sábado, 19 de março de 1988

Olhos de menina


            Inserido num texto que narra o cotidiano de uma menina, o atentado do dia 9 de abril de 1948, em Bogotá, e os acontecimentos que a ele se seguiram. A narração – construída em pequenos textos objetivos e sintéticos, antecedidos de marcação de tempo precisa – se inicia com um fato aparentemente sem importância, a chegada de Jorge Eliécer Gaitán a seu escritório, às 8.30 da manhã. Continua em mais nove parágrafos até chegar às 14.15, hora em que ele morre, vítima de um a tentado político, assassinado, como disse um homem o povo, por um “João ninguém”.  No romance, são diferentes vozes que se entrelaçam para reconstruir os episódios de violência que o inesperado crime originou. E o que aconteceu adquire  vários tons: a primeira dama do país se confessa desagradavelmente surpresa ao saber da morte de Gaitán; uma senhora da elite econômica lamenta que tais coisas estejam acontecendo exatamente no dia em que iria se apresentar no Teatro Colón um afamado cantor; Sabina, uma empregada doméstica, murmura rezas e acende velas a mando da patroa, O jovem do povo, levado de roldão à luta armada, testemunha o horror  da violência desencadeada. Entre essas vozes e tantas outras, a de Ana.

            Ana está no terceiro ano da escola primária, já sabe ler e somar. Em meio aos interesses próprios da idade (deliciar-se com as goiabas, ganhar medalhas  de primeiro lugar, assistir um filme do Gordo e o Magro, comer merenda) participa, ainda que protegida pela distância, do medo e das dúvidas que dominam a família e a cidade.

            Na Escola, as freiras, nervosas, mudam as normas no que se refere à ida para casa: que as meninas não formem filas por ano, como sempre, mas a partir da direção da cidade onde moram; que as mais velhas cuidem das menores e que tão logo saiam do Colégio corram o mais depressa possível. Na corrida,  houve quem deixasse cair os cadernos e que tivesse medo que lhe matassem o pai. E, ao chegar em casa, as reprimendas: como dar pontapés no portão? Não lhe ensinaram que se toca a campainha? Ao pedir, faminta, a merenda lhe respondem que lá isso é hora de pensar em comer? Incompreensível, então,  para ela,a incoerência dos adultos ao determinar que o momento era grave demais para matar-lhe a fome enquanto providenciam a compra de muitos gêneros alimentícios ( antes que turba saqueie tudo).

            Assim, enquanto a cidade é saqueada, enquanto a multidão se embebeda e cadáveres se espalham pelo chão, enquanto a Rádio incita o povo às armas, as perguntas de Ana vão ficando sem resposta. Somente se lembram dela para lhe mandar tirar o uniforme.

            Sem muito entender o que se passa – a morte do chefe   do “Grande Partido Liberal”, as cabeças penduradas nos postes, o medo dos adultos -  Ana dará testemunha do caos vivenciado por Alba Lucia Angel, romancista colombiana nascida em 1939. Ao escrever, entre 1971 e 1975, Estaba la pájara pinta sentada en el verde limón, ela  retoma essas questões, procurando  respostas para as perguntas  que provavelmente também lhe foram escamoteadas. Para contar  o cotidiano de sua personagem, o inscreve nos dias das  violências e lutas desse abril de 1948 e buscando novas formas narrativas,  assume um compromisso com a realidade de seu país no intuito de compreender (ou explicar)  os porquês da violência que abruma a sua História.

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