domingo, 23 de fevereiro de 1992

Os predadores

          Ao se propor, em 1954, fazer o paralelo entre a cultura brasileira e a cultura norte-americana, Vianna Moog em Bandeirantes e pioneiros (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1989, 17ª edição), estabelece como fatores responsáveis pelo progresso dos Estados Unidos e o lentíssimo desenvolvimento do Brasil, o relevo, o clima, a orografia, a hidrografia e as circunstâncias históricas. Entre essas, o fato de nos Estados Unidos terem chegado povoadores que desejavam fundar um novo país onde pudessem praticar, com liberdade, a sua religião. Homens que chegavam para não retornar. Para o Brasil, ao contrário, os homens, na sua grande maioria, vieram, somente, em busca de aventuras e riquezas. Homens que jamais pensaram em criar raízes pois seu único desejo era sempre o retorno ao velho país de origem.
 
         Nessa ânsia de enriquecer - sem valores éticos e morais a imporem fronteiras - e partir, estaria a explicação para o sentido predatório que caracterizou, desde o início, a ocupação do solo brasileiro.Um tipo de mentalidade que dominou não apenas o cotidiano de seus habitantes mas, principalmente a administração pública do país.
 
         Nem o governo, nem o cidadão brasileiro temem o desperdício ou o desequilíbrio ambiental. Fazem uso das riquezas que o país oferece, seja ela mineral, vegetal ou animal, sem pensar nunca no futuro por mais próximo que ele possa estar.Os exemplos desse tipo de comportamento são infindáveis e tão comprometedores que recentemente até originaram matérias em publicações de circulação nacional.
 
         No entanto, por mais que seja conhecido esse esbanjamento cotidiano e constante, essa falta de visão do futuro que leva somente a extrair o que existe sem que seja estabelecido um compromisso em repor o que foi tirado, não deixa de ser estarrecedora a leitura de Amazônia, a menina dos olhos do mundo (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1991) que Thiago de Mello lançou em Curitiba na primavera passada.Nas cifras imensas que o poeta cita, inscreve-se a imensidão do território brasileiro e da inconsciência com a qual é regido.São 300 mil hectares desmatados por ano na Serra dos Carajás. Exuberantes sucupiras, jatobás, ipês e castanheiras são queimadas diariamente em fornos apelidados de rabo quente. Madeira nativa que deveria ser replantada pelas empresas que participam do Projeto do Polo Metalúrgico, autorizadas a produzir ferro gusa, ferro liga e silício metálico utilizando carvão vegetal.
 
         A reposição exigida em 25% a partir do sexto ano de atividade da empresa e em 50% a partir do décimo ano, além de insuficiente, não leva em conta os altos custos sociais e ambientais de um desmatamento em tais proporções. E o fato do Projeto ser considerado por alguns - os que decidem - tecnicamente e economicamente viável, não justifica, mesmo em nome do progresso, o que nele impera de prejudicial e de predatório.
 
         Predatória, igualmente, alerta Thiago de Mello, é a ação do homem no Pantanal. Pecuaristas, agricultores e coureiros, em poucos anos, causaram profundas e maléficas transformações na região, originadas todas da cobiça e do egoísmo.
 
         As barragens construídas alteraram a rede fluvial: rios deixaram de ser navegáveis, outros tiveram seus cursos desviados e bloqueados, provocando, evidentemente, desequilíbrios na fauna e na flora com a mudança de periodicidade das cheias; as florestas arrancadas das margens provocaram desbarrancamento e os agrotóxicos, usados sem discriminação, envenenaram as águas dos rios; a matança constante de jacarés, veados, onças, lontras, e capivaras está acabando com as espécies.
 
         Riquezas que pertencem ao país e que vão sendo destruídas em proveito de uns poucos capazes somente de aspirar o lucro imediato, repetindo a lição predatória que se refaz a cada geração de brasileiros.
 
         Thiago de Mello, o grande poeta de Estatutos do homem não desdenhou da prosa para esclarecer e informar e o faz com a objetividade daquele que sabe e quer transmitir esse conhecimento e com a força que só as palavras amorosamente sinceras podem ter.
 
         Amazônia, a menina dos olhos do mundo é um brado de alerta e uma convocação irrecusável para resistir ao que o poeta chama de sanha predatória dos novos bárbaros, diz Ênio Silveira, seu editor.
 
         Uma convocação para os realmente letrados, para os que se querem justos, para os sabiamente conscientes de seu viver no mundo. E para os que sem hipocrisias se desejam brasileiros.
 
        E desses, algum dia a voz será ouvida?

domingo, 16 de fevereiro de 1992

Os mazombos

          Livro de muitíssimas edições e traduzido para o inglês, francês e espanhol, Bandeirantes e Pioneiros, cuja primeira edição data de 1954 (Porto Alegre, Globo), é, perdoe-se o lugar comum, leitura obrigatória para todo brasileiro que tenha um mínimo de interesse em procurar entender o seu país.
 
