domingo, 29 de novembro de 1992

Sobre a Literatura Uruguaia


O último volume da Revista Iberoamericana, composto dos números 160-161, é dedicado à Literatura do Uruguay.

Está dividido em quatro rubricas - Circunstâncias, Autores e Obras, Entrevistas e Resenhas - que são antecedidas por uma “Nota Preliminar”, assinada pela organizadora, Lisa Block de Behar.

Membro da Academia de Letras do Uruguai, suas palavras introdutórias se ocupam dos princípios que nortearam a seleção dos trabalhos e, principalmente, da “atmosfera” reinante nos meios literários uruguaios.

É provável que ela esteja cheia de razões quando, duramente, se refere à determinada crítica baseada em “intolerâncias pessoais”, em “convivências estratégicas”, ou a autores que se auto-promovem e são patrocinados por uma solidariedade que pouco tem a ver com reais preceitos críticos.

Mas, num país tão pequeno - e isso Lisa Block de Behar reconhece - cujo número de habitantes não ultrapassa os três milhões e com uma vida cultural centrada na capital, difícil seria a inexistência de nítidos sectarismos estéticos e ideológicos a separar os diversos grupos o que, sem dúvida, é comum a todos os meios artísticos de qualquer país.

Parece importante, porém, e então o artigo de Fernando Ainsa é sumamente ilustrativo,  o número de escritores que faz parte do mundo literário desse pequeno país e a qualidade de muitas de suas obras.

No artigo “Catarsis liberadora y tradición resumida: las nuevas fronteras de la realidad en la narrativa uruguaia contemporânea”, o crítico e escritor uruguaio, que há muitos anos, morando em Paris, não afasta os olhos de seu país, analisa a Literatura uruguaia contemporânea a partir de três eixos históricos literários: o que se situa a mediados dos anos sessenta, prolongando-se até o dia 27 de junho de 1973, data do golpe de Estado; o período compreendido entre essa data e 1º de abril de 1995 quando a liberdade foi restaurada no país; a produção atual.

Uma análise extremamente lúcida em que Fernando Ainsa estabelece relações entre o processo histórico uruguaio e a criação ficcional surgida nessa época.

Para quem, no entanto, na América Latina, se dedica a estudos de Literatura, o artigo também possui o grande mérito de apresentar um panorama da Literatura uruguaia contemporânea que é, sem dúvida, de riquíssima informação haja visto a tradicional impossibilidade de conhecer a produção literária do Continente.

E, também, leva a refletir, uma vez mais, sobre quão lamentável é esse desconhecimento de uma literatura que, seja pelos seus temas, seja pelas suas conquistas formais e pelo compromisso que manteve sempre com a realidade circundante, se constitui uma das mais valiosas do Continente.

domingo, 22 de novembro de 1992

Contos exemplares


 Pela Emecê de Buenos Aires, a publicação de Las maquinarias de la noche, de Abelardo Castillo, seu quarto livro de contos.

Na entrevista que ele concedeu a Daniel Freidemberg, em setembro passado e publicada no dia 24 pelo Clarin Cultura de Buenos Aires, foram comentados os três livros anteriores e as perguntas e respostas giraram, sobretudo, em torno da arquitetura destes últimos contos, realmente exemplares.

Uma qualidade que nada tem a ver com modismos porque a ruptura, termo que na Literatura latino-americana é relacionado com a forma e com os temas, com um desejo de romper com o estabelecido, em Abelardo Castillo está presente como algo existencial e não literário diz Daniel Freidemberg.

E assim se passa em “El hermano mayor”, que faz parte de Las maquinarias de la noche. 
No encontro dos dois irmãos ao morrer o pai, renasce o conflito de cada um diante da vida que lhe coube, revelado no sofrimento pela perda real que acabam de enfrentar e, mais insistentemente, pelas outras perdas que se foram acumulando.

Um irmão, o mais velho, ficou na cidade pequena; o outro, partiu. E, quando volta, para ver o pai morto, só deseja partir outra vez.

O conto é construído nesse diálogo entre os irmãos, alimentado pela figura do pai e pelas lembranças do passado que os unem. É no diálogo, tenso, muito breve, marcando o momento da chegada do irmão mais moço, o pouco tempo que ficou na cidade e a volta para a estação que se desenha a figura do irmão mais velho e seu drama de solidão.

