domingo, 24 de novembro de 1991

Cartas para Alejandra


             Doze são as cartas para Alejandra. Algumas, manuscritas, talvez não tenham lhe chegado às mãos. Mas, reunidas em livro e publicadas pela Arca de Montevidéu, em 1990, sob o título Leyendas del abuelo de la tarde, a ela foram dedicadas. E, cada carta, na verdade, é uma lenda. A primeira, conta a chegada de um ginete vestido com uma túnica azul muito clara, montado num ca valo branco: um avô de barbas abundantes e olhos azuis que  olham para  o vale de verdes sedosos antes de dizer: Sou o encarregado de contar histórias. Por sua voz se abre um maravilhoso mundo de fantasia, pleno  de ternuras e de cores. Assim, a origem do cavalo marinho e a origem do alaranjado no mundo onde, por falta dessa cor, as laranjas, ainda que maduras, eram verdes e verde,  como o capim, o  suco dela extraído. Assim, a chegada dos ruídos no mundo de silêncio que era, então, a Terra e da fumaça que na Terra tampouco existia. Presenças que chegam de outros planetas – vem de Urano, Plutão, Netuno, Marte, Vênus e  Mercúrio – sempre em  missão de alegria. Chegam os barquinhos de papel e o sereno da noite e da manhã. E os caracóis para povoar o mar de ruídos: desde então, nos mares tagarelam as ondas,  murmuram as areia, dançam as algas,  assobiam  os peixes coloridos, cantam os caracóis de Netuno, trazendo as primeiras vozes para todas as coisas.


            São presenças regidas pela harmonia de um verso não contaminado pela maldade em que os seres – peixes de muitas cores, sons, gotas de água -  atravessam os céus e pousam, suavemente, na superfície da Terra quando, nela,  as cidades não haviam sido criadas, só pequenas aldeias com casinhas de telhado vermelho e um campanário sempre à beira de lagos serenos e ela ainda era um planeta receptivo para o bem.
            Contadas pelo velho patriarca, o avô do entardecer,  as lendas/cartas se nutrem de um poético que é encontrado nas águas, nos minérios, nos vegetais.  Como já o fizera Serafim J. García em Piquín y Chispita,   um poético que ignora as atuais e excêntricas e violentas aventuras que o Primeiro Mundo se compraz em exportar para os países do Continente e procura na beleza da expressão, onde sobressai a força descritiva dos adjetivos,  lembrar o belo mundo das coisas simples.  E os heróis, nem estranhos monstros, nem impressionantes seres armados para defender o bem ou impor o mal e portadores de verdades importadas, são em Leyendas del abuelo de la tarde, uma gota  d’água, uma pequena pedra colorida, um pássaro, uma florzinha  sem importância. Como se Maurício Rosencof, seu autor, resistisse à inspiração destruidora dos modelos forâneos e, junto com  Elbio Ferrario, que lhe ilustra os textos com desenhos de traços simples e cores vibrantes – cada um a seu modo, um valente David – pudesse conter, com as armas ingênuas da singeleza, a avalanche de heróis e de super heróis  que de outras plagas chegam ao Continente para converter-lhe as crianças

domingo, 17 de novembro de 1991

Cartas para Nicolás


          Hoje ele trabalha no campo e escreve um romance. Já foi professor de escola rural e já escreveu em vários jornais de seu país e  na revista alemã Humboltd. Entre 1974 e 1975 viveu a mil e quinhentos quilômetros ao sul de Buenos Aires, em General Roca. Datam de então, as cartas para Nicolás, seu primeiro amigo nesse extremo sul do Continente onde chegou na época da colheita das maçãs. No dia em que o menino fez três anos, Ramón Igarzábal, o uruguaio recém chegado, deu-lhe de presente doze cartas que foram a origem de um livro publicado neste ano pela Banda Oriental de Montevidéu.

            Um pequeno livro formado por vinte  quatro cartas-poemas de um dizer simples, cálido e limpo, como muito bem o diz José Maria Obaldía ao lhe fazer o prólogo e que se completa nas fotos que o acompanham. E como que encerrados estivessem nessas páginas aquele  que fala e aquele a quem se dirigem as palavras: crianças marginalizadas pela pobreza que se deixam retratar por Carlos Contrera no riso, nas brincadeiras ou no simples ato de ficar quieto, olhando a vida.

