domingo, 27 de setembro de 1992

A voz telúrica de Glória

                                                                  Vejo passar os sonhos
dos homens
e enredar-se, às vezes
Em vôos caprichosos
Também passam as palavras
Deixadas em liberdade.

 

Cores fortes e alegres, um figurativismo simples. Folhas, flores, um cântaro derramando água. Assim, é a bela capa de Ídolos antiguos, o último livro de poemas que Gloria Moseley-Williams acaba de publicar.

Edição do P.E.N. Club da Colômbia, diagramado pela própria autora, resultou num cuidadoso exemplar gráfico, cuja diferentes partes se separam umas das outras por folhas de papel brilhante ornadas de frisos onde matizes e motivos acompanham o tema dos poemas que introduzem.

Eles se agrupam sob três rubricas: “Madre greda” (Mãe argila), “Tiempo de río” (Tempo de rio) e “Los sueños del árbol modificam el aire” (Os sonhos da árvore modificam o ar).

Na primeira rubrica, a poetisa se identifica com a terra: me ensinaram que era obra de barro e nos poemas as palavras “terra”,”barro”, “argila”, “areia,” “pó”, “lama” levam a essa presumida origem do ser moldado na matéria terráquea. Um ser que anseia encontrar raízes e formas e expressão. Abre-se para a vida - sou pó irritado, sou argila soante, sou argila enamorada - e busca a sua voz.
 

Um friso azul, enuncia a segunda parte, “Tiempo de río” e a identificação do poeta se faz agora com a água. Gosto de ser rio, diz um verso. Transparente, plácido, suave, navegando docemente, o rio faz um caminho entre ribeiras e dunas e planícies. Dá de beber aos pássaros, alberga barcos e folhas secas.

Voz vegetal se eleva na terceira parte, para cantar a seiva e o enraizar da árvore, as flores que o vento embala, as sementes espalhadas pelo ar. Folhas verdes ornam o friso que acompanha o título desta terceira parte do livro.

Uma busca para o alto, um enternecimento pelo mundo do outro é o eco presente e repetido nessas três vozes que se entrelaçam no último poema “arribo” (chegada).

Rio, árvore e argila habitam esse corpo que não recusa as suas dívidas com a terra, com as raízes, com a chuva e o sol.

Como um grande desejo de pertencer, profundamente, ao universo espontâneo, intocado, desses elementos primeiros é que se constroem os versos de Gloria Mosely-Wiliams.

Uruguaia, que vive atualmente na Colômbia, fundou em Medellin o primeiro jardim de infância do Ministério de Educação e a primeira Escola de Danças Clássicas.

Já então, seus poemas eram publicados em vários países do Continente. E, foram aparecendo seus livros: Semilla de árbol, Donde vive el silencio es una casa..., El espacio habitado, Voz sobreviviente.

Ídolos antiguos é o último deles. Um verdadeiro canto à vida. Um canto à palavra, nascendo desse mundo telúrico que é o mundo de Gloria Moseley-Wiliams.

O rio, a árvore, a terra numa voz de poeta.

domingo, 20 de setembro de 1992

Estampas do extremo sul


Julián Murguía é um engenheiro agrônomo, escritor de contos que já foram publicados no México, Espanha, Argentina e no Brasil onde morou como exilado político.
Traduzido por Sérgio Faraco, acaba de aparecer, em Porto Alegre, pela Mercado Aberto, Contos do país dos gaúchos, Prêmio Nacional de Literatura Infanto-Juvenil do Ministério de Educação e Cultura do Uruguai.
São quinze pequenos “contos e estampas”, lembranças da infância do autor uruguaio da cidade de Melo, perto da fronteira com o Brasil. Relatos e descrições ingênuas - e as ilustrações de Yamandú Tabárez estão em perfeito acorde com os textos - presos a um mundo que já desapareceu, vencido pelas transformações e que o autor deseja recuperar pela palavra.

