domingo, 30 de dezembro de 1990

O gaúcho novo de Serafin J. Garcia

            Em 1936, Serafin J. Garcia, nascido em Treinta y Três, cidade uruguaia próxima do Brasil,  publicava Tacuruses. Depois, livros de contos, de poemas, antologias da literatura nativista de seu país se seguiram. Foi Tacuruses, porém, que mereceu mais de dez edições no Uruguai e extrapolou  fronteiras para fazer  leais admiradores no Rio Grande do Sul como bem o registra, no dia 26 de março de 1974, quando, ainda existia  o velho Correio do Povo, o cronista Sérgio da Costa Franco.
            Os poemas de Tacuruses tratam da querência, do botequim, do amor, das brigas, das taperas. Tem como cenário, o campo. E como expressão, a linguagem gauchesca. Um, entre tantos livros de poemas sobre o gaúcho. Mas, um livro que se afasta da trilha conhecida ao enunciar os novos momentos vividos por aquele que foi dono dos pampas e, progressivamente, vai se transformando em agricultor ou vai sendo marginalizado do campo de trabalho para dar lugar aos que semeiam. É o “gaúcho novo” dizem os críticos.

            E o seu protótipo está retratado no poema “Orejano” (orelhano), termo que, no tempo da dominação ibérica designava os animais que não haviam recebido a marca da Coroa, dona das terras e de suas riquezas e que, por extensão, passou, também, a significar “livre”, “sem dono”.

            O gaúcho que se expressa no poema de Serafin J.Garcia é aquele que sobreviveu à limitação dos horizontes pelas cercas de arame farpado, submetendo-se à lei da civilização, da igreja, dos costumes. Deixou de ser aquele gaúcho nômade que roubava a mulher, levando-a na garupa do cavalo para abandoná-la quando o  acabasse o interesse, ignorando o filho que, por ventura, viesse a nascer dessa união;  ou aquele que seguia, com entusiasmo, sem muito entender os porquês, o caudilho eventual.

            Constituiu família e se fixou na terra, o gaúcho  orelhano. Mas, o fez a sua maneira, negando-se a passar por um juiz que lhe oficializasse a união ou pela igreja que lhe batizasse os filhos; negando-se à submissão e ao silêncio. Já não o convencem com quatro mentiras / os graudões que chegam da cidade / para elogiar divisas já desmerecidas / e fazer promessas que jamais cumpriram.

            Essa recusa dos assim chamados valores tradicionais, presente em cada poema de Tacuruses,  verdadeiro enunciado de protesto contra as leis que regem o viver social, irá se fortalecer em Burbujas, livro de contos publicado quatro anos depois onde o campo continua sendo o espaço e o assunto, o contrabando, o drama da prostituição ou da criança abandonada, a situação passiva da mulher e a transformação do gaúcho no homem que planta.

            Nos contos e nos poemas se retrata um mundo dividido: o poder econômico dos estancieiros servido pelo poder público; a força de trabalho exercida pelos peões e pela criadagem quase igualados na pobreza dos marginais ( a prostituta, o ladrão de ovelhas, o contrabandista). Não mais um espaço aberto  sem dono, campos verdes a se perderem de vista,  o gaúcho altivo e valente, dominando a paisagem. A terra dividira-se em propriedades e nela só havia lugar para aquele que aceitasse as novas regras.

            O chamado “gaúcho novo” testemunha a pobreza, a exploração de que são vítimas, sobretudo, as mulheres e as crianças, os homens cujo trabalho não mais interesse aos meios de produção. Seus olhos abertos não se iludem com as bicheiras do sistema e sua voz se ergue para cantar verdades.

domingo, 23 de dezembro de 1990

Mas continuo sendo o rei


            Pero sigo siendo el rey é um romance que, junto com as narrativas, fábulas, contos, testemunho, forma o conjunto da obra de David Sánchez Juliao, um dos pioneiros na América Latina dos textos escritos especialmente para serem gravados em discos e cassetes.

