domingo, 29 de abril de 1990

José María Árguedas, estrela e guia



            Um ano antes de suicidar, José Maria Árguedas recebeu o Prêmio “Inca Garcilaso de la Vega”. No  discurso que então pronunciou, o escritor peruano se diz  um indivíduo quechua moderno,  isto é,  possuidor de uma cultura milenar que se expressa na língua do povo que tentou sufocar essa cultura.           Uma dualidade ao congregar em si o saber indígena  o saber hispânico que desejou converter em linguagem artística. Para  muitos, Vargas Lhosa, Angel Rama e outros, ele o conseguiu.

            Seu primeiro livro, Agua, um livro de contos, data de 1935. Em 1954, publicou Diamantes y pedernales e, treze anos depois, Amor mundo y otros relatos, também coletâneas de contos .Mas, foram três de seus romances que lhe deram notoriedade: Los ríos profundos ( 1958), Todas las sangres ( 1964) e El zorro de arriba y el zorro de abajo, publicado postumamente.

            Ao suicidar-se, no dia 28 de novembro de 1969, o romance que deveria escrever para a Editora Losada   ficou inconcluso e, assim, foi publicado, mesclando-se a seus capítulos, as páginas do diário que José Maria Árguedas escrevia nos momentos de crise. A esses textos acrescentaram-se, ainda, as palavras que pronunciou ao receber o Prêmio “Inca Garcilaso de la Vega” e as duas cartas escritas antes do suicídio, uma a Gonzalo Losada, outra ao Reitor da Universidade Agrária da qual era professor.

            Se, nesses capítulos de El zorro de arriba y el Zorro de abajo, deixa-se entrever nas suas lutas em busca do caminho para  uma perfeita realização ficcional, nas páginas do diário se mostra uma alma enfrentando fraquezas tão imensas que, talvez, signifiquem, mais do que tudo, atos de coragem: confessar-se, outra vez, às portas do suicídio, discutir sobre a melhor  maneira de realizá-lo. Essas páginas ficcionais expressando as suas preocupações estéticas a serviço de uma idéia e as confessionais, expressando a profundidade dos abismos em que, ao longo da vida, José Maria Árguedas, tantas vezes, se viu mergulhado  se inserem, como os demais contos e romances e como todos os seus escritos sobre a cultura quechua reunidos em Señores e indios, no objetivo primeiro de sua tarefa intelectual: fazer emergir a sabedoria e a arte indígena.

            Criado entre os quechuas, falando a sua língua e conhecendo os seus cantos e os seus mitos, José Maria Árguedas é o branco que se incorpora à cultura dominante para nela inscrever o acervo indígena, desprezado pelos que chegaram ao Continente.  Então, ele proclama: Não sou um aculturado. Sou um peruano que, orgulhosamente, como um demônio feliz, fala em cristão e em indígena, em espanhol e em quéchua..

            Sabe muito bem e deseja que todos saibam que o povo considerado enfraquecido ou impenetrável pelos colonizadores, conservou, num exercício de séculos, a luz da razão e da criatividade. Luz que nenhum muro opressor conseguiu impedir que brilhasse.

            Num Continente em que a elite dominante desconhece ou faz por desconhecer as suas origens para cultuar valores alienígenas e quer fugir à compreensão do que esses valores significam ou trazem no seu bojo, a voz de José Maria Árguedas pode soar discordante.        Para aqueles, porém, que acreditam que o Continente ainda poderá encontrar o seu caminho é uma voz que se alça para ser estrela e guia..

 

 

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domingo, 22 de abril de 1990

O universo sonhado


            Alberto Gerchunoff, até então, só havia publicado críticas literárias vivamente mordazes na revista Ideas de Buenos Aires quando, em 1910, apareceu em Buenos Aires, o seu primeiro livro, Los gauchos judios.

            A alegria de um namoro ou da colheita do primeiro trigo, a tristeza da morte que advém imprevista ou de uma injustiça inesperada são temas que se inscrevem nos vinte e seis pequenos textos que compõem a obra, uma recriação do cotidiano da Colônia Rajil de Entre Rios, na Argentina: a ordenha, a festa de casamento, deliberações pelos rabinos sobre um pedido de divórcio, a morte violenta de um membro da comunidade, os bois arando o campo, a nuvem de gafanhotos que destrói a horta e o jardim.

