sexta-feira, 3 de julho de 1987

Felisberto Hernández: a dimensão das coisas

            No Brasil, jamais foi mencionado. Como, sempre, na França já traduzido  e seu livro de contos Las hortênsias, publicado com um prólogo de Julio Cortazar. Na Itália, Nadie encendia las lámparas apareceu com apresentação de Ítalo Calvino.  Durante anos, Felisberto Hernández ganhou sua vida humildemente, acompanhando ao piano a projeção de filmes mudos em excursões artísticas pelo interior do país ou em modestas funções burocráticas.

            Autor de uma prosa que se adiantou no tempo, o uruguaio Felisberto Hernández, nos seus primeiros contos, parecia ter uma vocação memorialística pois eles estavam permeados de fragmentos biográficos e de reminiscências de Montevidéu dos anos vinte. Assim, por exemplo, seu livro Por los tiempos de Clemente Colling. Seguiriam outros caminhos suas obras posteriores. Afastam-se da evocação direta para descobrir uma dimensão do imaginário ao qual o mundo narrativo se elabora num complexo tecido: emaranhado de meadas de experiências pessoais e de um modo próprio de enxergar o real.

            Ao apresentar El caballo perdido y otros cuentos, José Pedro Díaz enfatiza esse  “redescobrir da realidade”, esta capacidade de “descobrir o excepcional no cotidiano”.

            Em Felisberto Hernández, trata-se, sem dúvida, do real. Mas um real do dia a dia que adquire expressões inusitadas. Objetos que surgem inesperadamente, como algo estranho para, em seguida, apresentarem a mais sensata das presenças. Assim acontece com um personagem sentado no banco da praça.  De repente, quase perto dele, sente  um pano molhado.Na verdade, era uma grande folha de plátano cheia de umidade. Objetos que se aproximam do humano quando o olhar neles pousado percebe semelhanças:  portas de vidro  que davam a impressão de serem  damas decotadas. Tinham cortinas  muito leves e parecia que haviam sido surpreendidas com roupa de baixo. Ou, objetos que passam a fazer parte do viver cotidiano numa presente relação afetiva: a sacada é a maior amiga da personagem colecionadora de sombrinhas. A boneca Hortência é amiga, é filha, é amante. E, também o terceiro elemento de um triângulo amoroso.

            Presenças inanimadas a ocuparem um espaço  pertencente aos humanos  que nesses desejos de dar vida às coisas, nessas buscas de outras realidades permitem descobrir a extrema solidão em que estão enclausurados.

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