domingo, 24 de fevereiro de 1991

Um mundo em desordem

            Parece que as muralhas são intransponíveis e intocáveis, para sempre, como se uma força superior o tivesse assim determinado. Para que permaneçam separados e vivendo cada um o seu destino: os homens. Os escolhidos, aqueles que usufruem de todos os bens que a sociedade, hoje, oferece aos que possuem poder aquisitivo. E os outros, os que jamais conseguem suprir as suas necessidades mais elementares.

            No Continente, um obvio escandalosamente injusto para alguns, perfeitamente lógico para outros e que determina as relações dos humanos e alimenta uma Literatura quase sempre prenhe de intenções.

            Retomando essa dicotomia, tema como que obrigatório nas Letras do Continente, Armonía Somers a encerra numa estrutura e numa linguagem que fazem de  “Muerte por alacrán”, algo verdadeiramente inusitado e de rara qualidade não somente no Uruguai, seu país de origem, mas em toda a Literatura latino-americana.

            O conto se inicia com o diálogo de dois motoristas que estão levando um carregamento de lenha para uma casa de campo. Sofrem com o tremendo calor de verão que reverbera na estrada, porém, mais que tudo, pela presença de um escorpião que deslizara pelo meio da lenha. Com medo, eles a descarregam na cozinha e em cada peça da casa onde a lareira o exigia. Além do pagamento, tiveram direito a uma limonada e à licença para lavar o rosto. Por conta própria, a extasiar-se com o luxo da casa, imensa, rodeada de jardins e que servia a seus donos apenas uma poucos dias por ano. Antes de partir, sentindo-se sobreviventes felizes, lembraram-se de avisar da conveniência de ter cuidado com o escorpião que lá ficara entre  algum pedaço de madeira.

            Inicia-se, então, para o mordomo, a luta para encontrá-lo. Procura-o em cada detalhe dos quartos para tentar impedir que alguém da casa sofra a mortal picada.

            Não encontra o escorpião mas o veneno – cada qual a seu modo -  que destilam os habitantes da casa através dos objetos que lhe pertencem: o dono que enriqueceu usando todos os meios escusos cabíveis, a exuberante mulher que o atraiçoa, a filha adolescente que não recua diante dos chamados do sexo seja de onde vierem.

            Diante das realidades que a busca lhe dá ensejo de encontrar, o mordomo vai perdendo as forças até ficar sem sentido. Então, os ricos proprietários voltam do passeio. Os relógios batem as horas. O mundo deles não fora  desordenado.

            Na estrada, no meio o calor e sem medo, os motoristas filosofam: - Porcos, a casa que tinham para ir só de vez em quando... Merecem ser picados por um escorpião, que rebentem de uma vez, filhos de uma cadela...

            No estofamento, bem perto da pele de um deles que é seu alvo, o escorpião avança. Quem é ele para mudar a ordem estabelecida?

            Porque dos motoristas, sim, o mundo é vulnerável.

domingo, 17 de fevereiro de 1991

Que falem os vencidos

            América viva: 1492-1992, quinientos años después foi publicado há dois anos atrás. Transcorria o II Festival do Livro de Manágua e ali, na moldura de uma revolução excitante, agitada, tormentosa, dura e doce, comovente até a dor e até o júbilo se tratou de literatura  e de testemunho, da narrativa contemporânea, da mulher e da criação artística. E, entre texto e contexto, surgiu o momento de discutir as comemorações da chegada dos espanhóis na América.  Daí a idéia de reunir em livro, algumas páginas de Eduardo Galeano (parte de Nosotros décimos no, publicado pela Editora Siglo XXI, do México),Tomás Borge (tor-  tornadas conhecidas, em 1998, no Seminário organizado pelo Conselho Mundial dos Povos Indígenas, realizado em Manágua), Roberto Fernández Retamar (também, publicado em Manágua) e Gioconda Belli ( parte de seu romance, La mujer habitada).

            Nesse seu primeiro romance, Gioconda Belli, que dez anos antes havia recebido o prêmio de poesia da Casa de las Américas, narra o compromisso de homens e mulheres com a Revolução Sandinista .O texto, publicado em América Viva,  ao qual a compiladora da obra, Iosu Perales, deu o título de  “Acta de la Resistência” é o monólogo de Itzá,  indígena que, em forma de laranjeira, habita a casa e a alma de Lavinia, mulher de nosso tempo, revolucionária em busca  da emancipação total de seu país.