            Dos colonos que, no fim do século XIX, vieram para a Argentina, fugindo dos guetos e massacres da Rússia, Alberto Gerchunoff esboça os retratos: judeus que se apegam às tradições das rezas e rituais com os quais abençoam a nova pátria e que, lentamente, vão se aculturando.

            Do dia a dia, ele registra os diálogos ingênuos como o que se estabelece a cada manhã na casa da velha judia que procura o ninho das galinhas, repetindo, sempre, a mesma queixa: nunca põem os ovos no mesmo lugar. Queixa que, invariavelmente, recebe a mesma resposta: são mal educadas, patroa.

            Tinha cinco anos Alberto Gerchunoff quando chegou na Argentina, vindo na leva de emigrantes que aportou em Buenos Aires, num dia de outono de 1889, trazidos pelo navio Weser. Talvez os seus anos infantis e adolescentes não tenham sabido mensurar os dramas então enfrentados e só lhe tenham ficado na lembrança as cores dos campos, os trabalhos de todos os dias, a convivência com a terra e as canções entoadas. Porque das lutas e dificuldades dos primeiros tempos da imigração quando os colonos trabalhavam para que a terra desse frutos ou para conquistar o idioma, o testemunho  vai-se fazendo  em cores suaves, em traços idílicos: a vaca era boa como um pedaço de pão, a primavera estalava e as margaridas branqueavam o verde feliz dos campos.

            Suave e rústico é o mundo descrito por Alberto Gerchunoff. Porém, as comemorações do centenário da Fundação de Moisés Ville,  colônia onde inicialmente se havia instalado a família Gerchunoff,  não ignoraram que, para os que chegaram, houve falta de habitação condigna, houve falta de alimentação sadia e de atendimento médico. Que foram causa de desilusões a dificuldade na obtenção das terras que haviam sido oferecidas pelo consulado argentino em Paris, a impossibilidade de cumprir, integralmente, o ritual religioso, as diferenças de mentalidade.

            Como se nesse território conquistado para a riqueza agrícola – a introdução de novas técnicas para o plantio e a instalação de cooperativas agrícolas fizeram  com que em apenas quatorze anos passados, já existissem mais de duzentos mil hectares cultivados – houvesse rígidas fronteiras de universos. Um, o de Alberto Gerchunoff, de belas judias e de sábios varões, de campos cultivados e  de paz. Outro, o da crônica histórica, de fracassos, de medos, de perdas irreparáveis.

domingo, 8 de abril de 1990

César Vallejo, um filho do Continente

            Numa humilde edição, feita pelas mãos de presos, apareceu Trilce, no ano de 1922, em Lima,  livro que foi rodeado por uma verdadeira conspiração de silêncio. César Vallejo, seu autor, tinha, então, trinta anos e já havia publicado Heraldos Negros quatro anos antes. Nota Roberto Fernández Retamar no Prólogo às Obras Completas do autor peruano, publicadas pela Casa de Las Américas em 1970 que, politicamente, 1922 foi o ano da entrada de Mussoline  e dos camisas negras em Roma e, literariamente, o ano de publicação de Ulyses de James Joyce e The Wasteland de  T.S. Eliot. Acrescenta que a importância do aparecimento de Trilce para a poesia espanhola não é menor que a daquelas obras para a Literatura Inglesa ( o primeiro decidiria o rumo da prosa, o segundo, da poesia).

            Trilce não somente foge do tradicional mimetismo de inúmeras obras do Continente em relação à cultura européia como, ao romper com a razão e com as formas lingüísticas tradicionais, inicia uma visão de mundo relativa e instável que desintegra a realidade.

            Houve quem dissesse que Trilce , contém uma sílaba da palavra “triste” e outra da palavra “dulce” (doce), exatamente a síntese do livro. Embora sejam versos que, poucas vezes,  se entreguem, racionalmente,  à compreensão, a expressividade da linguagem, feita de recursos sonoros, rítmicos e gráficos, estabelece a comunicação poética afetiva que se amplia ao se reconhecer a representação das vivências do poeta. Assim, o poema 58, “En la celda”.Circunstâncias nebulosas, um processo absurdo, o levaram à prisão. Mais tarde, num de seus poemas confessará: O momento mais grave de minha vida foi minha prisão numa cárcere do Peru.  Mas, já em Trilce, o seu sofrimento se escoa em versos que exprimem esse conhecer que teve das injustiças e da compaixão  e que o levam desse presente perverso para a infância que, então, revive, sob as sombras da cela e dos homens que nela habitam.  Os esfarrapados, os humildes, os famintos, o conduzem para  a  lembrança do menino que se esquecia dos alimentos (à mesa de meus pais, menino, eu adormecia mastigando); que ria das rezas da mãe, no domingo (pelos caminhantes, encarcerados doentes e pobres); que batia nos mais fracos ( No redil de crianças, já não assestarei socos em nenhuma delas).

