domingo, 19 de fevereiro de 1989

O Brasil na longa noite de Francisco Sanctis

            A história é anunciada como sendo a de um conflito íntimo vivido por um pequeno funcionário, Francisco Sanctis, na Buenos Aires de 1977. Um conflito que se inicia no entardecer de uma sexta feira do mês de novembro e que se prolongará até as primeiras horas do sábado quando terá  à revelia do protagonista, a solução.

            Entre o início e  fim dessa luta de “índole moral”, transcorrem umas dez horas de indagações, respostas, deambulações pela cidade e, interrompendo o longo monólogo de Francisco Sanctis, dois diálogos exemplares. São conseqüências daquele que, na tardezinha do dia 14 de novembro, tirou o pequeno funcionário de seus pequenos hábitos e de seu pequeno mundo para lançá-lo, de súbito,  na realidade de uma situação político-social extremamente agressora quando  lhe  foi confiada uma tarefa  precisa e urgente: prevenir duas pessoas que  seriam presas, naquela noite, pela repressão.

            Quando se inicia a longa noite e as  horas passam e o prazo fatal se aproximava, os diálogos  que Francisco Sanctis estabelece irão emocioná-lo e, por fim, decidi-lo à ação.

            Na esperança de encontrar alguém para executar a difícil tarefa, acredita poder contar com seu ex-vizinho Marcelo Perugia, um homem de aparência impecável, de grosso anel de monograma no dedo.  Antes de se decidir a tocar no assunto, primeiro se defronta com aquele otimismo próprio de quem, em dois anos, conseguiu se mudar de um pequeno apartamento para uma bela casa de  bairro rico e que acredita que as coisas, na realidade, vão muito melhor do que as pessoas supõem  e que, num par de anos, o pais estará em ordem. Nas frases seguintes do interlocutor, se depara com convicções que lhe parecem medievais ao ouvi-lo pregar a necessidade de duzentas mil execuções para que o país atinja um franco desenvolvimento.

            Francisco Sanctis se dá conta de sua própria ingenuidade ao perceber que nunca havia pensado que há pessoas que se adaptam às mais estranhas circunstâncias. Nada as impede de estar sempre em boa situação e sem o menor esforço confundem seus ódios e amores com os ódios e amores daqueles que governam. Volta-se, então, para quem, na clandestinidade, poderá ter ligações que facilitem a entrega do recado; porém, mal iniciado o diálogo, fica bem claro que o jovem que está diante dele é um perseguido trêmulo e inseguro que não dorme há três noites, esperando que  alguém lhe traga os novos documentos para poder  sair do país, tomando um ônibus para o Brasil.

            Francisco Sanctis vê nele um daqueles duzentos mil que a repressão procura exterminar e se dá conta, ao escutá-lo, que a cidade em que vive  é um mundo desconhecido, dramático, sem esperanças, terrível. Um mundo cuja existência mal suspeitava.

            Na imensa solidão em que se encontra, não mais discute consigo mesmo. Decide ir em busca dos endereços citados e se embrenha na viagem urbana que irá varar a noite. Na madrugada,  dentro de um táxi, irrompe a voz de Roberto Carlos falando num milhão de amigos. Exatamente quando está agradecendo ao Senhor por um monte de bobagens é que Francisco Sanctis se aproxima do local que procura, momento final de sua peregrinação e de sua longa noite. O drama íntimo, por fim, se resolvera.

            Como já o fizera em Dioses, hombrecitos e policias ( 1977), em La larga noche de Francisco Sanctis ( Bruguera, 1984), Humberto Costantini narra as atribulações de um homem comum que se esforça para vencer o dia a dia, ignorando os terríveis momentos cruciais que são a realidade do país.

            Os fados, porém,não permitem que um inocente viva em meio ao caos e armam ciladas. São elas que, transformadas em matéria romanesca, trazem no seu bojo a História do Continente.


           

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