Há
cinquenta anos atrás, um júri do qual fazia parte John dos Passos, lhe concedia
o Prêmio do Concurso Romance Latino-americano, promovido, nos Estados
Unidos, por dois editores
norte-americanos e um editor inglês. Ciro Alegria, peruano, estava no Chile expatriado por razões
políticas e foi lá, que uma editora chilena publicou El mundo es ancho y
ajeno. Sete anos depois, traduzido para muitos idiomas, em espanhol, já
estava na sua sétima edição. Tal sucesso de um livro latino-americano (o próprio
Ciro Alegría o considerou um fenômeno digno de estudos) se explica,
certamente, - e isto não põe em causa a qualidade da obra -
por esse reconhecimento de valor,
outorgado num país, que sem dúvida, determina tudo o que acontece ou deve
acontecer no Continente. E foi, certamente, o prêmio recebido, o responsável
pela tradução de El mundo es ancho y ajeno no Brasil onde foi
publicado na coleção “Fogos cruzados” da
José Olympio, constituída, exclusivamente, até então, de autores europeus e
norte-americanos. Reconhecido no Primeiro Mundo, El mundo es ancho y ajeno teve
as portas das editoras abertas e, logo, também as das Universidades
latino-americanas e européias onde passou a ser estudado. Mais tarde, Ciro
Alegría se refere às inumeráveis perguntas sobre o romance e que ele acredita
de seu dever, responder. E, efetivamente, o faz no prólogo que escreveu para a
décima edição da Losada. Entre as várias questões que responde – elogios,
críticas, interrogações sobre personagens e situações do romance, - ele conta
sobre as condições que permitiram a composição da obra, se alonga sobre as
vivências que a alimentaram e, principalmente, aquelas que constituíram a sua
gênese, esses primeiros anos passados no interior do país, na região andina: Mulheres da raça milenária me embalaram nos seus braços, me ajudaram a andar; com as crianças índias,
brinquei quando era pequeno; ficando
maior, trabalhei com peões índios e mestiços nos trabalhos agrários e rodeios. Nos braços de uma moça trigueira se alvorotou em mim o amor como um
amanhecer quíchua. E na áspera terra
de sulcos abertos sob os meus pés e severas montanhas diante de mim, aprendi a
positiva lei do homem andino. Soube, também de sua dor.
A
partir, então, desse profundo e emocionante conhecimento, se efetivará a
construção do romance: muitos personagens, muitas situações, fortes e belas
pinceladas da paisagem andina, ritos ancestrais, descrições de colheitas e
rodeios, dos trabalhos nas plantações de coca e nos seringais acompanham Rosendo Maqui, o chefe índio, na sua luta para
defender a terra da comunidade.
Uma
narrativa tradicional, feita por um narrador que sabe tudo de seus personagens
quando assim o deseja. E que permite que se diluam as fronteiras estabelecidas
entre narrador e autor, consentindo a presença, na primeira pessoa plural,
dessa voz intrusa de que fala o crítico argentino Oscar Tacca em Instancia
de la novela (Buenos Aires, Marymar, 1980): retomando o Michel Butor de L’espace
du roman, Oscar Tacca considera “voz intrusa” aquela que no romance
explicita dúvidas, interrogações, apreciações, reflexões, generalizações, à margem do texto narrativo, como se o autor
não confiasse inteiramente no narrador.
Em
El mundo es ancho y ajeno, a “voz intrusa” enuncia reflexões sobre a
própria narrativa e, por vezes, dessa narrativa é diretriz. Ou, retardando
informações por não considerar oportuno oferecê-las ou porque pretende fazê-lo
mais a diante; ou, optando pela introdução de uma nova história; ou,
confessando ignorância sobre um determinando personagem ou até sobre a passagem
do tempo.
Ao
se servir desse recurso narrativo, Ciro Alegria mascara uma afetividade que
irá, então, emergir das palavras do narrador. Dois exemplos bastam: “a voz
intrusa” como que por acaso, diz ignorar quanto tempo – seis meses, dois anos?
- passou desde que viu Rosendo Maqui
pela última vez. Anteriormente, hesitara
na apelação do personagem porque as palavras possíveis não seriam completas para nomeá-lo. Ao narrador caberá contar da
terrível solidão de Rosendo Maqui na prisão. Também, será ele que irá usar
sempre que se referir a Rosendo Maqui
dos termos mais elogiosos.
Esse
entrelaçar de vozes que ora se aproximam ora se distanciam, cria um universo
que deve permanecer intocado mas, também, transformar-se muito para poder ser
justo. Assim o anseia a emoção vivida daquele que narra.
Foi
esse universo e foram esses anseios que percorreram o mundo por obra e graça de
um concurso. Para a glória do Continente, a bela voz de Ciro Alegria se fez,
então, ouvir.