            O presente vivido com os  humilhados  lhe pesa tanto que desejaria poder modificar essa infância longínqua: que o menino que foi soubesse o valor do pão porque há famintos; o valor da reza porque há desamparados; o valor do respeito ao próximo porque há injustiçados . E é tão forte essa emoção do poeta que  a recusa da simetria, da harmonia e dos padrões lingüísticos usuais -  parte de sua “arte poética”-   não chegam a erguer barreiras entre seus versos e o leitor. O  repúdio das estruturas sociais  que o faz vislumbrar sociedades igualitárias – sonho que irá perseguir -  se expressa num poetar mergulhado em formas  nunca antes vistas no Continente. Luta pela justiça e prega ter o direito de estar verde e contente e perigoso e introduzir os pés e o riso. 

            Morreu aos quarenta e seis anos, muito pobre, em Paris.  Real e verdadeiro filho do Continente.

domingo, 1 de abril de 1990

Esperas e perfeições

            O desengano é uma das expressões da lírica de Alfosina Storni. Pretender assumir a maternidade sem ter se submetido às leis às quais ela deve estar submissa ou pretender gozar dos direitos, até então, reservado somente aos homens foi um avançar sobre o seu tempo que, necessariamente, teve um preço. E, os versos da poetisa argentina, muitas vezes, traduzem as decepções e as revoltas que tiveram o seu germe num meio e numa época em que ser livre para o amor e  para ser mãe fugia aos padrões e a seus consentimentos.

            Sofrer muito, porém, não foi razão suficiente para que Alfonsina Sorni se negasse ao amor, para que deixasse de ansiar por ele. E, sua entrega já se inicia na espera do amado. Uma espera que é ritual ( o poema “Sábado”o descreve)   em que se mesclam desejos primitivos de sentir a terra, a água, as plantas, os animais ( andei descalça...beijei as plantas... perfumei as mãos com o sumo cheiroso do jasmim)  com os ecos de um conforto traduzido em som de louças e cristais,  em visões de mármore branco. Perfeição e beleza que a poetisa aspira para seu corpo: ser deusa feita de mármore, com cabelos de fios entrelaçados, com a boca de flores.

            Em 1952, quatorze anos depois de sua morte, nascia em Cuba, Reina Maria Rodriguez. Cresceu para se fazer poetisa num momento em que já estavam sendo ofertados à mulher outros caminhos: a realização profissional irrestrita e o direito de aspirar, sem pretender liames formais, à plena realização afetiva. Reina Maria Rodriguez procura, também, o amor, o amado. Talvez, mais do que tudo, o verdadeiro encontro com o outro.E, o leve desencanto que perpassa nos seus poemas provém, não de abandonos ou decepções, mas da impossibilidade sua e da impossibilidade do amado de se compreenderem: insetos transparentes que não souberam voar até a perfeição. Sabe que seu corpo se cala porque está, ainda, preso a rigores herdados. Mas, à espera do amado não pensa em oferendas. A seu encontro leva, apenas, o medo de esperar em vão. E, quando se quer perfeita, é um dizer irônico enumerando seus defeitos ( ter gostos desordenados, apreciar exageradamente o  café, sofrer, como qualquer mortal de doenças crônicas) e seus inconcebíveis desejos: dispor de objetos extraordinários, aprender alguma coisa ou dizer como é o mundo, possuir um tigre de verdade ou, por uns instantes, ser mis universo.

            Esperar pelo amado ou para ele desejar ser perfeita são momentos que aproximam, brevemente, essas duas poetisas entre si tão distantes. O  tempo que transcorreu e as transformações que trouxe para o ser feminino, certamente,  não modificaram  os seus anseios. Mas, permitiram  que esses anseios não continuassem  presos a conceitos, a estereótipos e a leis e pudessem, então,  ser expressos  livremente, sem entraves.