            Itzá nasceu quando os espanhóis já haviam chegado na América. Também ficou fascinada pela sua imagem quando, pela primeira vez a viu num espelho. Já era, então, mulher de Yarince, o cacique. Havia-lhe seguido os passos por amor e para lutar contra os espanhóis. Morreu quando, de seu grupo de resistência, já restavam poucos. Esvaiu-se em sangue nas margens do rio. Morta, foi levada para repousar na terra e esperar que os séculos passassem para  cumprir o desígnio dos deuses: tornar à vida sob forma de vegetal.

            O momento chegado, Itzá obedece: penetrei na árvore, no seu sistema sangüínio, a percorri como uma longa carícia de seiva e de vida, num abrir de pétalas, num estremecimento de folhas.

            A árvore, então,  voltou a nascer, habitada por sangue de mulher. E, Itzá torna a ver a luz no jardim de Lavinia, combatente sandinista. Olha para esses contornos de muros largos, de arbustos recém cortados, de flores que nascem em vasos, para essa mulher, Lavinia, que é jovem e alta, bela nos seus cabelos escuros e no seu o andar das mulheres da tribu.

            Presa nas suas raízes, percorrida pela seiva no trabalho de transformar as flores em frutos, Itzá espera o momento de se encontrar com Lavinia. E  lembra da vida que viveu: os dias de amor com o guerreiro, a luta para se livrar da indignidade da submissão, imposta pelos invasores espanhóis que dos índios fazem escravos e da terra conquistada, somente fonte de riquezas.

            Nesse recordar, Itzá sabe quem é e sabe quem são os seus: sabíamos medir o movimento dos astros, escrever sobre tiras de couro de gazelas, cultivávamos a terra, vivíamos em grandes assentamentos à beira dos grandes lagos, caçávamos, fiávamos, tínhamos escolas e festas sagradas. Dos outros, sabe, apenas, pelos atos que praticam: dizem mentiras, matam homens, prostituem mulheres, impõem um deus estranho e novos códigos de guerra, orientados pela hipocrisia e pelo engano.

            Mas, foram eles, os vencedores. Os que sempre puderam falar, os que sempre contaram a conquista e os que, agora, festejam os quinhentos anos de sua presença na América.

            No entanto, para que a América, para que o Continente viva, é urgente que se ouçam, também, as outras vozes. O ser-lhes permitido elevar-se para serem escutadas, irá significar, certamente, para usar a expressão de Roberto Fernández Retamar, despedir-se da pré-história. O que, talvez, não seja fácil, nem conveniente, ouvir para os que sempre dominaram, sempre usurparam.

            Os vencidos do Continente que o digam.

domingo, 10 de fevereiro de 1991

Balada no Continente

             Johny Sosa é um cantor de blues. Negro e desdentado, mora em Mosquitos, um amontoado de casas no interior do Continente. De manhã cedo, escuta rádio, a história de Lou Brakley, o gringo. Um dia, a voz de Melias Churi deixa de ir ao ar. Ausência tão inexplicável como a presença de caminhões do exército na entrada da cidade.

            Tanto quanto os demais moradores do povoado, Johny Sosa ficou sem entender as guerras simuladas travadas entre nove horas e meio dia que os soldados recém chegados travavam entre si, arrastando-se sobre as urtigas, colina acima. Tampouco entendeu (e, por isso lhe bastou a explicação de sua mulher, a loira Dina: Eles são doentes.) o porquê dos soldados espiarem através das janelas dos ranchos sem se preocuparem pelos canteiros das hortas que pisavam nessas investidas noturnas. E, nem se deu conta, também, que as pessoas começaram a desconversar, a se calar. Sem explicações, lhe ficou o ter sido interrompida a história de Lou Brakley, no programa radiofônico da cidade.

            Uma noite, no Chantecler, mal afamado estabelecimento noturno onde cantava, viu com os olhos semi-cerrados de não querer ver, como levavam preso Melias Churi, o locutor da rádio de Mosquitos. O único que pode  querer, então, foi estar longe, no seu rancho feito de barro.

            A sua volta, o povoado continuava se transformando. Os troncos das árvores na avenida, amanheceram pintados de branco; muitos moradores abandonavam, de madrugada a cidade; as portas da emissora de rádio foram clausuradas; aos poucos, os oficiais se apossavam das casas perto da praça e logo quiseram mudar o pensamento dos moradores de Mosquitos. Imutáveis, permaneceram, apenas, as agruras do inverno e o por do sol dos meses de verão.

