domingo, 14 de abril de 1991

Em tons de negro

            As estatísticas oficiais referem ou como três ou como cinco por cento a mestiçagem no Uruguai e nessa porcentagem estão incluídos, também,  os negros.
Esse número, tão pequeno, que se dilui entre o número de mestiços e o de uma população branca dominante, não foi razão suficiente para marginalizar os negros das expressões artísticas do país. Na poesia, é tema de Idelfonso Pereda Valdés; na prosa, figura central da narrativa de Mario Delgado Aparaín.
Nascido no interior do Uruguai, um dos mais importantes representantes da narrativa contemporânea de seu país, é, certamente, um inovador. Um inovador da linguagem que permanece fiel à expressão popular cujo registro é enriquecido por uma criatividade impermeável às influências forâneas e aos modismo e que se nutre das próprias vivências.
           Enraizado na sua paisagem e nos homens que dela fazem parte, sua narrativa  flui de um universo  do Continente ainda não contaminado e do qual ele extrai facetas que só uma sensibilidade privilegiada permite discernir e mensurar.
No primeiro livro que publicou, Causa de buena muerte (Arca, Montevideu, 1982), o pequeno conto que lhe dá o título, congrega essas duas qualidades e outra, igualmente, admirável: a construção do personagem a partir de um humilde detalhe, de um pequeno traço,  que, haja visto a sua expressividade, se  mostram suficientes para conceder-lhe a força das criaturas inesquecíveis.
“Causa de buena muerte” é um conto de quatro páginas e construído em cinco tempos. Um texto inicial resume  o destino do negro Peixoto. Morreu bêbado e afogado no rio por não querer trançar um laço para o filho do patrão. Seguem-se quatro narrativas, quatro versões dessa morte: a do delegado, a da  viúva, a do filho do patrão e a do negro que falou com Peixoto depois  de  morto. Cada uma dessas vozes, narra o episódio a partir de um determinado ângulo e numa linguagem que se integra, perfeitamente, com o personagem que o enuncia: o delegado, relatando a parte; a mulher, contando como o encontrou, depois de uma ausência de dias em que esteve ausente por ter ido parir na vila; o filho do patrão, dizendo que atingiu Peixoto com o látego; o negro que pescava e viu Peixoto sob as águas, esclarecendo as razões de seu suicídio: haver sido marcado no rosto pelo chicote do filho do patrão, não poder matá-lo para lavar a ofensa, nem tampouco poder continuar vivendo com essa marca no rosto. No relato de cada um, acrescentando-se, os elementos que desenham os personagens. Apresentado como aquele que se afogou por excesso de bebida, revela-se, nas palavras do pescador, um homem que deve matar para poder usufruir do respeito que se deve a si mesmo. Para não matar, opta pelo suicídio. Entra rio adentro, deixando na margem a mulher com o filho recém nascido.
Mario Delgado Aparaín é um escritor branco que ficou imune ao maniqueísmo piedoso que, em geral, rege o texto sobre as minorias oprimidas.E isto, também, o coloca num lugar de destaque na Literatura do Continente.
Peixoto, o seu personagem é um homem submisso aos valores da hombridade (deve-se ter o discernimento do touro, não do boi) e submetido às leis de uma sociedade estratificada em classes ( se o rico bater no rosto do pai, mais tarde, baterá no rosto do filho) .Ele, apenas, quis permanecer inteiro.

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