         Vianna Moog, romancista (Um rio imita o Reno, Tóia) e ensaísta gaúcho (Eça de Queirós e o século XIX, Heróis da decadência, Uma interpretação da Literatura brasileira) em Bandeirantes e Pioneiros procurou explicações que lhe esclarecessem porque o Brasil mesmo à luz das interpretações e profecias mais otimistas ainda se apresenta apenas como o incerto país do futuro enquanto que os Estados Unidos atingiu o impressionante e incontestável estágio de desenvolvimento e liderança conhecidos. Questão que havia sempre resultado numa resposta que, aliás, explica, na opinião de muitos, grande parte, quando não todos, os males brasileiros: a qualidade dos povoadores do Brasil.
 
         Simplista demais, foi uma resposta que pareceu satisfazer grande parte de várias gerações da elite brasileira o que não impediu, no entanto, que a pergunta continuasse a perseguir essa elite com a persistência de leit-motives obrigatórios e indesviáveis.
Hoje, trinta e oito anos passados da primeira edição de Bandeirantes e Pioneiros, além das enunciadas pelo ensaísta gaúcho - a orografia, a hidrografia, o clima, o relevo e os antecedentes históricos - outras explicações podem, ainda, ser levadas em conta. E entre elas, irá sobressair a absoluta falta de valores morais que predomina no país. É quando emerge do passado a figura do mazombo, evocada em Vianna Moog ao considerar os antecedentes históricos das duas culturas que analisa.

Antecedentes históricos que explicariam o sentido orgânico da formação americana e o sentido predatório da formação brasileira, assim como explicariam o ser americano e o ser mazombo.
 
         Vindo para a América em busca de um espaço onde praticar livremente o seu culto religioso, os primeiros povoadores dos Estados Unidos trouxeram a família, seus valores morais, éticos e culturais e o desejo de estabelecer uma comunidade regida por leis que se ajustassem ao bem comum.
         Os primeiros ibéricos que chegaram ao Continente - e durante muitos anos assim foi - ao contrário, vieram sós, em busca de riquezas e aventuras e, sempre com o intuito de regressar para a família e para a vida em Portugal; desprovidos da vontade de possuir as terras e nelas realizar o seu futuro não traziam com eles nem espírito público, nem virtudes econômicas, somente a inesgotável ânsia de enriquecer.
        
         Assim, enquanto o pioneiro nos Estados Unidos conquista a nova terra palmo a palmo e funda vilas e cidades, o português se adentra no território exclusivamente para dele tirar as riquezas mesmo a custo dos mais cruéis e irracionais atos predatórios.
         Conseqüente e natural foi, então, que dos pioneiros que chegaram ao hemisfério norte, voltando as costas para a Europa e desejosos de fundar um país, resultassem os americanos que assim era como se chamavam e como queriam ser; que dos colonizadores portuguêses, resultassem os mazombos filhos dos portuguêses, nascidos no Brasil, categoria social à parte, a que ninguém queria pertencer.
         Se o termo pejorativo, hoje sinônimo de sorumbático, macambuzio, malhumorado, acabou por cair em desuso, o personagem que lhe deu origem, no entanto, permaneceu. Diz Vianna Moog que ainda no fim do século passado o Brasil pululava de mazombos. Aqueles que, exatamente, como nos tempos coloniais, não desejavam ser brasileiros, não possuíam interesse ou gosto por qualquer tipo de atividade orgânica, nem iniciativa, nem criatividade. Somente, um grande descaso por tudo quanto não oferecesse oportunidade de fortuna fácil, de obtenção de privilégios ou sinecuras propiciadoras de riquezas adquiridas sem trabalho.
         E eis que agora, no fim deste século, em que mais acentuadas resultam as diferenças de desenvolvimento entre os dois países, não é difícil encontrar na sociedade brasileira, descendentes desses mazombos de antanho.Hoje, ele se denomina brasileiro e até pode sê-lo de várias gerações, mas, fielmente, como se o tempo não houvesse passado, continua sendo o estrangeiro predador extraviado em terras brasileiras. Como o mazombo dos tempos da colônia ele lisonjeia, transige, corrompe, revolve céus e terras quando se trata de seus próprios interesses. E etc.





domingo, 9 de fevereiro de 1992

Bom dia, América

          Buenos días, América de David Sánchez Juliao foi publicado em 1988 (Bogotá, Planeta Colombiana). Cinco anos antes, pela Plaza y Janes aparecera Pero sigo siendo el rey  romance de maior sucesso que, por sua vez, já fora precedido de outro, Cachaco, palomo e gato, de muitos contos, relatos, fábulas e um livro de testemunho.
 
