domingo, 31 de janeiro de 1993

O encontro


Em 1979 foram publicadas duas Antologias de Ernesto Cardenal: Poesia de uso pela El Cid de Buenos Aires; e Antologia poética pela Salamandra do Rio de Janeiro, cuja seleção de poemas e tradução foram realizadas por Paulo de Carvalho Neto,  enriquecida por um prólogo assinado por Dom Pedro Casaldáliga, Bispo de São Félix do Araguaia.
Tem por título "Prólogo solidário" e é uma pequena e imensa declaração de fé nesse sonho de América Livre que o une ao poeta nicaragüense. Estamos de acordo contigo, Intérprete de nossa Hora e da Terra nossa, escreve Dom Pedro Casaldáliga, sensível e consciente conhecedor da terra em que lhe coube viver não ignorando quão parecida ela é com as demais terras do Continente cujos governos, quase sempre, foram usurpados direta ou indiretamente, por uma medíocre escória que tudo destrói para lucrar em nome de si mesma.
 
Por sua vez, no longo poema “Epístola a Monsenhor Casaldáliga”, Ernesto Cardenal fala desse Brasil oprimido e explorado, desse Bispo que nas distantes terras do Araguaia lê os seus Salmos e que um dia disse: a escravidão não é uma metáfora.
E, claramente, como em todos os seus versos, o poeta enumera os negócios escusos, os crimes, o genocídio sob cuja égide se abrigam as dicotomias, as luzinhas dos miseráveis ribeirinhos e, distante, o riso das luzes do Rio de Janeiro e de Brasília, o milagre brasileiro de um Hotel Hilton rodeado de favelas.
Designando sons, imagens e fauna e árvores e pobres homens miseráveis os topônimos Mato Grosso, Xingu, Rio de Janeiro, São Paulo são uma certeza sobre o universo a que se refere. E denunciando prisões, torturas e mortes, Ernesto Cardenal não elude o Brasil desse Continente que ele quer salvar.
Utopia que o irmana com Dom Pedro Casaldáliga, o Bispo de São Félix do Araguaia. Inimigos ambos das injustiças, ambos sustentados pela fé cristã e pelo amor dos deserdados.
Monsenhor, somos subversivos / número secreto de uma ficha de um arquivo quem sabe onde, / seguidores do proletário mal vestido e visionário, agitador, / Professional, executado por conspirar contra o Sistema, diz Ernesto Cardenal na “Epístola a Monsenhor Casaldáliga".
E o Bispo de São Félix do Araguaia termina o seu "Prólogo solidário" inspirando-se em versos de Ernesto Cardenal para dizer: Estamos olhando a lua (saturada de sangue mártir) / e as árvores da selva (queimadas e renascendo) / para saber quando haverá mudança de poder / E sabemos que nosso dever, como o teu, é nascer de novo. / Juntamente com a América Latina.
No Continente, "a Pátria Grande", suas vozes se levantaram e se encontraram.

domingo, 24 de janeiro de 1993

Antes do Continente

          Antes de voltar-se exclusivamente para essa poesia belicosa, militante, que procura e prega uma forma social diferente para viver, antes de voltar-se para a dimensão religiosa que orientará sua vida a partir de 1957, ano em que decide pela vida religiosa, Ernesto Cardenal fez poemas de amor.

          Escritos entre 1952 e 1956, esses pequemos poemas fazem parte de Epigramas, publicado no México em 1961.
          Vivendo na clandestinidade quando Somoza domina a revolta de abril de 1954 que se levantara contra ele e, profundamente, integrado a seu povo e a seus valores, essa experiência estará presente nos versos de então, cuja matéria poética nada despreza desse cotidiano em que vive. Tudo é poesia. Tudo pode se tornar poesia, ele dirá.
          E, assim, é de um instante fugidio, passageiro, de um acontecer aparentemente muito simples e ingênuo que se fazem seus versos de amor.
          Ou para Claudia ou para Myriam ou para aquela que não foi nomeada, mas sempre mulher distante, inatingível devido a desencontros irreversíveis. Então, na estrutura lingüística clara, linear, transparente, se insere a imagem barroca, didática, sobre o passar irredutível do tempo, sobre a natureza que se renova, sobre os sentimentos mortos que jamais tornam a existir.
          Mas, sobretudo, o que prevalece no poeta é a confiança no porvir de seu verso (que o uso do advérbio “talvez” não consegue dissimular) que um dia será conhecido em toda a América Hispânica.
          Confiança ligada à convicção da importância de sua poesia amorosa na medida em que irá salvar a palavra, a linguagem de seu povo que foi distorcida pela ditadura. E, principalmente, porque os seus poemas irão sobreviver ao Ditador, essa terrível sombra a dominar o país que se mescla à poesia de Ernesto Cardenal, para fazer dela uma arma de combate ainda quando aspira ser expressão de amor.
          Mas, por vezes, o lirismo se sobrepõe e o poeta vive um momento em que só o amor importa.
Ao te perder, perdemos tu e eu: eu porque tu eras o que eu mais amava e tu porque eu era o que te amava mais. Mas de nós dois tu perdes mais do que eu: porque eu poderei amar a outras como te amava a ti mas a ti não te amarão como te amava eu.

domingo, 17 de janeiro de 1993

Destino de mulher

          Perversas famílias, lançado em 1992, é o primeiro romance de uma anunciada trilogia, Um castelo no pampa. Seu  autor, o gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil, que entre o ano de 1976 e o ano passado,  publicou: A prole do corvo, Bacia das almas, Manhã transfigurada, As virtudes da casa, O homem amoroso, Cães da Província e Videiras de cristal.



