domingo, 31 de março de 1991

Os descobridores II

            Juanillo Ponce, filho bastardo e bufão, quando lhe morre o amo fica sem ter o que comer e sem ter onde dormir. Então, ele se inscreve, como Bobo, na esquadra de Fernando de Magalhães. E, ser o Bobo dessa espécie de pequena corte flutuante era o que lhe competia. Foi o que fez e, assim, contando histórias picantes para distrair os marinheiros, acredita ter feito tanto pela empresa do rei da Espanha quanto a obstinação dos capitães.
            Mas, a solidão em que mergulharam os tripulantes das naves ao se ver em alto mar, os medos e as tristezas, fizeram de Juanillo Ponce um confidente generoso, disposto a ouvir e a aconselhar, eventualmente a inventar imagens para proporcionar o consolo que lhe é pedido. As histórias que lhe contam, ele as insere na longa carta, enviada ao rei Dom Carlos da Espanha, sobre os azares da expedição. Primeiro, a história de Francisco. Tão maltratado vivia nesse ninho de grilos que era o seu povoado e tão defendido foi, por Blas, que dele teve pena, que passa a segui-lo por onde quer que vá. Também, o seguiu na aventura de se embarcar na armada que recrutava gente para uma viagem de rumo desconhecido. Quando, no meio do oceano, a névoa envolve a esquadra e diante da tripulação assombrada, faz aparecer a visão de um navio à deriva, Francisco quis  desvendar-lhe o mistério. Da caravela em que estava entre os seus, pulou para a outra,  apenas vislumbrada da qual somente era possível perceber as velas em frangalhos, o casco semelhante a esses troncos que flutuaram anos pelo mar e que, talvez só existisse nas palavras que a descreviam. Francisco desapareceu na névoa, no mar ou no interior da caravela real ou fantástica que o atraíra para um abismo qualquer. Nele, não estaria pior que no povoado perdido onde nascera, consola-se Blas, o seu amigo.
            Outra história que Juanillo Ponce conta ao rei é a do capelão da esquadra, Sánchez de Reina, que sonhava ser Bispo. Cheio de entusiasmo, ele chega para se ocupar de sua primeira paróquia: pobre e de pobres e simples filigreses cujos horizontes não ultrapassam os limites do povoado. Já se acostumara, esquecendo os sonhos, com  a rotina dos sermões, com os passeios ao entardecer, com as festas religiosas, sempre iguais. E era velho e querido quando foi designado para acompanhar a esquadra. Lembrou-se da Catedral de seus sonhos e partiu, deixando para trás seus paroquianos a lhe acenarem.

            Encouraçado na sua armadura de ferro, também Fernando de Magalhães sentiu medo. Nas noites insones, chamava o bufão para que lhe contasse o que fazia naquele momento, Beatriz, sua mulher. Sem conhecer respostas para tal pergunta, Juanillo Ponce inventava. O capitão aceitava-lhe os embustes e, consolado, continuava a perseguir o seu próprio sonho: percorrer o caminho que traçara nas ondas do mar. Singelos e comoventes dramas,  que se aninham nessas caravelas, sombras que se esfumaram, delas só permanecendo o feito da vitória.
            Napoleão Baccino  Ponce de Leon, o romancista uruguaio Prêmio Casa de las Américas, 1989, seguindo a rota marítma de uma travessia, a de Fernando de Magalhães, em 1519, se detém nesses destinos que a História oficial ignora. Maluco, la novela de los descubridores (Seix Baral, Barcelona, 1990) narra os grandes e os pequenos feitos dos homens que suportaram tragédias e sofrimentos na busca desses caminhos para o Continente.
            Uma epopéia dos mares em tom de balada.
 

domingo, 24 de março de 1991

Os descobridores I

          Prêmio Casa de las Américas, 1989, Maluco, la novela de los descubridores é o primeiro romance de um uruguaio de quarenta e quatro anos que até então tinha se dedicado, sobretudo, à crítica e ao ensaio.

            Narrativa feita em primeira pessoa por Juanillo Ponce, bufão que, obrigada pelas necessidades, inscrevera-se na armada que partiu da Espanha, sob o comando de Fernão de Magalhães para dar a volta ao mundo. Dos prodígios que viu, das maravilhas e dos prazeres que o extasiaram, das fomes e das dores que sofreu ele quer dar conta a Don Carlos V.

            Não como cronista – aquele que escreve para a glória de seu soberano – mas como quem viveu com todo o seu ser os episódios que narra, Juanillo Ponce refaz o navegar da nau Trinidad e das outras quatro que a acompanhavam, a Victoria, a Santiago, a San Antonio e a Concepción desde que deslizaram pelo rio em busca do mar-oceano.