            Colombiano, nascido em 1945, sociólogo, jornalista, professor, roteirista de cinema e televisão, o interesse pela música popular o levou a realizar pesquisas no México onde, entre Guadalajara e Cuernavaca e a capital de seu país, escreveu um romance sui generis.

            Com o sub-título de “Sinfonia para leitor e mariaches, opus 1”, Pero sigo siendo el rey  se apresenta sob o signo da música. O prólogo é uma partitura de José Alfredo Jimenez e de um de seus versos se origina o título do romance que é dividido não em capítulos mas em Movimentos que indicam a cadência e o caráter de uma peça musical: “Allegro contabili”, “Allegretto scherzando”, “Tempo di Minuetto” e “Allegro vivace”.

            Alegre, gracioso, melancólico ou mais lento ou lúdico ou, ainda, lento e por fim alegre: cadências que anunciam uma narrativa construída  em quadros cujo fio condutor são as mortes que, repetidamente, advém, já anunciadas por antigas profecias e que a presença de pombas vermelhas no povoado de Tezontle concretiza.

            Não sucessivamente, mas mesclando-se nos quatro Movimentos, se aproximam,  se afastam, se entrelaçam destinos marcados por grandes paixões amorosas que são interlúdios para a morte. Morte que obedecem sempre a um sentido de honra no qual se incrusta somente a verdade masculina. Uma verdade que é dona da vida e dos sentimentos da mulher.

            A autoridade paterna ajudada pela autoridade religiosa ( Deus fez a mulher assim, inferior, para que o homem fosse o rei), decide a vida sentimental de Flor de Azálea e de Chabela. O sentido de posse masculino proíbe a mulher de sair à rua, ir à festas, expressar o seu pensamento. Não podia permitir que Chabela se desfizesse da camisa de força que sempre tinham usado as mulheres de Tezontle. Nessa mulher mando eu. As tranças de Chabela são rédeas para meu cavalo. Um sentido que lhe permite perder a mulher no jogo, usá-la até que fique uma  flor sem atrativos pois para isso e só para isso existe; matá-la para que não desonre o amigo  ou  apenas por suspeita de infidelidade.

Ninharias  que o código social determina. Uma lei de honra inflexível ( a morte deve ser vingada por outra morte), os usos e costumes consagrados (há homens que à alma e ao bolso convém mais do que os outros), o servir-se da autoridade para obter amores ( Anselma entendeu que com alguém que era ao mesmo tempo homem e autoridade de nada adiantava a linguagem da razão).

            Código que irá determinar o silêncio dos amantes que somente nos monólogos solitários se expressam plenamente pois os diálogos, quando existem ,são cheios de medos, de reticências. Não expresso, o amor se esgueira, se esconde e quando, luminoso, quer desabrochar, a morte o impede de florescer.

            E, em meio ao insólito das pombas vermelhas, do espelho que não reflete a imagem  ou a reflete diante de outros rostos, do morto que volta para completar a vingança, das filhas mortas que falam com as mães (reminiscências, talvez de Gabriel García Márquez e de Rulfo), usando, por vezes,palavras do cancioneiro popular mexicano, os personagens masculinos, sofrem terrivelmente, ( como somente soem sofrer os personagens femininos), mas continuam sendo, sempre,  o rei.
 

domingo, 16 de dezembro de 1990

Hispano-América em O Castelo de Franktein


            Salim Miguel o chama de  estranho castelo. Um castelo todo construído de palavras que se originam de outras. As que, por sua vez, constituem as obras que merecem suas anotações.

            “Anotações sobre autores e livros” é o sub-título de O Castelo de Frankestein  que a editora da Universidade Federal de Santa Catarina publicou em 1986. Formado por quatro capítulos ( Santa Catarina, Brasil, Hispano-américa, Outros )  tem, sempre, o interesse pelos contemporâneos.