          Atualmente, David Sánchez Juliao é embaixador da Colômbia em Nova Delhi - onde, também, representaram seus países, devido a essa tradição latino-americana de fazer de escritores, embaixadores - Pablo Neruda e Otávio Paz. Antes dessa experiência como diplomata onde realiza importante trabalho cultural, divulgando na Índia os escritores de seu país, David Sánchez Juliao já havia vivido em países da América Central, na Europa, Estados Unidos e México na qualidade de professor visitant
           Nasceu em 1945 na região litorânea da Colômbia e é em Lorica, cidade antiga e senhorial às margens do rio Sinú, nas costas do Mar Caribe sua cidade natal que ele situa a ação de Buenos Días, América.Uma narrativa plácida e alegre cuja trama simples e linear quase não oferece surpresas embora permaneça sempre prazerosa.
 
           Em Lorica é instalada a primeira rádio. Tem por nome “Rádio Progresso” e um quilowatt de potência. Tanto o seu diretor artístico, como seus dois técnicos são prata da casa e o locutor, um filho da cidade que dela saíra e voltara.
 
           Para aumentar sua receita - era muito pequeno o ordenado - Pupi o locutor, elabora anúncios publicitários que, embora verdadeiros primores de criatividade, nem sempre ou quase nunca são do agrado do proprietário ou do padre paroquiano. Pupi, porém, não se abala com os impropérios do patrão e quando a emissora recebe cartas de ouvintes de outras cidades, inclusive da Argentina, ele se dá conta que pode ser ouvido pela América. E começa, então, o seu programa com a expressão “Bom dia, América”.
 
           Ao escutar a inovação, o dono da rádio, furioso, entra na cabine de som para gritar-lhe Por acaso não vê o ridículo em que ficamos? Uma emissora de um quilowatt cumprimentando a América!
 
           Para os cidadãos de Lorica, no entanto, nada era mais simples e ninguém ficou sem entender que esse “Bom dia, América” que se seguia à identificação do programa era dirigido à mulata América, a moça mais bonita da cidade, por quem o locutor se apaixonara.
 
           E, assim, apesar de seu talento sui generis para elaborar os textos publicitários que acabaram por originar uma situação antes nunca vista - os ouvintes ficarem mais atentos à propaganda que aos próprios programas de entretenimento que eram oferecidos - o proprietário da emissora só espera o momento em que possa demiti-lo. Porque lhe é absolutamente imprescindível que a rádio que instalou não se afaste do que ele pretende que seja: a onda culta e amena da região.

domingo, 2 de fevereiro de 1992

Sombra luminosa

          No extremo sul do Brasil, deixando ver, de suas janelas a igreja e suas torres, o casarão se ergue em frente à praça. Nele, encerrada, Dona Camila aguarda a anulação de seu casamento, solicitada pelo marido. É muito jovem, muito bela e na mesma noite de núpcias confessara já ter sido amada antes.

          Sem direito de sair à rua, espera a decisão canônica na grande casa rica. A seu lado apenas Laurinda que a cuidou desde menina.

          Laurinda, gorda, cara lustrosa, dentes alvos. Escrava. Imagem perfeita da dedicação, gira em torno de sua senhora servindo-a com todos os cuidados. Assumindo ou submetendo-se a uma função materna que, livre da rigidez da moral estabelecida, se desdobra: ela é ama, confidente, mucama, conselheira, alcoviteira.É por ela que a senhora chama - para vesti-la, para penteá-la, para ouvi-la e dirimir suas dúvidas, para julgar de seus méritos feminis, para costurar-lhe o vestido que deseja. É ela quem está presente na hora do choro e do riso. Para alegrar ou consolar, para cuidar e proteger a senhora, segue-lhe os passos ou os precede querendo evitar a tragédia

           Personagem cuja função romanesca direciona a narrativa de Manhã transfigurada (Mercado Aberto, 1991). Suas são as palavras que conduzem os atos de Camila no leito conjugal e fazem dela uma mulher condenável aos olhos do marido. Também suas as que a afastam da prostração a que o castigo vergonhoso a condenara. Obra sua, o vestido que deseja Camila para o que imagina ser a sua entrega maior.

No entanto, é como se Laurinda na dona apenas se refletisse. O coração lhe pesa quando a sente triste. Seus olhos se umedecem de alegria quando a vê alegre. E se preocupa e se acalma e se assusta e se amedronta diante de seus desvarios amorosos porque negra e escrava era uma pessoa só do dia, só entendendo as coisas claras e solares.E, nada mais claro para ela do que a sua condição de serva, pessoa que não pode nem pensar, e sim ser dócil aos comandos.E prestimosa e cumpridora e dedicada e boa e sempre risonha, Laurinda se encerra na perfeição luminosa que desdiz este ter nascido para sombra de mulher branca. Sombra que a impede de mostrar-se inteira: quem realmente é, a quem se entregara por amor, quando pudera ser feliz nesse mundo/prisão que a proibiu de viver para si mesma.E faz dela, silhueta que se recorta da escravidão (assim o quis seu criador Luiz Antonio de Assis Brasil?), um inacabado, um magnífico e inesquecível personagem feminino.