E, pelos olhos desse menino que ele foi, Julián Murguía refaz paisagens e tipos humanos desse extremo sul do Continente, cujo encanto reside, sobretudo, na singeleza espontânea que deles emana.

A paisagem é o campo aberto, espraiado entre sangas e coxilhas, rodeado de azul-celeste, o campo era a cor, calor e canto. Viver feliz sem tempo, isso era o campo.

Os tipos, o homem simples que o povoa: o velho Santos, domador de rosto indiático, curtido por mil sóis, vivendo sozinho num rancho que era quase tapera onde os animais de estimação eram um lagarto e uma pequena mulita; Don Miguel, o basco que deste lado do mar se tornou carreteiro e cruzava os campos com as carretas carregadas de mercadorias e de lã e couros; Ugarte, o contrabandista, indo e vindo, levando e trazendo erva-mate, fumo, cachaça, açúcar, feijão. E o Pelado, negrinho de olhos redondos e brilhantes, companheiro de brincadeiras. Luminoso pequeno personagem que, embora só tendo um “peso” para gastar na festa do povoado, ainda consegue levar de presente para o amigo um pastel e o retrato que tirou e no qual nem pode dar a dedicatória que deseja - para o meu melhor amigo porque não sabe escrever. Ele faz parte desses deserdados do campo, desses esquecidos sem direitos porque - e assim o diz Julián Murguía - a lei sempre foi feita só para o dono das terras.

Em Contos do país dos gaúchos  os deserdados aparecem no relato “O rancherio”, mundo dos ranchos corcundas e mal feitos. Pequenos. Temporários. Envelhecendo ali como de passagem e que de enfeite somente tinham, pendurados sob os beirais, latas de óleo de cozinha plantados de jasmins e de gerânios. Deles gotejavam piás de cor terrosa, vestidos com roupas grandes demais ou demasiado pequenas. Filhos dos “quileiros” que atravessam a fronteira a pé para o contrabando de um quilo de açúcar ou de erva-mate ou de feijão, arriscando-se a uma cadeia ou a perder aquilo que levam que nada mais é do que um pouco de comida para a família.

Sombras melancólicas que se insinuam nesse mundo de luz e de verão que, embora esmaecidas pelo tempo e pelo desprevenido olhar infantil, são mais um dos testemunhos da pobreza do Continente.

 

domingo, 13 de setembro de 1992

O morto


 Talvez seja um delírio da imaginação, talvez uma catarse burlesca. Nada, no entanto, impediria que pudesse ser, exata e minuciosa, a verdadeira descrição do enterro de um Governante do Continente. 

O seu grande amigo morria envenenado e o Governante, admiravelmente fiel a esse que acreditara sincero, lhe assiste os últimos momentos. Morto, veste-o com as roupas que ele, Governante, costumava usar e o deixa nos aposentos oficiais para que assim o encontrem no dia seguinte. Com esse engodo, se despoja do Poder e reduzindo-se à escala dos mortais comuns, pode, então, presenciar o que acontece no Palácio: primeiramente, a demora em anunciar o fato à nação para dar tempo de se efetuarem os acordos secretos dos herdeiros do regime; depois, o velório, o morto no caixão, com todas as medalhas que se acreditara merecedor e o cortejo desfilando ao redor do cadáver. E, repentinamente, explodir o ódio popular.

Sem o imprescindível aparato do Poder, o Governante, misturado aos demais, passa despercebido e presencia o destino que o povo dá a seus “despojos” e ao Palácio. Vê os grupos de assalto se meterem pelas janelas diante da complacência calada da guarda, vê as cabeças ferozes que dispersavam a pauladas o cortejo[...] e os oito homens que retiraram o morto do caixão e o arrastaram escadas abaixo e pelas ruas onde se levantavam fogueiras alimentadas com seus retratos oficiais que desde o começo de seu governo, haviam sido espalhado por toda parte.