            Deixam Sevilha para trás, costeiam as Canárias, se detém frente às costas de Serra Leoa e como que eternamente, buscam no sul o caminho para chegar, outra vez, a Sevilha.

            Ao partir, as margens do rio ofertam imagens de um mundo que apenas se move: são meninos  que pescam encarapitados nas velhas pedras de uma ponte moura; são camponeses que, nas vinhas carregam cestos ou que numa cuba  pisam as uvas recém colhidas; são mulheres de preto que se levantam da colheita para olhar os barcos que passam.

            As mesmas imagens esperam pelos barcos quando eles regressam: os meninos estão lá na ponte a pescar; com as cestas nas costas e as uvas sob os pés, lá  estão os camponeses e, também, lá estão as mulheres de negro a fitar o barco que, agora, desliza rio acima.

            Desse mundo estático, fugira Juanillo Ponce.

            Os olhos cheios de formas e de cores jamais vistas ( e pássaros vistosos e árvores imensas); o olfato, rico de odores nunca imaginados ( o aroma adocicado da terra); o coração repleto de conhecimentos da alma  humana que as confidências geradas na solidão lhe foram propiciando, ele volta. Para, outra vez, penetrar no estático, no cristalizado Velho Mundo que condena os que não foram escolhidos por Deus e pelo Rei à miséria e à fome.

            Juanillo Ponce dera volta ao mundo. Pobre, ele partira e, pobre, regressara. Para constar, ele refaz com palavras, a viagem. E capitães e desconhecidos heróis saem das sombras e os barcos adquirem vida e o mar é um personagem.

            Publicado pela Seix Barral de Barcelona,no ano passado, esta saga dos descobridores é mais um capítulo da História do Continente que se escreve. Napoleón Ponce de Leon, conhecedor do mar e dos homens, deles fez poesia, deles tirou verdades.

            E, contando coisas que aconteceram em 1519 ele transcende, disseram os jurados de Havana, a recreação de uma época para elaborar um texto de profunda significação contemporânea.

domingo, 17 de março de 1991

Flechas docemente envenenadas

             Publicado em dezembro de 1989, em Montevidéu, sob a rubrica “Ediciones Del Chanchito” e distribuído pela América Latina, aparecerá, em breve, no Brasil, El Libro de los abrazos de Eduardo Galeano.

            Desde que se iniciou, no jornalismo, com charges políticas, ainda adolescente, trinta e sete anos se passaram para que ele unisse os seus talentos de escritor e de desenhista. Finalmente, eles se abraçam nessa obra, se completam, embora, por vezes, pareçam pertencer a mundos diferentes.

            São duzentas e cinqüenta e oito páginas, onde, contidos por uma linha que lhes impõe fronteiras, reinam  cento e noventa e um texto  e uns cem desenhos.

            Como Dias y noches de amor y de guerra, Prêmio Casa de las Américas, 1978, em cuja epígrafe consta tratar-se de histórias reais, escritas a partir de lembranças do autor, El Libro de los abrazos é, também, um livro de lembranças. Certamente, mais emocionadas.

            Onze anos se passaram entre um livro e outro e foram anos sem inocência para o Continente. A vida firmemente enlaçada à vida de seus semelhantes e às coisas da América, Eduardo Galeano, agora, recorda, retomando a etimologia do verbo latino, voltar a passar pelo coração.

            De suas andanças pelo Continente, de suas tantas extraordinárias vivências, de suas ternuras, resulta um livro  habitado por figuras e atos exemplares que se sobrepõem aos negros abismos de ignorância e maldade que, também, ou , principalmente, fazem a história do Continente.

            Como se possuísse a América inteira, Galeano vai de Manágua a Buenos Aires, de Santiago do Chile a Nova Iorque, de Montevidéu ao México. E a possui, ao permitir-lhe a entrada no coração. É dele que o Continente emerge pela voz das crianças, dos índios, dos presos, das palavras escritas nas paredes.

            Por vezes, são figuras conhecidas as que aparecem. Neruda, Onetti, Benedetti, Cortázer, Árguedas, Gelman. Outras, aquele personagem luminoso, que o acaso colocou no seu caminho e que, recriado por ele, passa a testemunhar a vida do Continente.

            Assim, a risonha história daquele motorista da linha 68 da cidade de Havana que abandona o ônibus que dirigia, mais os seus passageiros, para  se lançar à conquista de uma bela jovem que tomava sorvete na esquina.

