domingo, 28 de abril de 1991

Vôo sem retorno

            Eduardo Galeano conta-lhe a tragédia em El libro de los abrazos. A do homem procurado pelas forças da repressão que, não o encontrando, carregam, em seu lugar, os filhos. Torturada, devolvem a filha. O filho e sua companheira grávida nunca mais voltaram. E Galeano se pergunta, ao longo desses anos todos que já passaram, como pode um pai sobreviver sem que se lhe apague a alma não somente diante da grande ausência mas face a essa terrível sensação de vida usurpada.
            Juan Gelman, o poeta,  sobreviveu e não se calou. Continua a exercer o seu ofício no irreversível e cruel cotidiano que lhe coube. Até porque, muitos anos antes, embora sem o ter sentido na própria carne, ele havia sido presa da dor dos outros. A dor que no Continente, tantas vezes, advém de um destino comandado por estruturas injustas contra as quais ele se insurgiu optando, no desejo de destruí-las, pela facção mais drástica de luta.
            E, seguindo sua vocação primeira, por uma  poesia que não se encerra no individualismo adolescente mas canta a cidade onde nasceu e as vítimas da violência urbana: os que estão sem trabalho, os que, dos andaimes, voam para o abismo sem volta.
            Roberto, José, Antonio, Juan, Esteban  / sob seus nomes de pedreiros foram embora da vida estrofe de “ Accidente en la construción”, poema que faz parte do livro El juego em que andamos, publicado em 1959. Tema que vai reaparecer em 1962, quando publica Gotán e, nele, “ Pedro el albañil.”.   O poema, nas suas quatro estrofes, conta esse viver de Pedro que, levantando paredes e imaginando o que iriam conter entre elas – ódio, amor –, cantava e tinha as mãos endurecidas e as palavras de ternuras e de tristezas. De noite punha as mãos para dormir.
            Um dia, ele caiu do andaime. Morto, parecia ter, ainda, contida na garganta um pergunta enquanto, em silêncio, seus companheiros esperavam. Até vir a ordem: Levem o defunto. Em Pedro, útil enquanto mãos laboriosas, indesejável máquina parada quando morto, se desenham os trabalhadores deste Continente sem leis.
            Na busca de uma real justiça social é que Juan Gelman, nascido em 1930, em Buenos Aires, se quer poeta e militante.
            Saberia ele que, ao escolher o seu caminho – poetar testemunhando sofrimentos, buscar a paz e o alimento para os outros – o levaria, mais tarde, ao abismo sem retorno que se tornou sua vida dominada pelas ausências?

domingo, 21 de abril de 1991

Orações

            “Oración de um desocupado” e “Oración”, poemas sínteses de uma poesia que emana do amor. Daquele que une o poeta aos marginalizados, aos silenciados e daquele que o habita, ancorado no corpo e na alma da mulher amada.
            Desde muito jovem, Juan Gelman procurou uma nova linguagem poética, alimentada no falar cotidiano. Ao se definir politicamente – homem e cidadão dedicado à militância política – nessa  linguagem que encontrou, vai falar de um universo cuja existência deveria, no entender de alguns, permanecer nas brumas.
            Trazendo-os  à luz, faz versos sem inocência onde afloram suas convicções. Enovelados nessa luta pelo viver dos outros que escolheu, suas convicções acabaram por lhe trazer dias de sofrimento irremediavelmente cruéis.
 
