domingo, 22 de janeiro de 1989

Os traidores: Felipillo

          Foi um momento de rara beleza. Num espaço onde restos de uma cidade indígena, destruída pelos conquistadores ainda subsistem, levantarm-se as vozes que o dramaturgo peruano reconstituiu: a primeira montagem de La muerte de Atahualpa de Bernardo Roca Rey. Um cenário que, certamente, tornou mais real e impressionante o sentido das palavras dos três personagens, Valverde, Atahualpa e Felipillo.
 
          Valverde, frade que veio ao Continente para converter os índios. Das matanças, das mulheres violadas ou dos templos saqueados, disso ele se inocenta: a soldadesca é sempre tão brutal.... Quer, apenas, oferecer a cruz. Um símbolo que, em troca do ouro, é de reconforto.
 
          Atahualpa recebeu um império para o qual desejou a paz e a justiça num caminho marcado também  pelo sangue do irmão. Depois, prisioneiro, com as mãos algemadas pelos espanhóis, ele pressente que a sua morte será a destruição de seu povo.
 
          Felipillo defende as verdades dos conquistadores porque foram elas que lhe salvaram a vida. Aprendeu com o invasor, cujo deus havia sido traído por umas moedas, a trair e trocou seu povo por um capacete de ferro.
 
          Uma tríade que sintetiza um dos muitos momentos da História da América em que se defrontam os donos do Continente e os que vieram  para usurpá-lo. Nas palavras do Imperador Inca, do representante da fé e de Felipillo que defende só a si mesmo, desfilam as verdades.  Convertido ou submetido é igual, diz o Inca. Pizarro quando submete os caciques exige a submissão somente a Deus, esclarece o frade. O que importaria que o Império inteiro se perdesse se eu iria surgir do nada para me converter em algum personagem de certa importância?, justifica-se Felipillo.
 
         Verdadeiras ou falsas tais expressões recriam a História do Continente no jogo teatral. Do austero cenário de muros frios e nus, somente iluminados por duas tochas; da simplicidade dos trajes que vestem os personagens; da monotonia dos sons, tambores e lamentos que, por vezes, acompanham os diálogos, sobressai a palavra. Como se as impressões  dramáticas se diluíssem para fazer  sobressair imagens e lições.
 
         Elementos espanhóis e indígenas se mesclam nos trajes de Felipillo. Ambigüidade que, também, lhe domina a alma. Do Inca Atahualpa, ele escuta: vai te esconder nos bosques e ali vive como animal fugido. Que ninguém te veja para que não se envergonhe de ser homem.
 
                                                                                  Em Canela, janeiro de 1989

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