            O capítulo terceiro, Hispano-américa, se compõe de dezoito artigos. Um deles, comenta o Prêmio Nobel atribuído a Gabriel Garcia Márquez, outro  a morte de Cortazar. Os demais, tratam de obras latino-americanas,  publicadas no Brasil pelas editoras Difel, Civilização  Brasileira, Global, Alfa-ômega, Nova Fronteira, Paz e Terra, Francisco Alves.

            São obras que, na maioria das vezes,  diferentes razões explicam a qualidade. Também, quase sempre, são oferecidas ao leitor brasileiro sem algumas das referências necessárias – que certas escolas críticas o perdoem – para que  a compreensão do texto ou o prazer da leitura possam ser mais completos e profundos.

            Situando-as no seu contexto geográfico e literário – Argentina, Cuba, Chile, México, Peru – mensurando-lhes as qualidades, os textos de Salim Miguel adquirem, então, essa importância que somente um arauto pode ter. Sobretudo, numa sociedade que, salvo as sempre honrosas exceções, precisa ser guiada nos seu renovado consumismo que, inclui, também o livresco.

            À sensibilidade  com que se aproxima do texto, as informações que oferece sobre o autor e sua vida literária se acrescentam à preocupação de contribuir para a qualidade das traduções com observações necessárias e pertinentes.

            Uma excelente contribuição que Salim Miguel, pelos labirintos de seu castelo,  onde se cruzam Angel Rama ,Cabrera Infante, Jorge Icaza, José Maria Arguedas, Ricardo Güiraldes entre outros, oferece para o conhecimento de uma Literatura, muitas vezes, inigualável que, embora produzida no Continente, ainda continua ignorada pela grande parte dos leitores brasileiros.

            Porque, a maior parte deles, parece não ter se dado conta que faz parte de uma geografia ao sul do rio Bravo e teima em permanecer atrelada aos gosto de leitura de outros centros considerados,  por uma certa elite,  como civilizados e donos da verdade.

domingo, 9 de dezembro de 1990

História para pensar

             Um dos dramas do Continente é essa impossibilidade de se liberar do atrelamento científico, cultural e ideológico dos países do Primeiro Mundo que aqui se instalou,  juntamente, com a chegada dos ibéricos. Uma real incapacidade de serem instituídas fontes de saber ou de criação que não estejam enraizadas nas produções dos grandes centros.

            Situação que se não for hipocritamente negada levará a refletir, entre outras coisas,  sobre o significado desse atrelamento e, então, surgirá, sem dúvida, uma busca para dele se desvencilhar.


            Caminhos do romance brasileiro de João Hernesto Weber (Mercado Aberto, 1990), ao apontar direções inovadoras sobre um assunto que, salvo as raras exceções, reproduz conceitos sempre baseados nas mesmas linhas de historiografia  e de crítica que servem ao estudo da Literatura  de outras latitudes, surge como uma obra de extremo interesse.

            Embora possa ser – certamente o será para muitos – uma obra polêmica, nas palavras de José Hildebrando Dacanal, ela se constitui o mais importante e coerente ensaio até hoje escrito sobre a ficção brasileira do século XIX a nossos dias.

            O sub-título do livro, “De A Moreninha a Os Guaianãs”, indica-lhe cronologicamente, os limites. Sete capítulos traçam a trajetória do romance brasileiro compreendido entre essas duas obras. Introduzindo as análises  de A Moreninha, Senhora, Iracema, Inocência, Memórias de um sargento de milícias, A mão e a luva, Memórias póstumas de Brás Cubas, Dom Casmurro, O cortiço, Triste fim de Policarpo Quaresma, Memórias Sentimentais de João Miramar, São Bernardo, A pedra do reino, Os Guaianãs , a síntese do momento econômico - ideológico em que foram produzidas.

            De confessada “intenção didática”, a sutileza das observações sobre as obras que formam o corpus do trabalho e o abandono dos caminhos consagrados pela Historiografia brasileira fazem desse livro uma referência imprescindível para os especialistas da área e uma sugestiva  leitura para os que desejam pensar o país contido nas obras de ficção.