O narrador aparece entre uma réplica e outra para notar gestos que acompanham ou substituem as palavras e algo desse reduzido espaço em que eles se movem: uma rua com laranjeiras plantadas nas calçadas, música de baile chegando de longe, flores brancas que a luz de uma casa ilumina, os cascos de um cavalo batendo nas pedras da rua.

E, no meio desse jogo de querer ou não ficar, de querer ou não a partida do outro, a decisão é tomada.

Não importa quem a tomou e o que será da vida de cada um. Mas a figura desse irmão mais velho, com sua aparente coragem e arrogância, de quem salvo as decepções, tudo se ignora, não se desvanece.

Os traços que lhe dão vida e a seu espaço e a esse diálogo mantido com o irmão, pouco seriam para uma narrativa.

No entanto, Abelardo Castillo a construiu.  E exemplar.

domingo, 15 de novembro de 1992

O sentido do corpo



Septuagésimo volume da Coleção Poesiasul, O corpo sentido acaba de ser publicado pela Editora Movimento de Porto Alegre. É o terceiro livro de poemas de José Tulio Barbosa. Em 1989, ele publicou Rastro dos ventos e, no ano passado, Vinte respostas a Neruda, prêmio Concurso Pablo Neruda, patrocinado pela Embaixada do Chile, em Brasília.

Neste seu último livro, o título que se desenha graficamente de dois modos distintos - a expressão “o corpo” em letras grandes; em baixo, com letras  menores e cursivas, a palavra “sentido” - é espelho perfeito do eixo temático que direciona os poemas.

O corpo sentido é dividido em três partes. Na primeira, seus vinte e um poemas se alimentam todos da palavra “corpo”. E o corpo é apenas matéria ou matéria, que se refaz no tempo dos séculos, ou em instantes; é parte do infinito, é invólucro, é cativeiro, é humanidade contida que busca o outro.



A segunda parte é, feita de vinte poemas que também se alimentam da palavra “corpo”, agora no plural, e regidos por expressões - nos recebemos, nos realizamos,   nos conhecemos, nos fundimos, nos esgueiramos, denunciadoras de buscas e encontros de dois seres que se plasmam na eternidade finita que são suas noites sem tempo, seus instantes de uma estrela.

Outras expressões se acrescentam então - lábios, dedos, olhos, pele, mão, ventre, seio, braços, pés, pernas - estabelecendo fronteiras para um outro sentir, o que procura se completar no outro.

Se, na primeira parte o poeta mostra a partir do próprio corpo seu espanto de existir e, na segunda, o êxtase de seu corpo diante do corpo feminino que o completa, na terceira parte (dezenove poemas o compõem) emerge o sentir diante dos deserdados.

Também eles são corpos - e, está lá, sempre, a palavra. - Mas, corpos que não se indagam, que não se exaltam no prazer e que são vítimas apenas, dos outros.

Como os demais poemas que fazem parte de O corpo sentido, estes tampouco possuem título e se diferenciam dos anteriores por trazerem no final entre parênteses, uma dedicatória. Quatro delas se dirigem a pessoas nominadas; as restantes, a um coletivo marginal: para os que não puderam mais resistir;  para um pivete qualquer;  para os que conspiraram; para todos os que deram a vida pela liberdade; para os que foram humilhados até a essência; para todas as mulheres o que, certamente, também, possui o significado de um coletivo.

E, a longa epígrafe, tirada de um texto de Roberto A. R. de Aguiar (O que é a justiça?) que antecede esses poemas, reafirmam neles o desejo de luta que o poeta expressa pela emoção. A relação de compra e venda do corpo, estabelecida por Roberto A. R. de Aguiar (a grande maioria dos corpos que, vendendo sua força de trabalho, sustentam corpos que não trabalham), será traduzida, poeticamente por José Tulio Barbosa que da palavra “corpo” aproxima expressões, como andrajos, jornadas, jugo, sangue vertido, fome claramente comprometidas com a denúncia que a epígrafe anuncia. E que se reafirmam em outras: fardo, fado, lágrimas, humilhação, dor, opressão, vida negada.


Expressões habitantes de versos breves, incisivos que esboçam esse não viver dos explorados com a maestria dos que dominam a arte de poetar: como que dizendo tudo num mundo de silêncios.