            Na Mosquitos invadida, Johny Sosa foi envolvido na teia que lhe estenderam os forasteiros. Desaconselhados, o seu repertório de blues e o seu cantar no Chantecler. Recomendada, a sua conversão ao bolero que deveria ser cantado por alguém capaz de luzir um sorriso de belos dentes, ainda que postiços.

            Jamais, iria pensar Johny Sosa. No entanto, o desejo da loira Dina em mudar esse destino de pobreza ao qual se condenara ao escolher a vida com ele, faz com que ceda aos argumentos do padre e do coronel: tenta ser cantor de boleros, tenta se manter afastado do Chantecler e aceita a dentadura que o dentista do exército confecciona para ele.

            Mas a mulher, ao tentar afastá-lo dos blues, ao querer justificar as prisões decretadas pelos invasores, ele acaba por amar menos. E cada vez menos, leva a sério as palavras do padre e do coronel que pretendem fazer dele um representante de Mosquitos nos festivais de música.

            Personagem  de pequenos universos – a horta plantada perto do rancho, o espetáculo semanal na mísera casa noturna – e, dono apenas, de uma vida de negritude e de pobreza, Johny Sosa compreendeu que nem a mulher o desviaria de sua trilha, nem  “os sábios” fariam dele um bezerro de duas cabeças, desses que se expõem nas feiras.

            Um dia, ele se sobrepujou às verdades recém aprendidas. Deixou em lugar seguro – nas mãos de uma prostituta – a dentadura nova, enfrentou o homem da delação, ludibriou seus perseguidores e fugiu.
            Esta sua gloriosa história é contada em La balada de Johny Sosa (Montevideo, Ediciones de la Banda oriental, 1989), um dos melhores relatos  de Mario Delgado Aparain e o quarto que publicou. Antes dele haviam aparecido, entre 1982 e 1987, Causa de buena muerte, Estado de gracia, El dia Del cometa e, nessas histórias de seu país, (nasceu no Uruguai, em 1949),  ele expressa, em magníficos tipos e situações o que poderia ser realidade em muitos espaços do Continente se o seu estilo, sem antecedentes  na História da Narrativa uruguaia (diria o crítico  Wilfredo Penco) não o inscrevesse num território e numa época perfeitamente delineados:  o Uruguai da pequena cidade que se desenha em traços muito rápidos de eucaliptos e ranchos de barro e numa época torturada pela ditadura. Porque, parte da magia com que Mario Delgado Aparaín constrói o sua narrativa, é essa sua linguagem de preciosos achados para delinear a  sombra e a luz

Sombra, a figura do negro Johny Sosa, correndo pelos campos sob a o céu negro e sem estrelas. Luz, a que dele se irradia, homem íntegro,  nessa  recusa de entregar a alma a pretensas verdades alheias e que na corrida para a liberdade procura  apenas, o direito de ser ele mesmo: um pobre negro desdentado, cantador de blues. 

