“Expressar
a vida, sua coragem, sua raiva” é o título dado a uma entrevista de Carlos
Droguett à revista Crisis de
Buenos Aires, em dezembro de 1978. São palavras suas para responder à pergunta
por que escreve? do jornalista Julio
Huasi.
E,
muita raiva e muita coragem é preciso ter para escrever e publicar Matar a
los viejos, uma rápida brochura de vinte e quatro páginas, separata da
revista Bitzoc de Palma de Mallorca (Espanha), excerto de seu livro
inédito que não encontra editor.
Chileno,
exilado na Suissa desde 1975, seu último romance publicado, El hombre
que trasladaba las ciudades, data de 1973. Não cessou, porém de
escrever e o tem feito intensamente, dolorosamente, ele o dirá. Muitas vezes,
para deixar testemunho daquilo que aconteceu no Chile nestes últimos anos.
O
texto de Matar a los viejos que acaba de ser publicado, permanece fiel a
esse chamado que tem guiado a pena de Carlos Droguett. Mas, em lugar do
testemunho, ele se lança a um desvairado trabalho de imaginação, permitindo-se
uma catarse que, de certa maneira, e embora distante, lembra a de Augusto Roa
Bastos, Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez quando
tentam exorcizar a figura do ditador da
América Latina.
Para
Carlos Droguett essa catarse já fora iniciada em outros textos: no poema
“Augusto Pinochet Ugarte viene volando”
e em “Sobre la ausencia”, texto dedicado à memória de Ignacio Ossa, poeta e
dramaturgo torturado e morto em Santiago, em 1975: um verdadeiro exercício de
sarcasmo ao desenhar o perfil dos três últimos presidentes do Chile que
sucederam a Salvador Allende.
Enjaulado,
assim Carlos Droguett imagina a Pinochet
em Matar a los viejos. Superado o inevitável assombro inicial de sua
kafkiana transformação, um singular exemplar – combinação diabólica de homem e
de animal - constitui-se na atração mais recente de um zoológico no qual é
exibido para satisfazer a curiosidade dos assíduos visitantes. Preso, humilhado pela sua própria imundície e
padecendo a mais terrível solidão, o homem fera se entretém lembrando sua
passado glória de quartel: dias afanosamente gastos entre o pranto das mulheres
violadas e o sofrimento das indefesas crianças torturadas. Exercícios
cotidianos de uma tropa especialmente treinada pra comprazer os sádicos
caprichos do heróico soldado cujo uniforme é, agora, apenas reconhecível entre
manchas e rasgões acumulados no seu cioso trabalho. Nos sombreados e tristes
olhos daqueles que, todos os domingos,
se aproximam da jaula a contemplá-lo, se adivinha, claramente, o inesquecível terror de um
pesadelo humano recente demais, histórias individuais de um sofrimento para o
qual não houve suficiente choro: assassinaram Salvador Allende e com ele massacraram também
as ilusões e esperanças de todo um povo. Os enlutados visitantes sabem que não
há redenção possível e redimem seu inconsolável medo, observando a fera. O
sátrapa também o sabe. Ele está ali, atrás de suas grades e desta vez é ele
quem está preso. A besta não o ignora e se consola pensado que logo chegará o
empregado encarregado de alimentar os animais: tem mais sede do que fome. O
zelador do zoológicos deixa num canto da
pestilenta jaula um copo com o escuro líquido necessário para que esta
insaciável e repugnante fera que é agora o General Augusto Pinochet cumpra com
o seu grotesco rito, alimentando sua ilusão de continuar sendo o implacável
Deus a quem o povo, para sobreviver, paga com pontualidade seu sangrento
tributo.
Menino, menina, operário,
operária, jovem, muito jovem, da cabeça, dos peitos, das coxas, do pulmão, do
coração? se perguntava fascinado, enquanto colava os lábios e bebia, prazeiroso
e agradecido, purificado e consagrado.
Carlos
Droguett não esquece nem perdoa. O Chile, finalmente, começa a conhecer o seu
verdadeiro bestiário.
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