domingo, 8 de abril de 1990

César Vallejo, um filho do Continente

            Numa humilde edição, feita pelas mãos de presos, apareceu Trilce, no ano de 1922, em Lima,  livro que foi rodeado por uma verdadeira conspiração de silêncio. César Vallejo, seu autor, tinha, então, trinta anos e já havia publicado Heraldos Negros quatro anos antes. Nota Roberto Fernández Retamar no Prólogo às Obras Completas do autor peruano, publicadas pela Casa de Las Américas em 1970 que, politicamente, 1922 foi o ano da entrada de Mussoline  e dos camisas negras em Roma e, literariamente, o ano de publicação de Ulyses de James Joyce e The Wasteland de  T.S. Eliot. Acrescenta que a importância do aparecimento de Trilce para a poesia espanhola não é menor que a daquelas obras para a Literatura Inglesa ( o primeiro decidiria o rumo da prosa, o segundo, da poesia).

            Trilce não somente foge do tradicional mimetismo de inúmeras obras do Continente em relação à cultura européia como, ao romper com a razão e com as formas lingüísticas tradicionais, inicia uma visão de mundo relativa e instável que desintegra a realidade.

            Houve quem dissesse que Trilce , contém uma sílaba da palavra “triste” e outra da palavra “dulce” (doce), exatamente a síntese do livro. Embora sejam versos que, poucas vezes,  se entreguem, racionalmente,  à compreensão, a expressividade da linguagem, feita de recursos sonoros, rítmicos e gráficos, estabelece a comunicação poética afetiva que se amplia ao se reconhecer a representação das vivências do poeta. Assim, o poema 58, “En la celda”.Circunstâncias nebulosas, um processo absurdo, o levaram à prisão. Mais tarde, num de seus poemas confessará: O momento mais grave de minha vida foi minha prisão numa cárcere do Peru.  Mas, já em Trilce, o seu sofrimento se escoa em versos que exprimem esse conhecer que teve das injustiças e da compaixão  e que o levam desse presente perverso para a infância que, então, revive, sob as sombras da cela e dos homens que nela habitam.  Os esfarrapados, os humildes, os famintos, o conduzem para  a  lembrança do menino que se esquecia dos alimentos (à mesa de meus pais, menino, eu adormecia mastigando); que ria das rezas da mãe, no domingo (pelos caminhantes, encarcerados doentes e pobres); que batia nos mais fracos ( No redil de crianças, já não assestarei socos em nenhuma delas).

            O presente vivido com os  humilhados  lhe pesa tanto que desejaria poder modificar essa infância longínqua: que o menino que foi soubesse o valor do pão porque há famintos; o valor da reza porque há desamparados; o valor do respeito ao próximo porque há injustiçados . E é tão forte essa emoção do poeta que  a recusa da simetria, da harmonia e dos padrões lingüísticos usuais -  parte de sua “arte poética”-   não chegam a erguer barreiras entre seus versos e o leitor. O  repúdio das estruturas sociais  que o faz vislumbrar sociedades igualitárias – sonho que irá perseguir -  se expressa num poetar mergulhado em formas  nunca antes vistas no Continente. Luta pela justiça e prega ter o direito de estar verde e contente e perigoso e introduzir os pés e o riso. 

            Morreu aos quarenta e seis anos, muito pobre, em Paris.  Real e verdadeiro filho do Continente.

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