domingo, 10 de junho de 1990

Carlos Droguett não esquece nem perdoa


            “Expressar a vida, sua coragem, sua raiva” é o título dado a uma entrevista de Carlos Droguett à revista Crisis  de Buenos Aires, em dezembro de 1978. São palavras suas para responder à pergunta por que escreve?   do jornalista Julio Huasi.

            E, muita raiva e muita coragem é preciso ter para escrever e publicar Matar a los viejos, uma rápida brochura de vinte e quatro páginas, separata da revista Bitzoc de Palma de Mallorca (Espanha), excerto de seu livro inédito que não encontra editor.

            Chileno, exilado na  Suissa desde 1975,  seu último romance publicado, El hombre que trasladaba las ciudades, data de 1973. Não cessou, porém de escrever e o tem feito intensamente, dolorosamente, ele o dirá. Muitas vezes, para deixar testemunho daquilo que aconteceu no Chile nestes últimos anos.

            O texto de Matar a los viejos que acaba de ser publicado, permanece fiel a esse chamado que tem guiado a pena de Carlos Droguett. Mas, em lugar do testemunho, ele se lança a um desvairado trabalho de imaginação, permitindo-se uma catarse que, de certa maneira, e embora distante, lembra a de Augusto Roa Bastos, Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez quando tentam exorcizar a figura do ditador  da América Latina.

            Para Carlos Droguett essa catarse já fora iniciada em outros textos: no poema “Augusto Pinochet Ugarte  viene volando” e em “Sobre la ausencia”, texto dedicado à memória de Ignacio Ossa, poeta e dramaturgo torturado e morto em Santiago, em 1975: um verdadeiro exercício de sarcasmo ao desenhar o perfil dos três últimos presidentes do Chile que sucederam a Salvador Allende.

            Enjaulado, assim Carlos Droguett imagina  a Pinochet em Matar a los viejos. Superado o inevitável assombro inicial de sua kafkiana transformação, um singular exemplar – combinação diabólica de homem e de animal - constitui-se na atração mais recente de um zoológico no qual é exibido para satisfazer a curiosidade dos assíduos visitantes.  Preso, humilhado pela sua própria imundície e padecendo a mais terrível solidão, o homem fera se entretém lembrando sua passado glória de quartel: dias afanosamente gastos entre o pranto das mulheres violadas e o sofrimento das indefesas crianças torturadas. Exercícios cotidianos de uma tropa especialmente treinada pra comprazer os sádicos caprichos do heróico soldado cujo uniforme é, agora, apenas reconhecível entre manchas e rasgões acumulados no seu cioso trabalho. Nos sombreados e tristes olhos daqueles que, todos os domingos,  se aproximam da jaula a contemplá-lo, se adivinha,  claramente, o inesquecível terror de um pesadelo humano recente demais, histórias individuais de um sofrimento para o qual não houve suficiente choro: assassinaram  Salvador Allende e com ele massacraram também as ilusões e esperanças de todo um povo. Os enlutados visitantes sabem que não há redenção possível e redimem seu inconsolável medo, observando a fera. O sátrapa também o sabe. Ele está ali, atrás de suas grades e desta vez é ele quem está preso. A besta não o ignora e se consola pensado que logo chegará o empregado encarregado de alimentar os animais: tem mais sede do que fome. O zelador  do zoológicos deixa num canto da pestilenta jaula um copo com o escuro líquido necessário para que esta insaciável e repugnante fera que é agora o General Augusto Pinochet cumpra com o seu grotesco rito, alimentando sua ilusão de continuar sendo o implacável Deus a quem o povo, para sobreviver, paga com pontualidade seu sangrento tributo.   Menino, menina, operário, operária, jovem, muito jovem, da cabeça, dos peitos, das coxas, do pulmão, do coração? se perguntava fascinado, enquanto colava os lábios e bebia, prazeiroso e agradecido, purificado e consagrado.

            Carlos Droguett não esquece nem perdoa. O Chile, finalmente, começa a conhecer o seu verdadeiro bestiário.                    



           

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