Para vencê-lo, José Túlio Barbosa se busca; compartilha seu corpo com o da mulher amada. Mas, não se petrifica nesse mundo fechado e oferece a sua voz aos que dela não sabem fazer uso.

E não se permite só o lamento. No último poema do livro surgem, luminosas, as palavras que remetem àquele futuro em que os homens já não serão máquinas / e meras matrizes / a modelar e a ser modelados / nas linhas de extinção.

O eu do poeta que prevalecera nos poemas se assume como homem do Continente. E um nós utópico domina a última estrofe do livro: Sim seremos corpos / e poderemos nos tocar / para descobrir / os mares e as alturas / os céus e os abismos / todas as larguras / todas as profundezas / insuspeitas / que há no vôo / do corpo sentido.

domingo, 8 de novembro de 1992

O novo Malazarte

 
Pedro de Malas Artes está diante de seu carrasco e sabe que logo será morto. Mas, pede para falar: Me ouvindo, poderá conhecer doutamente a ti mesmo e os ninguéns que entulham teu caminho.

Toda a sua história, desde o início até chegar ao fim, condenado a morrer - uma depois da outra, as histórias de Pedro Malazarte - se constrói sobre o confronto clássico: o poderoso e os deserdados.

E, assim como ele, Malazarte, Pedro de Malas Artes, cabe na palavra “ninguéns”, também na expressão “ti mesmo” cabe o seu interlocutor e os poderosos seus semelhantes.

Esperto, falador, cheio de invenções e, sobretudo sem medo de usar métodos escatológicos na vingança contra Couralindo, o brutal patrão de seu irmão, ele está consciente dos riscos que irá correr e tenta escapar sempre das conseqüências de seus atos com as armas de que dispõe: o engano e a mentira.

Seus feitos, verdadeiras artes de tinhoso, motivados pela revolta do pobre e encravados numa sociedade de castas, não apenas emporcalham a vítima (Couralindo, sua mulher e os respeitáveis convidados da festa que oferecem) como descobrem os vícios de uma estrutura social regida por preceitos medievais, em pleno fim do século vinte.

Oriundo de invencível pobreza e, pela primeira vez, no meio de uma festa de ricos, percebe significados no comportamento dos presentes que seriam extremamente ridículos não fossem já consagrados por um uso que institui a rígida separação de classes. Pode, então estabelecer comparações entre os dois mundos: o seu, o da fome e o apressado comer malazarte que quando termina a bóia ninguém sabe a hora da seguinte refeição e ainda se lambem dedos e pratos para não perder migalha” e o do outro que exibia para os convidados montes e vales de comida, suficientes para as fomes de um exército.

E, no meio dos belos trajes e de gestos estudados, comprovar, também, as relações que permitem a estabilidade desse mundo fechado em que o exercício do cargo público e da justiça são sustentados pelo poder econômico e, portanto, a ele submissos.

Pedro de Malas Artes misto de cobra e urubu para investir contra Couralindo, o dono de propriedades sem começo nem fim, dono de milhares e milhares de cabeça de gado e de capangas e das incríveis judiarias.

E, enganando, mentindo, inventando, de Couralindo ele destrói o milharal, o animal de estimação, o casamento e, então, a honra. E, enganando, mentindo, inventando, intrigando, de Fortunato, homem poderoso e endinheirado, ele rouba a filha”.

Tudo isso entre muitas andanças e manhas, entre muitas reflexões sobre o mundo e suas verdades.

Nutrido de suas vivências que são apenas um contínuo não ter, e dos conhecimentos que absorve na, para ele, proveitosa leitura do Almanaque Capivarol, suas palavras se abrem para definitivos e sábios preceitos e para um profundo e, por vezes, amargo lirismo.

Pedro de Malas Artes não tem salvação e, somente, lhe é concedido a escolha do modo de morrer.

Coerente com toda essa vida que ele para si mesmo arquitetou, foi sua escolha: inesperada, jocosa, irreverente, irrepreensível na sua malandragem. Verdadeiramente digna desse Pedro de Malas Artes que arrancado das histórias do povo, recebeu de Donaldo Schüler um precioso estatuto de personagem literário.