domingo, 3 de fevereiro de 1991

Os cocacolizados

            O general Omar Torrijos, dirigente do Panamá que ousou lutar para que o canal do Panamá passasse a ser dos panamenhos, morreu no dia 31 de julho de 1981, num acidente aéreo cujas causas não foram esclarecidas. Mi general Torrijos, um livro-testemunho sobre ele, recebeu, em 1887, o Prêmio Casa de Las Américas.
            Seu autor, José de Jesús Martinez, lecionava Filosofia na Universidade panamenha quando Omar Torrijos assumiu o poder em 1968. Resistente ao golpe militar do então tenente-coronel Torrijos, perdeu o seu lugar na Universidade e foi trabalhar em Honduras. Ao regressar, algum tempo depois, a seu país, foi reintegrado à cátedra, agora como professor de Mastemática, disciplina que fora estudar em Paris. Une-se, então, a um grupo de cinema experimental e, numa ocasião, foi com eles até a Base Militar do Rio Hato, filmar a chegada dos estudantes para uma jornada de trabalho.
            Insone, de madrugada, se levanta,  atento a um ruído desconhecido que se aproxima e percebe que se trata do canto de mil recrutas recém chegados à base. Um canto que expressava a indignação pela presença dos norte-americanos na zona do canal e um entusiasmo ímpar na luta para tornar possível o sonho de ver a bandeira panamenha em cada canto do país.
            O sentido do canto, os valores e o entusiasmo nele contidos, mostraram ao então professor universitário um caminho, se constituíram tábua de salvação para o naufrágio existencial em que se encontrava.
            E, aos quarenta e cinco anos,  se alista como recruta. No entanto, não dá baixa, logo depois, como havia previsto  mas continuará no exército. Como cabo e como sargento irá acompanhar o general Torrijos numa trajetória que busca, mais do que tudo, a construção do Panamá.
            Essa opção de José Jesús Martinez, sem dúvida, pouco comum, nem sempre será entendida pelos seus pares. Ao fazer uma crítica a um dos assessores do governo panamenho é chamado por ele de carregador de malas do general; ao dirigir o trânsito para dar passagem ao carro do dirigente panamenho, é visto por um professor universitário, casualmente no local, que não pode impedir a indignação ao ver, com os próprios olhos, a função exercida pelo colega.
            Aceitar “tal função” e outras que lhe serão confiadas, fazem de José  Jesús Martinez, um homem curioso num Continente habitado por preconceitos  e duramente separado em classes onde, com muita freqüência, é ser o trabalho considerado vergonhoso.
            O  autor de Mi general Torrijos é, verdadeiramente, um fac-totum do general. Ele atua onde a sua atuação é necessária sem se preocupar pelo status que possa ter o trabalho que realiza ou do status que o trabalho possa lhe oferecer. Preocupa-se pelos frutos que, cedo ou tarde, desse trabalho, possam advir e nisso está em uníssono com aquele a quem serve. Para ambos, existem, prioritariamente, metas muito claras a serem atingidas para fazer do Panamá um país.
            Mi general Torrijos trata de muitas coisas além do assunto primeiro, a figura do general. Construída a partir de gestos, frases, atitudes particularmente representativas do que  se imagina ser ou do que foi estipulado ser a imagem do latino-americano, essa figura que nos apresenta José  Jesús Martinez é a de um homem que tem olhos para o ser humano, que por ele é capaz de se comover e por quem guarda um profundo respeito. Em quaisquer circunstâncias. Mesmo naquelas em que tal respeito poderia parecer menos importante.
            Um exemplo disso, é ter pedido, certa vez, ao autor do livro que não o fizesse passar vergonha: é que José de Jesús Martinez havia rido numa visita à Universidade dirigida pelos Mórmons, no Havaí quando um deles havia dito que o dirigente religioso da seita falava com Deus em inglês. Para Omar Torrijos, segundo o autor do livro, mesmo esse tipo de convicção merecia respeito.
            Entre um fato e outro, o autor de Mi general Torrijos vai expondo o pensamento do general e o seu posicionamento diante do Tratado do Canal. Um pensamento que irá sendo construído a partir da experiência direta com a realidade do país. Daí não ter ficado “geometricamente sistematizado”,  inserido  nessa lógica fácil dos extremos do certo e do falso. Uma desvantagem teórica, como diz José  Jesús Martinez, que o capacitou, na prática, a penetrar, mais profundamente, no conhecimento de uma realidade  em que rios transbordam todos os anos,  matando crianças e que está muito longe de ser uma realidade cartesiana.
            E, diante da questão do Canal do Panamá, como diante de todas as que envolvem os países da América Latina, um sentimento definitivo: o ódio contra o imperialismo e contra aqueles que a ele se submetem passivamente, prazeirosamente. Aqueles que, no dizer de José  Jesús Martinez, tem os olhos brilhando quando chegam nos Estados Unidos. Os cocacolizados, como os chamava o general. Que, inclusive, se expressam num idioma híbrido que no livro está registrado neste exemplar diálogo: Darling, donde están los childrens? – Están em el swiming pool.
            Um diálogo, ou semelhante ou igual, que pode ser ouvido em muitos espaços da América Latina onde, certamente, menos fácil é se ouvir suas vozes verdadeiras. Até porque, freqüentemente,  quando elas se alçam, são muitos os interesses em fazê-las calar.
            E, embora os métodos sejam sobejamente conhecidos – bolsas de estudo, privilégios financeiros, auxílios tecnológicos, modelos culturais, apoio militar, eliminação física – são raros, no Continente, os que mensuram suas implicações. E a esses, acreditam os do norte do Rio  Bravo, é mister neutralizar.
            Omar Torrijos teve morte violenta.
            Alguns anos antes ouvira de um cacique indígena uma parábola: os homens devem partir, não aos empurrões, mas como os velhos troncos que o mar cobre e levanta e que a maré leva embora lentamente. Assim, diz José  Jesús Martinez, é que o general gostaria de ter partido. Não desfeito e carbonizado como o deixou o inimigo.