Em busca de
especiarias, partiram duzentos e cinqüenta homens nas cinco naus e navegaram três anos. Voltaram dezoito e com as mãos
vazias. Haviam sido movidos como fantoches pela vontade soberana de Carlos V da
Espanha.
A
travessia tinha por trilha o sofrimento físico e moral desse punhado de homens
que, cegamente, obedeciam embora tendo por comida apenas umas bolachas duras e
por bebida um pouco de água fétida. Obedeciam, talvez, sem saber que a voz de
mando era a de alguém em cuja mesa havia faisão com gengibre e vinho com
canela.
Sofriam
fome e frio e solidão na incerteza de um destino entregue ao capitão da
esquadra: Fernando de Magalhães. Era ele o dono absoluto da rota, o absoluto
senhor de suas vidas. Na busca de Maluco – ilha prenhe de especiarias – que
procurava alcançar, navegando pelo oeste, a lembrança da mulher e do filho não
eram amarras para ele, tampouco o sofrimento de seus homens.
Escravo
de seus próprios sonhos, escondido nas suas vestes de ferro, o capitão das
cinco naves é possuído somente pela vontade de vencer o mar-oceano.
Entre
as sedas e os perfumes, entre as cortesãs e
os arminhos, querendo, ainda, ampliar seus domínios, sem se submeter a riscos nem trabalhos, o rei da Espanha apenas enuncia o
seu querer. Meras sombras são, para ele, os homens que o executam. Todos sem rosto, sem mãos, sem pés, sem
membros, sem olhos, sem bocas, sem orelhas, sem cu, sem cheiros. Somente nomes
e cifras nuns livros de capas negras.
No
meio deles, apenas o truão Juanillo Ponce que viveu a aventura da viagem,
sofreu-lhe as agruras, emocionou-se nos momentos felizes ou cruéis, conserva,
ao longo de seu relato, uma lucidez que lhe permite constatar a distância que
permeia entre essa tripulação e o rei
ancorado no seu luxo. Permite-se até observar identidades: São duzentos e tantos homens como Vós, não tão reais, nem menos reais.
Com sede, com fome, com sono, com ilusões, com medo. Grandes e pequenos. Ricos
e pobres. Poderosos e insignificantes. Capazes de gozar de um bom vinho, de uma
boa fêmea, de uma ensolarada manhã, de uma comida qualquer com ou sem
especiarias. Com náuseas, dor nas tripas e vontade de mijar a toda hora e de
chorar de vez em quando. Como tu, eles gostam de amar, de se coçar, rir contar
devaneios.
Igualdade
que, certamente, não explica porque para muitos é tanta a miséria e para
poucos, tão grande o luxo.
Pela
ousadia de pensar e por aquela de expressar seu pensamento é que Juanillo
Ponce, um dos dezoito homens que voltaram da tormentosa viagem, recebe o
castigo. O arbítrio do Poder fez com que seu nome desaparecesse das listas dos
sobreviventes e assim, pobre e velho, não recebesse da Monarquia a pensão que
lhe seria devida.
Falar
das misérias da viagem, dos erros e das injustiças cometidas, desdizer das
“patranhas” dos cronistas oficiais teve, para ele, um preço.
Para o outro Ponce, o ficcionista uruguaio,
Napoleón Baccino Ponce de Leon que quatrocentos e trinta e dois anos depois
fala pela boca de Juanillo, o bufão da esquadra, o destino foi outro: seu
romance Maluco, la novela de los descubridores, verdadeiramente
transformou em História essa ficção que tem sido a História do Continente.
Recebeu
por ela o Prêmio Casa de las Américas de 1989.
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