domingo, 24 de junho de 1990

Haverá limite para a paciência?



            No dia 4 de outubro de 1940, o semanário Marcha de Montevidéu, publicava “La cancera del hombre de campo”, texto da conferência proferida por Juan José Morosoli nesse mesmo ano.
 
            Nascido em 1899 na cidade de Minas, Uruguai, Juan José Morosoli se tornou uma das figuras fundamentais da narrativa de seu país. Los albañiles de las “tapes”, um livro de contos que publicou em 1936 é, reconhecidamente, um clássico da Literatura uruguaia. Autor de um só romance, Muchachos  e de um grande número de artigos, ensaios e crônicas, Morosoli só teve olhos para o homem do campo. Durante anos, particularmente nas décadas de quarenta e cinqüenta, ele se dedicou a fazer conferências em escolas, colégios, instituições culturais sobre  o tema que se constitui sempre a sua  maior preocupação.

            Em “La cancera del hombre de campo”, ele parece se perder, como “aquele que sem rumo se deixa tentar por todas as trilhas, em digressões sobre a tragédia do homem do campo que, sem ofício, chega na cidade e passa a viver de seus despojos: sobre a pobreza que avança e destrói o trabalho da terra; sobre o relacionamento instaurado entre patrão e peão, norteado pelo lucro; sobre a situação feminina num universo de homens; sobre a infância de crianças sem brinquedo.

            Simples, sábio, espontâneo é o seu dizer e assim Morosoli se define: um homem que deseja se fazer entender, falando do campo, seus homens, seu clima e sua  realidade social..

            E o que diz, ele não inventa porque a miséria que impede o presente e o futuro dos desamparados do campo é fruto de uma única legislação: a que advém do preço do gado e do preço da lã condutores da economia de seu país.

            E o patrão comerá a carne e lerá o jornal. E o empregado, analfabeto, se alimentará de feijão. Já não tem mais o seu cavalo, nunca teve terras para trabalhar e a

Ilusão lhe foge. Claramente, logicamente, naturalmente,Morosoli lhe diz, talvez, sem esperanças : Mas a paciência tem limites.

domingo, 17 de junho de 1990

Sinos de madeira



                                            Chama-se “romance testemunho”. Seu autor, Miguel Barnet, nascido em 1940, em Cuba, grava informações, procura outras leituras, cria situações dramáticas e personagens reais. Quer mostrar o coração do homem. Desse homem que a historiografia burguesa marcou com o signo de um fatalismo proverbial, inscrevendo-o entre os que não tem história. São suas, estas palavras que antecedem as primeiras páginas do romance La vida real, publicado em La Habana, por Letras Cubanas, no ano passado.

            Julián Mesa é um desses homens inscritos entre os que não tem história ou cuja história não interessa porque o seu registro significa, também o registro de milhares de outras, semelhantes ou iguais, que, certamente, para alguns, deveriam ser ignoradas.

            Na luta para garantir a sobrevivência, Julián Mesa é sempre vítima de uma sucessão de desgraças. Elas começam quando ele ainda está no berço de onde é arrancado para ser salvo de um incêndio. E fogo e trabalho irão marcar-lhe a vida. Aos doze anos, trabalha na plantação de cana. Depois, será mandalete, lustrador de sapatos, ajudante de circo, caixeiro numa loja, vendedor ambulante, limpador de vidros, porteiro. E, assim, pouco a pouco, ele consegue juntar dinheiro para emigrar. Nos Estados Unidos, ele recomeça – ajudante de garçom, garçom, vendedor ambulante – até conseguir, já velho, ser zelador de um edifício. Sem nunca ter deixado de sonhar com a terra natal, sem nunca ter pretendido deixar de ser cubano.

            Momentos líricos, dramáticos se introduzem na narrativa. Também contos populares, crendices e expressões que desenham a geografia de Cuba pré-revolucionária ( e corrupção e exploração ). Inúmeros anglicismos  e conceitos e valores irão delinear Nova Iorque onde, em modernos guetos, os  negros e mulatos de Cuba e de Porto Rico – conservando-se dentro dos limites impostos pela cidade e pelos seus habitantes – encontram um mínimo lugar ao sol.

            Julián Mesa, todos os sentidos voltados para Cuba, acompanha as  mudanças que a revolução  vai instaurando e aspira pelo regresso pois os anos de ausência só o fazem acreditar mais e mais nas palavras de José Marti: não há lar em pátria alheia.

            Porém a velhice, a filha norte-americana e o não desejar ser uma carga para o país que não ajudou a construir o retém no espaço alheio em que vive à meias porque, na realidade, como ele diz, de Cuba, ele verdadeiramente, nunca saiu.

            Sua voz é expressão de amor pelo seu país e testemunho das penas de um homem que nasceu  pobre e pobre ficou. Mas, ela, se levanta, também, para dizer o que já dissera, no século passado, Martin Fierro, o trovador dos pampas: dos pobres, as razões  são sinos de madeira.

domingo, 10 de junho de 1990

Carlos Droguett não esquece nem perdoa


            “Expressar a vida, sua coragem, sua raiva” é o título dado a uma entrevista de Carlos Droguett à revista Crisis  de Buenos Aires, em dezembro de 1978. São palavras suas para responder à pergunta por que escreve?   do jornalista Julio Huasi.

            E, muita raiva e muita coragem é preciso ter para escrever e publicar Matar a los viejos, uma rápida brochura de vinte e quatro páginas, separata da revista Bitzoc de Palma de Mallorca (Espanha), excerto de seu livro inédito que não encontra editor.