Um personagem realizador de façanhas perfeitamente capazes de provocar inveja em muitos brasileiros que, embora acreditando em ações mais severas e definitivas para assegurar a assepsia do país, não desprezariam ver chafurdar em elementos menos dignos, muitos dos grandes senhores que pela nação imperam.

Daí ser Pedro de Malas Artes, que a Editora Movimento de Porto Alegre lançou este ano, uma leitura catártica.

E, isto é o menos, embora sejam duros os tempos que correm.

Porque, a riqueza do tema popular renovado, a perfeição de um construir narrativo que jamais perde o seu vigor, uma linguagem inventiva e, muitas vezes, poética e, principalmente, esse olhar solidário que se pousa sobre os oprimidos faz desse romance do escritor gaúcho, um importante momento da Literatura brasileira.

domingo, 1 de novembro de 1992

Crônica da esperança

                                   ...eu não matei, não morri, não delatei, não fui presa... 



          Em pouco mais de cem páginas, a História do Brasil dos últimos anos a partir da história de Ana. Uma história de dúvidas e inseguranças oferecida pelas três últimas décadas aos jovens brasileiros que desejaram e, por vezes tentaram, modificar o país: Ana Quaresma, que a Editora Movimento de Porto Alegre lançou neste ano, trata de um caminho percorrido entre dois sorvetes. O sorvete contido no título que encabeça a primeira parte da narrativa, “Tomando sorvete”, um convívio simples que será origem do ato de contar: Desde que tomamos sorvete na rua da Azenha que estou com essa coisa despropositada em minha cabeça: escrever. Estou possuída pela necessidade de te responder, como se te devesse algo. E, no entanto, não te devo mais do que o sorvete que tomamos na Azenha.. E o que está contido nas últimas linhas do romance: Leila, é o seguinte: vamos até a rua da Azenha tomar um sorvete? Eu pago.

          Como que um descompromisso, como que um sem importância pueril emoldurando o conflito dessa geração que talvez tenha pensado em lutas, talvez tenha querido lutas - e alguns lutaram - e que as circunstâncias, a falta de preparo ou de um ideal mais forte conduziram à passividade corroída pelo sentimento de fracasso: Será bom não estar sozinha nessas horas, quando lembro os amigos que foram presos, os que morreram, os que delataram os que fugiram ou apenas desapareceram  diz Ana. Porém não é a deles a história que ela conta - e quantos foram? - mas a dos que foram alijados ou se alijaram do processo brasileiro. Primeiramente, pela sanha dos patrioteiros ignorantes ou oportunistas e depois pela alienação que o Sistema para preservar-se, instaurou através dos mais diversos meios.

          Numa narrativa estruturada em cinco partes desiguais (uma breve introdução, três capítulos (talvez) e um também breve post-scriptum, sucedem-se momentos dos últimos trinta anos brasileiros que se mostram a partir de nostalgias, indecisões, amores que desabrocham e se diluem, decepções, nos quais, por vezes, uma fugaz felicidade se insere.

          Muitos personagens. Muitos fatos e situações que se atropelam e que, sem mencionar datas, deixam claro que as coisas se passam aqui e sob a égide do obscurantismo: e a censura, e o tolhimento das vontades, e o desemprego planejado e o massacre cultural.

          Para Ana e os que a rodeavam, a realidade estava cheia de tropeços, desencantos, privações. E muito medo.

          E, embora houvesse tentativas - o encontro com os alunos na sala de aula, uma tese de mestrado, a montagem de uma peça de teatro, o trabalho como sociólogo de uma Fundação, o esforço resultou inglório.

          Anos mais tarde, querendo explicar o que foram esses dias e explicar-se, Ana Quaresma dá provas de uma lucidez necessária: Eu não matei, não morri, não delatei, não fui presa [...]. Eu fui a maioria, eu fui a média dos descontentes, eu me amordacei para continuar. E é disso que estou te falando: de como tentamos levar a vida, sem abrir mão do sonho mas convivendo com o pesadelo, perdendo um combatente de tempos em tempos, sentindo nos ossos a vontade de prender fogo em tudo e de mandar tudo à merda. As vezes sentindo vergonha de estar vivo.

          Lucidez que lhe permite poder acreditar outra vez. No povo unido, nas canções e nos versos.

          O que torna o romance de Suzana Kilpp uma bela crônica da esperança. E não é de esperança que vive o país?