            Ou, a tristemente memorável história de Bráulio Gómez, um dos músicos do conjunto “Los Olimareños”. Na prisão, onde havia ido parar por se dedicar à leitura de uma biografia de José Artigas, de alguns poemas de Antonio Machado e do Pequeno príncipe, um soldado, porque sim, lhe pisara sobre os dedos. Ao chegar, exilado, em Barcelona, Eduardo Galeano se ofereceu para fazer-lhe uma entrevista onde pudesse contar isso que lhe acontecera. Bráulio Gómez prefere calar, explicando que cedo ou tarde, a mão iria ficar curada e que ele não desejaria, então, desconfiar dos aplausos.

            Mas, entre emoções  e sonhos e ditos infantis e  encontros  de amizade e acertos com o passado, ainda sobram as histórias que acontecem num Continente habitado por racistas, por preconceituosos, por hipócritas, por oportunistas, por exploradores, por desmemoriados, por colonizados.

            No prazer do texto, na sedução das imagens e das palavras é quando, docemente envenenadas, se inserem as flechas. E delas precisa o Continente.

 

 

 

                                                                               A Cultura do terror /7

                                  

O colonialismo visível te mutila sem dissimulação: te proíbe dizer, te proíbe fazer, te proíbe ser. O colonialismo invisível, ao contrário, te convence de que a servidão é o teu destino e a impotência de tua natureza: te convence de que não se pode dizer, não se pode fazer, não se pode ser. Eduardo Galeano. (tradução de Cecília Zokner).

domingo, 10 de março de 1991

A América inteira

            Mais uma vez, Carlos Fuentes serve-se de uma paixão para contar a História do Continente. A paixão de Baltazar Busto se inicia, fulminante, na véspera do dia 25 de maio de 1810, data da primeira revolução da Independência Argentina. No meio da noite, penetra nos aposentos da Marquesa de Cabra, mulher de alto funcionário da Coroa espanhola e tira-lhe a criança recém nascida que dormia no berço para, em seu lugar, colocar uma criança negra, filha de uma prostituta que fora castigada em praça pública por ser portadora do mal francês. Com esse ato ele procurou fazer justiça.

            Porém, antes de partir com a criança nos braços, pode ver, pela janela, a marquesa através dos tules dos mosquiteiros. Estava de costas, nua e empoava o rosto. Uma visão que nunca mais  o abandonou  e o fez peregrinar pelo Continente quando as lutas afastaram a Marquesa de Buenos Aires. Procurou-a durante onze anos e quando estiveram face a face, ela mal lhe concedeu um olhar. Estavam no México e Baltazar Busto havia atravessado o imenso espaço do Continente para encontrá-la.  No seu caminho sinuoso, a imasgem feminina havia guiado por uma América que se rebelava e, rebelde, o amante foi, também seguindo o seu caminho. De suas terras no pampa argentino ele parte para se luzir na guerra e poder, então, pretendê-la.

            Chile, Peru, Panamá, México. Um Continente em fogo, cujos filhos se degladiam sem saber porque ou por princípios que reacendem aqueles mesmos que desejam substituir. Os conceitos desfilam: igualdade, liberdade, justiça. E quem da Argentina até o México não contém, encerrado no peito, um advogado tratando de se escapar e lançar um discurso. E os vícios se mostram: o racismo, a opressão sem freios, o abuso do poder, o desprezo pelos seres e pelas coisas que povoam essas extensões conquistadas para o sofrimento e para a dor de quase todos.

            Baltazar Busto da cor de avelã, a pele queimada, a cabeleira de mel, a barba e os bigodes loiros e, sobretudo, míope, quer entender o que vê e o que ouve. Para o pai, um gaúcho sem letras, ele havia dito: o que desejo é consolidar alguns direitos pra muitos onde só havia muitos direitos para alguns. Basta terminar com um só abuso, com um só privilégio para que a revolução se justifique.

            Em cada foco de rebelião, em cada guerra, em cada luta presenciada ou vivida, encontrou o desejo do Poder do qual, ainda que por um momento fugaz, ele próprio não foi poupado. De cima de seu cavalo, ele falou aos índios. Numa carta, confessará: Senti-me por um momento, mortalmente orgulhoso, também  de minha superioridade mas, ao mesmo tempo, enamorado da inferioridade alheia.


            E a, assim, mentada inferioridade – dos que não são europeus, dos que não são brancos, dos que não são cultos – irá justificar o dizer dos espanhóis. E disse o Marquês de Cabra: Mestiço de merda, limpa as barracas,faz a minha cama, esfrega o chão, desinfeta as retretas, traz lenha, me serve água, não reclames se te dou um ponta-pé no traseiro, não deixes escapar um suspiro se te esbofeteio, não levantes a cabeça se eu te digo de olhar os meus pés, mestiço de merda, pois nem à altura de meus pés chega a tua alma, se é que a possuis, pobre diabo.