          Apresentado pela Editora Movimento de Porto Alegre como um romance que resgata um outro Rio Grande e um outro Brasil, suas quatrocentas páginas tem por eixo narrativo uma abastada família do extremo sul do país. Revelando seus dramas, situando-a em exatos momentos econômicos e políticos do Rio Grande do Sul, Luiz Antonio de Assis Brasil, entrelaçando ficção e realidade, alcança a síntese sedutora que permite descobrir aspectos de um abrangente itinerário nacional através de uma sugestiva fabulação.

          Conduzindo uma narrativa de múltiplas vozes, como já o fizeram tantos autores do Continente, que se situam no tempo e no espaço em níveis distintos, o romancista instaura nela uma expressiva vivacidade que, no entanto, sabiamente se ameniza quando se detém em Plácida. Como Camila de Manhã transfigurada ou como Micaela de As virtudes da casa, Plácida é admirável  criação de um inusitado universo feminino.

          Em idas eras, numa cidade provinciana, mulher rica e de frágil, saúde, ela aceita esse mundo ao qual pertence, o suficiente para se casar com aquele que a pretende, para ignorar o sítio onde passa a morar, o estabelecimento charqueador, maculado por ossadas e odores fétidos, para ceder à vontade do marido e aceitar viver numa longínqua estância.

          E, refugiada na música, na leitura dos românticos franceses, nos bordados, nas lembranças da adolescência, nos seus deveres feminis, deixa-se viver, rodeada de luxo e de atenções,  como se a vida mal a tocasse e sem entender que a moléstia que a persegue nada mais é do que a linguagem que outrora fora abafada na sua sincera espontaneidade pelas pesadas normas sociais. As mesmas que mais tarde a devem prender, intocada, nos seus trajes de viuvez e que, então, ela irá infringir para obedecer a seu corpo que as carências fazem desfalecer em crises de dispnéia.

          Infração, cujo ônus será em demasia: não se vê a salvo das sufocações; não é invadida pela felicidade; o que recebe das noites amorosas não anulam seus anseios.

          As teias em que se enredou, em que foi enredada, foram implacáveis. Num caixão de ouro Plácida desce à terra, porque, transgressora, na terra não mais havia lugar para ela.

          Na galeria feminina do romancista gaúcho, também é imagem poderosa. Mas infeliz e vencida.

domingo, 10 de janeiro de 1993

De heróis. Heróis?

           Curiosamente, é uma voz feminina quem narra o extermínio dos índios Charruas do Uruguai: Josefina Peguy.

          Atendendo o pedido que lhe fizera Federico Silva, envia-lhe material sobre Bernabé Rivera. Mas, não se atém apenas a isso. Excede-se na resposta. Talvez para preencher, com evocações‚ o tempo de quem se aborrece com as mesquinharias do presente. Dispõe-se, então, a escrever sobre o que tem conhecimento, pelo que lhe foi contado na família, consciente que oferece uma versão inédita, muito. mais feroz e veraz sobre os acontecimentos de Salsipuedes e Yacaré-Cururu.

          E, centrada na figura de Bernabé Rivera, sua narrativa se amplia e traça todo um intrincado panorama de combates e escaramuças, nos quais o Uruguai vai se desenhando como país.

          Em 1830 é eleito seu primeiro Presidente, Fructuoso Rivera, cujo governo, o de um típico governante latino-americano, se caracterizou, segundo o historiador Carlos Machado (História de los orientales, 1972), pelo descuido administrativo, a malversação das finanças, o desrespeito às leis, os negócios escusos ligados à terra, a perseguição aos adversários e o genocídio dos Charruas.

          Os planos que não fez para o progresso do país, os elaborou para o extermínio dos índios, donos do Continente, quando os ibéricos nele chegaram.
          Para executar o extermínio designou Bernabé Rivera, um parente muito próximo que a falta de documentação impede saber, com certeza, se foi seu irmão ou sobrinho.
          Repetindo dizeres de sua família sobre ele, Josefina Peguy diz que Bernabé Rivera não merecia ter nascido bastardo. Muitas qualidades lhe são atribuídas coragem, modéstia, reserva, fidelidade e a obediência própria de um militar.
         
          Embora repudiando - assim o afirma sua biógrafa - o massacre ordenado pelo Presidente, o executa à perfeição: os Charruas foram convidados a uma reunião com os brancos para tratar das terras que receberiam em troca do apoio, tão necessário, nas campanhas contra o Brasil.
           No dia 8 de abril de 1831, eles deveriam comparecer ao local determinado. Porém‚ nem todos os caciques acreditaram nos brancos, prevendo o que aconteceria.

