domingo, 7 de abril de 1991

Os descobridores III

            Em busca de especiarias, partiram duzentos e cinqüenta homens nas cinco naus e navegaram três anos. Voltaram dezoito e com as mãos vazias. Haviam sido movidos como fantoches pela vontade soberana de Carlos V da Espanha.
            A travessia tinha por trilha o sofrimento físico e moral desse punhado de homens que, cegamente, obedeciam embora tendo por comida apenas umas bolachas duras e por bebida um pouco de água fétida. Obedeciam, talvez, sem saber que a voz de mando era a de alguém em cuja mesa havia faisão com gengibre e vinho com canela.
            Sofriam fome e frio e solidão na incerteza de um destino entregue ao capitão da esquadra: Fernando de Magalhães. Era ele o dono absoluto da rota, o absoluto senhor de suas vidas. Na busca de Maluco – ilha prenhe de especiarias – que procurava alcançar, navegando pelo oeste, a lembrança da mulher e do filho não eram amarras para ele, tampouco o sofrimento de seus homens.
            Escravo de seus próprios sonhos, escondido nas suas vestes de ferro, o capitão das cinco naves é possuído somente pela vontade de vencer o mar-oceano.
            Entre as sedas e os perfumes, entre as cortesãs e  os arminhos, querendo, ainda, ampliar seus domínios,  sem se submeter a riscos nem  trabalhos, o rei da Espanha apenas enuncia o seu querer. Meras sombras são, para ele, os homens que o executam. Todos sem rosto, sem mãos, sem pés, sem membros, sem olhos, sem bocas, sem orelhas, sem cu, sem cheiros. Somente nomes e cifras nuns livros de capas negras.
            No meio deles, apenas o truão Juanillo Ponce que viveu a aventura da viagem, sofreu-lhe as agruras, emocionou-se nos momentos felizes ou cruéis, conserva, ao longo de seu relato, uma lucidez que lhe permite constatar a distância que permeia entre essa tripulação  e o rei ancorado no seu luxo. Permite-se até observar identidades: São duzentos e tantos homens como Vós, não tão reais, nem menos reais. Com sede, com fome, com sono, com ilusões, com medo. Grandes e pequenos. Ricos e pobres. Poderosos e insignificantes. Capazes de gozar de um bom vinho, de uma boa fêmea, de uma ensolarada manhã, de uma comida qualquer com ou sem especiarias. Com náuseas, dor nas tripas e vontade de mijar a toda hora e de chorar de vez em quando. Como tu, eles gostam de amar, de se coçar, rir contar devaneios.
            Igualdade que, certamente, não explica porque para muitos é tanta a miséria e para poucos, tão grande o luxo.
 
            Pela ousadia de pensar e por aquela de expressar seu pensamento é que Juanillo Ponce, um dos dezoito homens que voltaram da tormentosa viagem, recebe o castigo. O arbítrio do Poder fez com que seu nome desaparecesse das listas dos sobreviventes e assim, pobre e velho, não recebesse da Monarquia a pensão que lhe seria  devida.
            Falar das misérias da viagem, dos erros e das injustiças cometidas, desdizer das “patranhas” dos cronistas oficiais teve, para ele, um preço.
            Para  o outro Ponce, o ficcionista uruguaio, Napoleón Baccino Ponce de Leon que quatrocentos e trinta e dois anos depois fala pela boca de Juanillo, o bufão da esquadra, o destino foi outro: seu romance Maluco, la novela de los descubridores, verdadeiramente transformou em História essa ficção que tem sido a História do Continente.
            Recebeu por ela o Prêmio Casa de las Américas de 1989.

Nenhum comentário:

Postar um comentário