            Então, palavras e imagens em Cartas a Nicolas ora se completam, ora se distanciam, unidas no mesmo amor pela criança. Expressões que se alimentam das nuanças luminosas, sugeridas por palavras que falam de sonhos ou daquele tom sombrio do cotidiano pobre, fixado pela imagem fotográfica.

            Ramón Igarzábal fala de um mundo passado que foi o seu, preso à terra, onde o trigo ondula sob um céu eternamente azul, preso ao pátio de sua casa povoado de laranjeiras e pardais e às lembranças e aos sonhos infantis.

            Como adulto, ao refazê-los, lhes confere uma luminosidade de azuis e dourados, uma ternura pelos deserdados e uma crença em algo de feérico que, permanentemente, entrelaçado aos mais puros elementos panteísta -  a água, a luz, a terra, o vento – não está longe de Deus. Uma crença que refúgio ou esperança não se ilude porque sabe os humanos capazes de tirar um filhote de pássaro  do ninho para, mais tarde, engaiolado, ouvi-lo cantar; ou lançar – e quais os motivos que o justificariam ? – a destruição em Hiroshima.

            Sonhar e inventar sem se mentir, permite – sem que isto possa dar impressão de incongruência – que os textos de Ramón Igarzábal convivam harmoniosamente com as fotos de Carlos Contrera. Elas focalizam crianças cujo sorriso não é suficiente para apagar as evidências de uma pobreza que irá lhes fechar muitas portas de acesso aos requisitos mínimos para querer ou exigir a vida ( e alimentação, e saúde, e educação e lazer) que é direito de todos.

            Cartas a Nicolas é um livro de sonhos e de realidades  entrelaçados num diálogo que, sem ingenuidade, é expressão do Continente.

domingo, 10 de novembro de 1991

A cor da ternura e outros tons


Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta? 

            Uma menina pobre, filha de pais pobres, estuda e se forma professora. No Brasil, isto pode acontecer. Ou porque nasceram com uma estrela na testa ou porque os fados lhe foram favoráveis, alguns brasileiros, com muito esforço e duras penas, conseguem se sobrepor à pobreza e cruzar as fronteiras que os separam da outra classe social . São histórias  de vida possíveis num país que, aparentemente permite a seus cidadãos a mobilidade social e concede oportunidade para ocupar um espaço que, pelo nascimento e condição social, pareceria não lhes ser destinado.

            A cor da ternura (FTD, 1991) seria uma história assim. Simples e linear, cabendo entre a primeira perda ( o nascimento do irmão rouba à protagonista o leite, o colo, os mimos) e a vitoriosa chegada ao diploma e à conseqüente entrada na campo de trabalho.


            Porém, mais do que isso é uma narrativa que desabrocha em perfeitos achados (trouvailles)  termo que os franceses usam para designar as expressões inusitadas que tornam inconfundível o estilo de um autor e que no livro de Geni Guimarães não se exaurem na beleza da forma. Seu grande valor está precisamente em, através desses achados, refazer significados de uma sociedade classista e reacionária que pretende se mascarar para  lhe ser possível manter a imagem democrática e liberal que, alguém, um dia, lhe inventou.

            Expressão lírica de ingênuo e profundo e sofrido amor filial, ela se mescla às emoções da descoberta de um mundo que, fora do regaço materno, está longe de possuir a cor da ternura e se decompõe  em tons nem sempre luminosos.

            Desde pequena, Geni jamais foi poupada desse contínuo confronto cotidiano que separa o negro do branco no Brasil: um desejo de perder a própria cor; uma anestesia diante dos tradicionais epítetos “boneca de piche”, “cabelo de Bom Bril”; um medo de se expressar em voz alta; uma crença de que a divindade só pode ser branca; um perceber o antagonismo entre a história que lhe é contada por uma preta velha e o discurso oficial.  E, assim, percorre o caminho que a conduz à consciência de si mesma e do lugar que deve ocupar na sociedade:  o lugar de vocês é dar duro na lavoura, diz o administrador da fazenda a seu pai quando sabe que Geni está estudando.