            Mas é, especialmente, quando João Hernesto Weber assinala essa constante busca por parte dos romancistas brasileiros dos padrões estéticos alienígenas que suas palavras adquirem um maior alcance. Elas não falam somente de obras de ficção, mas, sobretudo, de um dilema de importação cultural. Isto é, elas falam da História do país.

domingo, 2 de dezembro de 1990

Olhos de menina

            Inserido num texto que narra o cotidiano de uma menina, o atentado do dia 9 de abril de 1948, em Bogotá, e os acontecimentos que a ele se seguiram.

            A narração – construída em pequenos textos objetivos e sintéticos, antecedidos de uma marcação de tempo precisa – se inicia com um fato aparentemente sem importância, a chegada de Jorge Eliécer Gaitán a seu escritório às  oito e trinta da manhã.  Continua em mais nove parágrafos até chegar às quatorze horas e cinco minutos, quando morre, vítima de um atentado político, assassinado, como disse um homem do povo, por um  “João Ninguém”.

            No romance, são diferentes vozes que se entrelaçam para reconstruir esse episódio de violência e a violência que dele se originou. E o que aconteceu adquire distintos tons: a primeira dama do país se confessando “desagradavelmente surpresa” ao saber da morte de Gaitán; uma senhora da elite econômica se lamentando de que as coisas  estejam acontecendo exatamente no dia em que iria se apresentar no teatro Colón um afamado cantor; Sabina, uma empregada doméstica, murmura rezas e  acende velas a mando da patroa. E o jovem do povo, levado de roldão à luta armada, testemunhando o horror da frente de combate. Entre essas vozes e tantas outras, a de Ana. Ela  está no terceiro ano da escola primária, já sabe ler e somar. Em meio aos interesses próprios de sua idade ( deliciar-se com goiabas, ganhar a medalha de primeiro lugar, assistir filmes do Gordo e o Magro, comer a merenda), participa, ainda que protegida pela distância, do medo e das dúvidas que dominam a família e a cidade.

            Na escola, as freiras, nervosas  mudam as normas no que se refere à ida para casa: que as meninas não formem fila por ano, como sempre mas, a partir da direção da cidade onde moram; que as mais velhas cuidem das menores e que tão logo saiam do colégio corram o mais depressa possível. É claro que, no lufa-lufa, houve quem deixasse cair os cadernos e quem tivesse medo de que lhe matassem o pai.

            Para Ana, ao chegar em casa, correndo, as reprimendas: como dar ponta-pé no portão? Não lhe ensinaram que se toca a campainha? Ou, ao pedir, faminta, a merenda, receber como resposta que não é hora  de pensar em merenda. E, incompreensível para ela, a incoerência dos adultos  ao determinarem que o momento era grave demais  para lhe matar a fome enquanto, nervosamente, providenciam a compra de muitos gêneros alimentícios antes que a turba saqueie tudo.

            Assim, enquanto a cidade é saqueada, enquanto a multidão se embebeda e cadáveres se espalham pelo chão, enquanto a rádio incita o povo às armas, as perguntas de Ana  vão ficando sem resposta. Somente se lembram dela para  lhe mandar tirar o uniforme.

            Sem muito entender do que se passa – a morte do chefe do “grande Partido Liberal”, as cabeças penduradas nos postes, o medo dos adultos – os sete ou oito anos de Ana darão  o testemunho de um caos que foi vivenciado por Alba Lúcia Angel, romancista colombiana nascida em 1939.

            Ao escrever, entre 1971 e 1975, Estaba la pájara pinta sentada em el verde limón, ela retoma as questões, cujas respostas, provavelmente, também foram escamoteadas quando tinha a idade da sua personagem. E se inscreve entre os escritores que assumem um compromisso com a realidade de seu país, buscando novas formas que possibilitem a compreensão de sua história.

            Daí  esse seu romance conter não somente o atentado do dia 9 de abril de 1948, inserido no cotidiano de uma menina, mas, talvez,  principalmente, o cotidiano de uma menina inserido na violência instaurada, em Bogotá, no dia 9 de abril de 1948.