terça-feira, 30 de junho de 1987

Don Segundo Sombra:uma esperança visionária


            Não havia chegado, ainda, o momento do mágico, do fantástico, do maravilhoso para explicar a América dos latino-americanos. Ricardo Güiraldes, o rico fazendeiro argentino entre Paris e as viagens pelo mundo e os verões em “La Porteña”, ia elaborando “borrões”: El cencerro de cristal, Cuentos de muerte e de sangre, Raucho, Rosaura, Xaimaca até chegar a Don Segundo Sombra. Publicado em 1926, esse romance foi suscitando a admiração de Borges, T.S.Eliot, Saint John Perce, Pablo Neruda e originando traduções. Apareceu em tcheco, holandês, inglês e, já em 1934, em português. E os anos o transformaram num clássico da Literatura Argentina.

            Mais do que contar um aprendizado, Don Segundo Sombra é a história da transformação de um menino guacho num gaúcho de lei. Transformação que se inicia quando, aos quatorze anos o acaso o faz cruzar, à luz do entardecer, com Don Segundo a quem irá seguir pelo campo afora e com quem se iniciará nas lides campeiras. Com Don Segundo aprenderá as artes da doma, o manejo do laço e das boleadeiras, a amadrinhar a tropilla, a curar animais, preparar loncas e tentos para a  confecção de rédeas, boçais e cinchas. Aprenderá, também os floreios do violão e os passos do sapateado, a dizer versos e a contar causos ao redor do fogo. E a resistência e a integridade na luta, o fatalismo em aceitar o fados sem cabrestear, a força moral diante das aventuras sentimentais, a desconfiar das mulheres e da bebida, a prudência entre forasteiros e a fé nos amigos.

            Nas palavras do narrador-personagem, o fluir das lembranças e a emoção originada desse aprendizado, se inserem nos quadros da vida campeira: a doma, o rodeio, a rinha de galos, o baile, o desafio, a lutar para lavar a honra e nas imagens do campo argentino, de seus animais e de seus tipos humanos nos quais se encarnam as virtudes gaúchas. Virtudes que, para Ricardo Güiraldes não se constituem somente reminiscências distantes de uma infância passada no campo ou expressão onírica daquela sua experiência em Kandy, na India quando, sob o efeito de alucinógenos, lhe surgiu ante os olhos a visão de seu país, imenso território de homens e de História onde tudo, salvo o gaúcho com seus gritos rebeldes e a fé em si mesmo, era imitação, aprendizado e submissão.

            Relacionando essa visão de Ricardo Güiraldes com a sua preocupação pelo diluir-se do espírito nacional que era a preocupação dos intelectuais de seu tempo, Hugo Rodríguez-Alcalá entende Don Segundo Sombra como modelo proposto porque, num momento em que os argentinos, desejando se definir diante de certezas que oscilavam entre a tradição e o cosmopolitismo tinham somente o gaúcho com seus valores para servir de guia.

            Quinze meses depois da publicação de Don Segundo Sombra, morria Ricardo Güiraldes em Paris. Seus restos voltaram para serem sepultados no pequeno cemitério de San Antonio de Areco. Duzentos e cinquenta gaúchos formam um cortejo, encabeçado por Don Segundo que lhe inspirara o personagem. Um inusitado espetáculo observa Ivonne Bordelois, sua biógrafa: um personagem que conduz à sepultura o seu próprio autor. Ao depositar o caixão na terra ele disse: é aqui, patrãozinho.

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