domingo, 15 de janeiro de 1989

Os traidores: Malinche


Três foram teus nomes, mulher: o que te deram teus pais, o que te deu teu amante, o que te deu teu povo... Malintzin, disseram teus pais;  feiticeira, deusa da má sorte e da contenda de sangue...  Marina, disse teu homem lembrando o oceano por onde veio até estas terras... Malinche, disse teu povo: traidora, língua e guia do homem branco.
Carlos Fuentes, Todos los gatos son pardos.

            Em 1519 da era cristã, Hernán Cortés iniciava a conquista do México. Contou essa conquista nas “Cartas de Relación” que enviou aos soberano da Espanha onde descreve as novas terras, seus habitantes e riquezas e, com detalhes, as próprias façanhas. Sobre Marina, calou-se. No entanto, sem a princesa índia que recebera de presente e que tomara como amante ( depois de batizá-la), certamente o resultado do confronto com os indígenas teria sido diferente.

            No primeiro volume de Memória del fuego de Eduardo Galeano, Marina, vestida como espanhola e cavalgando ao lado de Cortez, chega a Painala, lugar de sua infância. A mãe se aproxima, em prantos, pedindo perdão, Marina faz com que se levante, oferece-lhe os colares que usava e, outra vez, segue seu caminho ao lado dos espanhóis.

            Na verdade, Hernán Cortez, ao longo dos anos de conquista, a manteve sempre a seu lado. Intérprete, conselheira, amante, mãe de seu filho.

            Na peça de Carlos Fuentes, Todos los gatos son pardos é a sua voz que inicia a narrativa, vindo do fundo do auditório. Vestida com uma túnica indígena branca, traz nas mãos uma tocha e tem os cabelos negros, longos e revoltos. Avança para o palco e sua voz se ergue para assumir os três papéis que lhe atribuíram:  deusa, amante ou mãe eu vivi esta história e posso contá-la

            Corria o ano de Ce Acatl na cronologia asteca e as profecias – deuses claros chegando do mar – estavam prestes a serem cumpridas. A profecia que marcou o nascimento da princesa índia (ser deusa de má sorte) conduziu os seus passos. Foi escrava e como escrava oferecida ao homem branco. Nenhuma afeto a ligava a seu nascimento e a seu povo. Como amante do capitão espanhol, ela escolheu o seu destino. Conhecedora dos segredos de seu povo e dos segredos dos espanhóis, revelou uns e calou outros: Guardarei teus segredos, senhor, e te contarei os de minha pátria. Tu, pela minha boca saberás tudo sobre ela e ela nada saberá a não ser a mentira que assegure tua a vitória . Es plebeu e mortal. Pela minha boca serás deus e imortal.

            Hernán Cortez atravessou as montanhas com um punhado de homens e ao chegar diante de Montezuma a sorte do Império já tinha sido selada. As profecias acovardaram os seus habitantes e tornaram inerte  o rei. O espanhol viera para vencer. Entre eles a voz feminina: Senhor, escuta-me, senhor: ao terminar a batalha enterra os teus mortos. Que meu povo não veja que teus homens são mortais.

            Repudiada ao nascer, vendida e humilhada pela escravidão, possuída por um estrangeiro, a ele se aliou e a ele entregou o futuro de seu povo. Foi esse papel que a tradição conservou e dos três nomes que possuiu foi guardado o terrível: Malinche, traidora.

            Como verdadeira maldição a pesar sobre muitos e muitos habitantes do sul do rio Bravo, a predisposição para entregar as riquezas do Continente ao estrangeiro que, e assim o dia a canção de Gabino Palomares,  continua a chegar. A chegar e a oferecer em troca das selvas do Continente os seus espelhos sem brilho e as suas contas de vidro.

Em Canela, janeiro de 1989

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