           E aconteceu: traição, crueldade extrema no momento em que, reunidos, os atos só tiveram por fim dar morte a todos. Surpreendidos, os índios nem sequer procuravam se defender, mas fugir para o mato, para o rio, para seus cavalos e seus amigos.

           O que poderia ter sido um combate, embora desigual, passou a ser a fácil matança que estava planejada.



           Foram trezentos índios mortos. Era a noite de 11 de abril de 1837 e nessa mesma noite foi planejada a perseguição das outras tribos e dos índios que haviam conseguido fugir.

           O método não mudou. Outra vez os Charruas foram atraídos com falsas promessas e, outra vez, encurralados para a morte. Um extermínio que, ainda se prolongou em infindas perseguições, pois Bernabé Rivera não recuava diante do frio, da chuva, da solidão, do cansaço na busca do que passou a considerar o bem da pátria.

           Bernabé, Bernabé, romance do uruguaio Tomas de Mattos que a Mercado Aberto de Porto Alegre acaba de publicar, discute essa verdade e esse genocídio a partir de documentos e personagens verídicos e a figura de Bernabé Rivera ressurge com um novo desmitificado perfil.
 
           Seus ossos - os que assim foram reconhecidos como seus - hoje repousam no Panteão dos Heróis de Montevideo.    Os de suas vítimas Charruas se perderam na terra e ali ficaram sem ritual, sem culto, sem memória.

domingo, 3 de janeiro de 1993

América, América

                                                   De tu nombre harán mención los
                                                   libros más allá de tus nietos.
                                                                        Miguel Otero Silva.
 
          Sua vontade e sua ação atravessaram os séculos. E seu nome é mencionado nos livros.
 
          Como regedor, chega Lope de Aguirre a Cuzco em 1536. Diante das pedras talhadas pelos Incas, entendeu que existia, realmente‚ um mundo novo deste lado do Atlântico; e despiu sua pele de conquistador para se reduzir ao ser humano que busca uma pátria e um abrigo.
 
          Passa a viver numa casa de pedra, por ele construída com uma índia e dela tem uma filha. Abandona as armas, depois de ter lutado pelo rei da Espanha em terras do Novo Mundo, para tornar-se comerciante honesto e cristão. E, comerciando andava quando foi acusado pela autoridade espanhola de Potosi de ter cometido uma infração. Os duzentos açoites que recebeu como castigo conduziram seus dias, a partir de então; por mais de três anos perseguiu, sem sossego, seu ofensor que para fugir à vingança, foi pedir abrigo na cidade de Cuzco. Fechado entre quatro protegidas paredes não eludiu, porém, o punhal de Lope de Aguirre.
 
          O orgulhoso espanhol não aceitara o castigo injusto - qual o espanhol que não sobrecarregava o dorso dos índios com pesadas cargas para somente ele ser disso acusado?, se perguntava. E tanto mais injusta era a pena quanto mais ele sabia que essa mão que o castigava era a mesma dos corregedores, dos juízes, dos alcaides, dos frades que despojavam os índios de todos os seus haveres, que deles judiavam, que os mutilavam, cortando-lhes o nariz e as mãos quando pediam piedade.
 
          Mas, ter dado morte a quem detinha o poder espanhol fez dele um perseguido. Como os outros sete mil que, rebeldes, vagavam pelas terras do Continente. Acreditando nas palavras dos que sucessivamente se arvoravam em chefes, negando-os, combatendo-os e, fracassados, errando em busca de um destino.
 
          Trabalhoso e cruel foi o de Lope de Aguirre. Um rosário, sem fim, de tristezas e sofrimentos físicos que Miguel Otero Silva no seu romance Lope de Aguirre, príncipe de la libertad (Barcelona, Seix Barral, 1979) acompanha passo a passo e que Eduardo Galeano em Memorias del fuego - Nacimientos, sintetiza em três breves textos.
 
          Opondo-se aos desmandos impunes e às barbaridades cometidas pelos conquistadores no Continente, ele foi uma ovelha negra nesse rebanho de falsas ovelhas.
 
          Acabou morto pelo poder espanhol que, uma a mais entre tantas vezes, restabeleceu a sua ordem.
 
          A cabeça rebelde de Lope de Aguirre foi exibida como advertência. Era o ano de 1561 e, bem ou mal, certo ou errado, os livros dizem que nela germinaram as primeiras idéias de liberdade para o Continente.
 
          Antes de morrer ele grita: Viva Lope de Aguirre, rebelde até a morte, príncipe da liberdade!
 
          Neste ano em que algumas Comemorações do IV Centenário do Descobrimento da América se intitulam "Encontro entre dois Mundos", sua figura de ser inteiro e lúcido apaixona pelo significado que pode adquirir nesse mundo de sangue e transgressões que foi o seu. E que ainda é, hoje, o do Continente.