            Mas, menina ainda, ela  recusa a trilha aconselhado ou imposta. Venceu os obstáculos – e ser mulher, e ser pobre, e ser preta – para chegar onde pretendia. E foi além. A cor da ternura      recebeu o Prêmio Jabuti – autor revelação de 1990. Antes disso, já havia publicado dois livros de poemas ( Da flor e afetos e Terceiro filho) e um livro de contos (  Leite de peito). Foi além porque compreendeu quem era  e soube mensurar a força da sua palavra. Acreditando que o ato de escrever é o veículo de exteriorização da situação de um povo dentro da sociedade e pode com isso motivar mudanças  Geni Guimarães não escreve por escrever mas para conscientizar e alertar.

            Num Continente onde, por vontade dos homens, grassa a desarmonia, criar a beleza e dela fazer um arma é, certamente, um belo destino.

domingo, 3 de novembro de 1991

Para um mercado comum da cultura da América Latina


             Voltado, sempre, para os pólos irradiadores de cultura e, em geral, submisso as  suas diretrizes, o Brasil tem ignorado as expressões artísticas latino-americanas para consumir música, teatro, cinema, literatura, geralmente de qualidade medíocre e até execrável, mas que, por ser importada do Primeiro Mundo, ganha, por isso, uma chancela de  qualidade.      

            Algumas vezes, qualidades, efetivamente, existem. No entanto, por expressarem situações próprias de países  com outros graus de cultura e outros status econômico-social, diferindo da realidade de um país do Terceiro Mundo ( o Brasil, ameaçado de transmigrar para níveis mais baixos), só podem ser usufruídos por uma ínfima parcela da população. Por sua vez, a Lei 5692/71 ao reestruturar o ensino secundário, pretensamente possibilitou ao aluno optar por uma das cinco línguas estrangeiras modernas. Mas, de fato, levou  o ensino do idioma estrangeiro, no segundo grau, a um mono-lingüismo extremamente limitante e cerceador. Desde então, a visão de mundo do estudante brasileiro passou a ser perigosamente simplista porque espelhado numa única expressão cultural importada e, assim, colonizante.

            Além disso, seja pela má formação dos professores, seja pela própria situação  decadente da Escola Brasileira,  o aprendizado do idioma estrangeiro mostrou-se inóquo pois, dificilmente,  alguém que tenha aprendido a língua inglesa no seu currículo escolar é capaz de entender um breve texto de jornal ou uma simples instrução para o uso correto de um aparelho de som ou máquina fotográfica, redigido em inglês, para ficar, apenas, nesses dois exemplos.

            Todavia, dois anos de aprendizado de espanhol seriam perfeitamente suficientes para a aquisição das quatro habilidades lingüísticas (leitura, compreensão, redação e expressão oral) o que permitiria o acesso a toda sorte de informação e nas mais diversas áreas, tendo em vista o que é publicado nessa língua.


            É evidente que tornar possível o acesso a esse material bibliográfico exigiria que fossem postos em prática os acordos culturais que existem entre o Brasil e vários países de língua espanhola, isentando  o comercio  de livros das taxas de importação que torna proibitiva para a grande maioria, a compra de livros estrangeiros.

            Extremamente auspiciosa é, pois, a instalação no Brasil da Editora Fondo de Cultura Econômica. Fundada no México em 1934, com a intenção de publicar apenas livros de Economia, hoje, com um imenso e variado catálogo, seus títulos mais procurados são os de Filosofia, História, Economia e Literatura. Trata-se de uma presença que irá propiciar a oportunidade de comprar, no Brasil, obras em espanhol que até, então, sempre tam sido de difícil e cara  aquisição.

            Tendo, igualmente, por objetivo a tradução para o espanhol de obras de autores brasileiros, a Editora Fondo de Cultura Econômica irá possibilitar, também, a sua leitura em todo o Continente, mercê de sua presença em vários países da América Latina.

            Num momento em que os governos do Continente  mostram intenções de estreitar laços através de acordos econômicos, um Mercado Comum da Cultura da América Latina, cujas bases a Editora Fondo de Cultura Económica pretende implantar, significa importantíssimo  passo para a integração do Brasil no Continente Latino-americano.