            O  pequeno livro que, em 1968, a Casa de las Américas publicou na sua coleção La Honda, se compõe de poemas pertencentes a vários livros anteriores – Violín y otras cuestiones, El juego em que andamos, Velórios del solo, Gotán, Cólera buey – que apareceram entre 1956 e 1965. Nele, sobressai um  lirismo que diante das coisas simples  e cotidianas, se fixa no homem que as habita e  é depositário das injustiças: o que faz greve e olha para as mãos paradas, o que vai-se embora da vida sob o seu nome de pedreiro, o que foge, o que foi preso, o que mata para se defender, o que morre para que haja futuro.
            “Oración de um desocupado” se inicia com um verso  feito apenas da palavra “padre” (pai). Com ela invoca não o padre eterno como poderia sugerir o título do poema, mas o pai, já morto e que talvez esteja no céu. Invoca não para pedir ou para esperar porque, certamente, nem forças tem para crer. Invoca para se queixar da fome, do frio, da fúria da cidade. Invoca para interrogar o pai e, sobretudo, para se interrogar: te digo que não entendo, Pai. Nas suas interrogações, as de um homem perdido e sem caminho,  o germe da violência, o nascimento do animal furioso que só tem a raiva como amparo e arma.
            “Oración” é o poema para a amada. Pede ou ordena ser possuído. Os versos límpidos, de uma aparente ingenuidade adolescente, deixam perceber a entrega maior de quem já se entregou e que se compraz na entrega. Almejando a posse que, então, será a trégua, talvez. Não isenta, porém, de ameaça, sombra escura, condição humana, sempre: A solidão, seus corvos, seus cães, seus pedaços, versos que finalizam o poema.
            Como se invocar ou ordenar ou pedir pudesse ser talismã  para a vida no Continente. Vida que está aí, próxima, furiosa, injusta.
            Juan Gelman, nascido em Buenos Aires em 1930, ainda espera ou, pelo menos, num momento de sua vida, acreditou esperar:  
                                        Na cidade que geme como louca
                                               o amor conta baixinho
                                               os pássaros que morreram contra o frio,
                                               as prisões, os beijos, a solidão, os dias
                                               que faltam para a revolução. 

domingo, 14 de abril de 1991

Em tons de negro

            As estatísticas oficiais referem ou como três ou como cinco por cento a mestiçagem no Uruguai e nessa porcentagem estão incluídos, também,  os negros.
Esse número, tão pequeno, que se dilui entre o número de mestiços e o de uma população branca dominante, não foi razão suficiente para marginalizar os negros das expressões artísticas do país. Na poesia, é tema de Idelfonso Pereda Valdés; na prosa, figura central da narrativa de Mario Delgado Aparaín.
Nascido no interior do Uruguai, um dos mais importantes representantes da narrativa contemporânea de seu país, é, certamente, um inovador. Um inovador da linguagem que permanece fiel à expressão popular cujo registro é enriquecido por uma criatividade impermeável às influências forâneas e aos modismo e que se nutre das próprias vivências.
           Enraizado na sua paisagem e nos homens que dela fazem parte, sua narrativa  flui de um universo  do Continente ainda não contaminado e do qual ele extrai facetas que só uma sensibilidade privilegiada permite discernir e mensurar.
No primeiro livro que publicou, Causa de buena muerte (Arca, Montevideu, 1982), o pequeno conto que lhe dá o título, congrega essas duas qualidades e outra, igualmente, admirável: a construção do personagem a partir de um humilde detalhe, de um pequeno traço,  que, haja visto a sua expressividade, se  mostram suficientes para conceder-lhe a força das criaturas inesquecíveis.
“Causa de buena muerte” é um conto de quatro páginas e construído em cinco tempos. Um texto inicial resume  o destino do negro Peixoto. Morreu bêbado e afogado no rio por não querer trançar um laço para o filho do patrão. Seguem-se quatro narrativas, quatro versões dessa morte: a do delegado, a da  viúva, a do filho do patrão e a do negro que falou com Peixoto depois  de  morto. Cada uma dessas vozes, narra o episódio a partir de um determinado ângulo e numa linguagem que se integra, perfeitamente, com o personagem que o enuncia: o delegado, relatando a parte; a mulher, contando como o encontrou, depois de uma ausência de dias em que esteve ausente por ter ido parir na vila; o filho do patrão, dizendo que atingiu Peixoto com o látego; o negro que pescava e viu Peixoto sob as águas, esclarecendo as razões de seu suicídio: haver sido marcado no rosto pelo chicote do filho do patrão, não poder matá-lo para lavar a ofensa, nem tampouco poder continuar vivendo com essa marca no rosto. No relato de cada um, acrescentando-se, os elementos que desenham os personagens. Apresentado como aquele que se afogou por excesso de bebida, revela-se, nas palavras do pescador, um homem que deve matar para poder usufruir do respeito que se deve a si mesmo. Para não matar, opta pelo suicídio. Entra rio adentro, deixando na margem a mulher com o filho recém nascido.
Mario Delgado Aparaín é um escritor branco que ficou imune ao maniqueísmo piedoso que, em geral, rege o texto sobre as minorias oprimidas.E isto, também, o coloca num lugar de destaque na Literatura do Continente.
Peixoto, o seu personagem é um homem submisso aos valores da hombridade (deve-se ter o discernimento do touro, não do boi) e submetido às leis de uma sociedade estratificada em classes ( se o rico bater no rosto do pai, mais tarde, baterá no rosto do filho) .Ele, apenas, quis permanecer inteiro.