            Diante dos quadros do cotidiano que se repetem no Continente, nada ficou sem dizer neste definitivo dizer do Marquês. Modelo e lei que ainda reinam.

            Em La campaña, romance publicado pelo Fondo de Cultura Econômica em 1990, década de repensar a conquista da América, Carlos Fuentes não escamoteia o que somos.

domingo, 3 de março de 1991

Cara e coroa

            Cinquenta textos jornalísticos de Eduardo Galeano, escritos entre 1962 e 1987, foram publicados em Montevidéu sob o título Entrevistas y artículos.


            Embora alguns tenham sido escritos há quase trinta anos, originados, por vezes, de interesses circunstanciais, não perderam  a atualidade que lhes é conferida pela agudeza dos conceitos críticos e pela oportunidade das observações sobre a América Latina que, avançando tão lentamente nos seus progressos, faz com que as palavras de Eduardo Galeano continuem a ser pertinentes.

            Convencido de que o conhecimento da América deve anteceder as transformações, a sua linear trajetória jornalística de vinte e cinco anos vai construir o mapa do Continente como ele é: feito de luz e de sombra.

            No artigo datado de 1978, “Los esclavos de la abundancia”, Eduardo Galeano comenta um livro francês, A traição da opulência.  Seus autores, Jean Pierre Dupuy e Jean Robert sustentam que as atividades destinadas a ganhar tempo, cada vez mais, ocupam mais tempo porque o tempo, na civilização ocidental contemporânea se converteu em algo passível de consumo, compra, intercâmbio e acumulação. Tal visão de mundo, norteando o cotidiano dos homens, os afasta do ritmo que lhes é propício e na vertigem de seu dia a dia lhes ocasiona um mau estar impossível de ser confessado e que se mostra, então, sob a forma de doença. Daí, que na maior parte dos países europeus, os gastos com remédio e atenção médica tiveram, na década de 70, um acréscimo de 10% ao ano, segundo cálculo de Archibal Cochrane  no seu livro Reflexões sobre a eficácia da medicina, um estudo sobre os  profissionais da dor humana. Os dados que o autor, um médico dinamarquês, apresenta, são estarrecedores ao deixar claro o desprezo do homem pelo seu semelhante. Desprezo que se mascara, tendenciosamente, em consultas, exames, receitas caríssimas ou em tratamento que põe em risco a integridade física ou mental do paciente quando não a própria vida.

            Trabalhando doidamente, para doidamente consumir  e se encontrar submergido em objetos inúteis e supérfluos – Eugène Ionesco já o anunciara em  Les chaises  e Elio Petri, tão perfeitamente, no filme A classe operária vai para o paraíso  - o homem do Primeiro Mundo é vítima da opulência.

            Enquanto isso, aquele que nasce no Continente à margem das ilhas de desenvolvimento (que oferecem a certos latino-americanos a ilusão de pertencerem a países desenvolvidos)  se afoga no poço incomensurável das grandes ausências.

            São numerosos os artigos de Eduardo Galeano que denunciam essa falta de tudo. .Exemplares, até porque  mudados os espaços, as circunstâncias, as situações, eles retratam a grande parte do Continente, são os artigos dedicados à Nicarágua: “Nicaragua en el primer dia” (1980) e “Defensa de Nicaragua”(1986).

            Esse pequeno território que lutou ferrenhamente, buscando apenas, ser um país, em determinado momento  se define pelo país do que não tem. Não tem comida, não tem hospitais, nem remédios, nem estradas, nem veículos, nem combustíveis, não tem casas, nem telefones que funcionem. Dois dias por semana, Manágua, sua capital, uma das cidades mais quentes do mundo, não tem água. Seus habitantes não sabem ler, não sabem se alimentar, muito menos cuidar da saúde. Para transformá-los é, ainda, preciso romper toda uma tradição de ineficácia, uma herança de ignorância, uma fatalista aceitação de impotência como destino inevitável.

            Igualmente terríveis, no caminho da humanidade, essa opulência e essa miséria. Como se as histórias não fossem para se acreditar. Mas, nessa obra, Eduardo Galeano não é ficcionista. Oferece, apenas, um testemunho. Do muito que viu, acreditou ou duvidou, sempre na busca da esperança. Porque, de certezas, também se alimenta o Continente.

 

 

        Na Nicarágua, “dois soldados  conversam à porta de um Ministério. Um deles comenta, pergunta:

-          E porque não declaramos guerra aos Estados Unidos?

-          Estás louco. Eles são uns duzentos e cinqüenta milhões.

-          É. Não podemos.

-          Não, não podemos.

                            Depois de uns minutos:

-          E por que não podemos?

-          Então, não vês que não temos onde por tanto preso?”

     Eduardo Galeano, traduzido por Cecília Zokner.