Mas, depois que se calou o júbilo dos sinos por sua pretensa morte, o Governante, ignorando a vontade de seu povo, não abandonou o Poder. Somente fará isso muito depois, quando morre, já senil e alheio aos clamores das multidões frenéticas que se lançavam nas ruas cantando os hinos de júbilo da notícia jubilosa de sua morte e alheio para sempre jamais às músicas de liberação e aos foguetes de alegria e às badaladas de gloria que anunciaram ao mundo a boa nova de que o tempo incontável da eternidade tinha, por fim, terminado.

Na América das ditaduras ou das pseudo-democracias, a história desse ditador (com as possíveis variantes, igual a de tantos outros) se nutre de injustiças, crueldades, desprezo absoluto pelos que o rodeiam.Mas, ele é tão simplório e reles e tão simplórios e reles são os seus atos que para aproximar-se deles parece que só cabe o riso. Embora amargo para os homens do Continente.

Em El otoño del patriarca (Barcelona, Plaza y Janes, 1975), Gabriel García Márquez não lhe poupou as zombarias e ninguém ignora o quanto elas podem ser pertinentes.

 

domingo, 6 de setembro de 1992

O bem-amado


tinha perdido a fala de tanto falar e colocara ventríloquos atrás das cortinas para fingir que falava.
 
          Ele dizia que o problema do país estava no tempo de sobra que as pessoas tinham e usavam para pensar. Para lhes dar o que fazer instituiu os jogos florais e os concursos das rainhas da beleza. Acreditava-se dono do Poder e como tal agia até que seu mais útil e fiel colaborador, às portas da morte, pode lhe dizer as verdades que ninguém, jamais, usaria pronunciar: que o senhor não é Presidente de ninguém, nem está no trono por seus méritos mas porque aí o sentaram os ingleses e o sustentaram os gringos [...] e eu o vi cochichando de medo de lá para cá e de cá para lá quando os gringos lhe gritaram que aí te deixamos com o teu bordel de negros para ver como te arranjas sem nós e a partir de então não se desmontou da cadeira não porque não queria mas porque não pode porque sabe que na hora em que for visto pela rua vestido de mortal vão lhe cair em cima como cães [...].
          Mas, o Presidente não era homem de escutar verdades e continuou nos seus mandos e desmandos como soe acontecer, quase sempre, nos países do Continente.Por decreto, ele canoniza sua mãe, restabelece a rinha de galos e muda o dia dos feriados.
         
        Num país do Caribe, refúgio de Presidentes e Ditadores que perderam o poder, mundo barroco de cores e perfumes e luzes, o Presidente acredita que a pátria é ele e que a sua presença é, verdadeiramente, insubstituível.
 
          El otoño del patriarca foi publicado em  1975.  
          Na galeria dos déspotas do Continente, esse filho de Bendición Alvarado, como criação de Gabriel García Márquez, é uma figura hiperbólica. O seu ridículo, a sua ignorância, a sua inconsciência e a sua maldade possuem as dimensões do Continente.
 
          Como as próprias ambigüidades que tornam possível coexistir a pompa de seu palácio cheio de luxos duvidosos de suposta inspiração européia com seu modo rústico de vida e a ignorância em que deixou mergulhado seu povo nesses anos todos em que impôs, usando de todos os subterfúgios e estratagemas, a sua presença.  
        

         
           E de tal modo se convencera de que era amado por aqueles que acreditava governar que não conseguira perceber a revolta que se fora armazenando.

 
          Numa tarde de dezembro, passando incógnito em carro fechado pela cidade, viu no céu os balões coloridos. Balões vermelhos e verdes e amarelos e azuis que se abriram para deixar voar sobre a cidade milhares de folhetos.

E o povo todo, mesmo os sentinelas do palácio, repetiam: todos sem diferença de classe contra o despotismo de séculos, a reconciliação patriótica contra a corrupção e a arrogância [...].