de liberdade para o Continente.
 
          Antes de morrer ele grita: Viva Lope de Aguirre, rebelde até a morte, príncipe da liberdade!
 
          Neste ano em que algumas Comemorações do IV Centenário do Descobrimento da América se intitulam "Encontro entre dois Mundos", sua figura de ser inteiro e lúcido apaixona pelo significado que pode adquirir nesse mundo de sangue e transgressões que foi o seu. E que ainda é, hoje, o do Continente.

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