domingo, 7 de abril de 1991

Os descobridores III

            Em busca de especiarias, partiram duzentos e cinqüenta homens nas cinco naus e navegaram três anos. Voltaram dezoito e com as mãos vazias. Haviam sido movidos como fantoches pela vontade soberana de Carlos V da Espanha.
            A travessia tinha por trilha o sofrimento físico e moral desse punhado de homens que, cegamente, obedeciam embora tendo por comida apenas umas bolachas duras e por bebida um pouco de água fétida. Obedeciam, talvez, sem saber que a voz de mando era a de alguém em cuja mesa havia faisão com gengibre e vinho com canela.
            Sofriam fome e frio e solidão na incerteza de um destino entregue ao capitão da esquadra: Fernando de Magalhães. Era ele o dono absoluto da rota, o absoluto senhor de suas vidas. Na busca de Maluco – ilha prenhe de especiarias – que procurava alcançar, navegando pelo oeste, a lembrança da mulher e do filho não eram amarras para ele, tampouco o sofrimento de seus homens.
            Escravo de seus próprios sonhos, escondido nas suas vestes de ferro, o capitão das cinco naves é possuído somente pela vontade de vencer o mar-oceano.
            Entre as sedas e os perfumes, entre as cortesãs e  os arminhos, querendo, ainda, ampliar seus domínios,  sem se submeter a riscos nem  trabalhos, o rei da Espanha apenas enuncia o seu querer. Meras sombras são, para ele, os homens que o executam. Todos sem rosto, sem mãos, sem pés, sem membros, sem olhos, sem bocas, sem orelhas, sem cu, sem cheiros. Somente nomes e cifras nuns livros de capas negras.
            No meio deles, apenas o truão Juanillo Ponce que viveu a aventura da viagem, sofreu-lhe as agruras, emocionou-se nos momentos felizes ou cruéis, conserva, ao longo de seu relato, uma lucidez que lhe permite constatar a distância que permeia entre essa tripulação  e o rei ancorado no seu luxo. Permite-se até observar identidades: São duzentos e tantos homens como Vós, não tão reais, nem menos reais. Com sede, com fome, com sono, com ilusões, com medo. Grandes e pequenos. Ricos e pobres. Poderosos e insignificantes. Capazes de gozar de um bom vinho, de uma boa fêmea, de uma ensolarada manhã, de uma comida qualquer com ou sem especiarias. Com náuseas, dor nas tripas e vontade de mijar a toda hora e de chorar de vez em quando. Como tu, eles gostam de amar, de se coçar, rir contar devaneios.
            Igualdade que, certamente, não explica porque para muitos é tanta a miséria e para poucos, tão grande o luxo.
 
            Pela ousadia de pensar e por aquela de expressar seu pensamento é que Juanillo Ponce, um dos dezoito homens que voltaram da tormentosa viagem, recebe o castigo. O arbítrio do Poder fez com que seu nome desaparecesse das listas dos sobreviventes e assim, pobre e velho, não recebesse da Monarquia a pensão que lhe seria  devida.
            Falar das misérias da viagem, dos erros e das injustiças cometidas, desdizer das “patranhas” dos cronistas oficiais teve, para ele, um preço.
            Para  o outro Ponce, o ficcionista uruguaio, Napoleón Baccino Ponce de Leon que quatrocentos e trinta e dois anos depois fala pela boca de Juanillo, o bufão da esquadra, o destino foi outro: seu romance Maluco, la novela de los descubridores, verdadeiramente transformou em História essa ficção que tem sido a História do Continente.
            Recebeu por ela o Prêmio Casa de las Américas de 1989.