            Chileno, exilado na  Suissa desde 1975,  seu último romance publicado, El hombre que trasladaba las ciudades, data de 1973. Não cessou, porém de escrever e o tem feito intensamente, dolorosamente, ele o dirá. Muitas vezes, para deixar testemunho daquilo que aconteceu no Chile nestes últimos anos.

            O texto de Matar a los viejos que acaba de ser publicado, permanece fiel a esse chamado que tem guiado a pena de Carlos Droguett. Mas, em lugar do testemunho, ele se lança a um desvairado trabalho de imaginação, permitindo-se uma catarse que, de certa maneira, e embora distante, lembra a de Augusto Roa Bastos, Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez quando tentam exorcizar a figura do ditador  da América Latina.

            Para Carlos Droguett essa catarse já fora iniciada em outros textos: no poema “Augusto Pinochet Ugarte  viene volando” e em “Sobre la ausencia”, texto dedicado à memória de Ignacio Ossa, poeta e dramaturgo torturado e morto em Santiago, em 1975: um verdadeiro exercício de sarcasmo ao desenhar o perfil dos três últimos presidentes do Chile que sucederam a Salvador Allende.

            Enjaulado, assim Carlos Droguett imagina  a Pinochet em Matar a los viejos. Superado o inevitável assombro inicial de sua kafkiana transformação, um singular exemplar – combinação diabólica de homem e de animal - constitui-se na atração mais recente de um zoológico no qual é exibido para satisfazer a curiosidade dos assíduos visitantes.  Preso, humilhado pela sua própria imundície e padecendo a mais terrível solidão, o homem fera se entretém lembrando sua passado glória de quartel: dias afanosamente gastos entre o pranto das mulheres violadas e o sofrimento das indefesas crianças torturadas. Exercícios cotidianos de uma tropa especialmente treinada pra comprazer os sádicos caprichos do heróico soldado cujo uniforme é, agora, apenas reconhecível entre manchas e rasgões acumulados no seu cioso trabalho. Nos sombreados e tristes olhos daqueles que, todos os domingos,  se aproximam da jaula a contemplá-lo, se adivinha,  claramente, o inesquecível terror de um pesadelo humano recente demais, histórias individuais de um sofrimento para o qual não houve suficiente choro: assassinaram  Salvador Allende e com ele massacraram também as ilusões e esperanças de todo um povo. Os enlutados visitantes sabem que não há redenção possível e redimem seu inconsolável medo, observando a fera. O sátrapa também o sabe. Ele está ali, atrás de suas grades e desta vez é ele quem está preso. A besta não o ignora e se consola pensado que logo chegará o empregado encarregado de alimentar os animais: tem mais sede do que fome. O zelador  do zoológicos deixa num canto da pestilenta jaula um copo com o escuro líquido necessário para que esta insaciável e repugnante fera que é agora o General Augusto Pinochet cumpra com o seu grotesco rito, alimentando sua ilusão de continuar sendo o implacável Deus a quem o povo, para sobreviver, paga com pontualidade seu sangrento tributo.   Menino, menina, operário, operária, jovem, muito jovem, da cabeça, dos peitos, das coxas, do pulmão, do coração? se perguntava fascinado, enquanto colava os lábios e bebia, prazeiroso e agradecido, purificado e consagrado.

            Carlos Droguett não esquece nem perdoa. O Chile, finalmente, começa a conhecer o seu verdadeiro bestiário.                    



           

domingo, 3 de junho de 1990

A história de Julius

           Diz algum crítico que se trata de um livro autobiográfico. Alfredo Bryce Echenique afirma que não: poucas pessoas são mais diferentes da família de Julius do que a minha. Tais palavras talvez não signifiquem, exatamente, uma negativa. Quando Ciro Bianchi Ross, ao entrevistá-lo, pergunta se a sua narrativa é autobiográfica, ele se justifica: ainda que não seja verdade, acabei por aceitar que meus livros sejam autobiográficos, enquanto não se prove o contrário.  Um mundo para Julius, conta a história de um menino que certas coincidências aproximam do autor que o criou: possuir uma sensibilidade que difere daquela  que é usual da classe a qual pertence; voltar o olhar para os outros,  como aquelas crianças  de Roger Vailland em Beau Masque cujo texto serve de epígrafe ao romance .

            Julius nasceu num palácio com jardins, piscina, cocheiras, quartos para os empregados e uma pequena horta.  Um tanto  distraído, um pouco alheio, ele cresce, cuidado por Vilma, meio branca, meio índia. A mãe, linda e perfumada, o beija,  rapidamente, entre um partir e um chegar.O narrador anota os passos de Julius, suas alegrias e tristezas, como anota esse mundo que o rodeia e que se compõe de tapetes, cristais, flores e quadros e peças de prata .Embora vivendo num círculo fechado que somente se comunica com outros círculos fechados, logo ele começa a perceber o que lhe é escamoteado  em nome de valores que norteiam a vida familiar. Os mesmos valores norteadores de uma elite que roça – somente porque deles necessita – os outros segmentos da sociedade limenha, sem deles se inteirar, sem deles querer saber.

            Julius, menino, ao redor do qual não transitam outros interesses senão o das partidas de golfe, dos banhos de sol, dos aperitivos, vai aprendendo a conviver com suas perdas e com sua solidão. Entre os de sua classe, fantoches que se repetem  e os outros, igualmente distantes porque pobres, Julius deve bastar-se.

            Um aprendizado doloroso e sem respostas. E’assim que termina a história de Julius,  o drama de um menino rico que tem onze anos e sente ao redor o vazio. Para  remediá-lo só um choro longo e silencioso, repleto de perguntas.
 
            Alfredo Bryce Echenique, peruano nascido em Lima no ano de 1940 neste seu primeiro romance escreve querendo respondê-las.