Não
havia chegado, ainda, o momento do mágico, do fantástico, do maravilhoso para
explicar a América dos latino-americanos. Ricardo Güiraldes, o rico fazendeiro
argentino entre Paris e as viagens pelo mundo e os verões em “La Porteña”, ia
elaborando “borrões”: El cencerro de
cristal, Cuentos de muerte e de sangre, Raucho, Rosaura, Xaimaca até chegar
a Don Segundo Sombra. Publicado em
1926, esse romance foi suscitando a admiração de Borges, T.S.Eliot, Saint John
Perce, Pablo Neruda e originando traduções. Apareceu em tcheco, holandês,
inglês e, já em 1934, em português. E os anos o transformaram num clássico da
Literatura Argentina.
Mais
do que contar um aprendizado, Don
Segundo Sombra é a história da transformação de um menino guacho num gaúcho
de lei. Transformação que se inicia quando, aos quatorze anos o acaso o faz
cruzar, à luz do entardecer, com Don Segundo a quem irá seguir pelo campo afora
e com quem se iniciará nas lides campeiras. Com Don Segundo aprenderá as artes
da doma, o manejo do laço e das boleadeiras, a amadrinhar a tropilla, a curar
animais, preparar loncas e tentos para a
confecção de rédeas, boçais e cinchas. Aprenderá, também os floreios do
violão e os passos do sapateado, a dizer versos e a contar causos ao redor do
fogo. E a resistência e a integridade na luta, o fatalismo em aceitar o fados
sem cabrestear, a força moral diante das aventuras sentimentais, a desconfiar
das mulheres e da bebida, a prudência entre forasteiros e a fé nos amigos.
Nas
palavras do narrador-personagem, o fluir das lembranças e a emoção originada
desse aprendizado, se inserem nos quadros da vida campeira: a doma, o rodeio, a
rinha de galos, o baile, o desafio, a lutar para lavar a honra e nas imagens do
campo argentino, de seus animais e de seus tipos humanos nos quais se encarnam
as virtudes gaúchas. Virtudes que, para Ricardo Güiraldes não se constituem
somente reminiscências distantes de uma infância passada no campo ou expressão
onírica daquela sua experiência em Kandy, na India quando, sob o efeito de
alucinógenos, lhe surgiu ante os olhos a visão de seu país, imenso território
de homens e de História onde tudo, salvo o gaúcho com seus gritos rebeldes e a
fé em si mesmo, era imitação, aprendizado e submissão.
Relacionando
essa visão de Ricardo Güiraldes com a sua preocupação pelo diluir-se do
espírito nacional que era a preocupação dos intelectuais de seu tempo, Hugo
Rodríguez-Alcalá entende Don Segundo
Sombra como modelo proposto porque, num momento em que os argentinos,
desejando se definir diante de certezas que oscilavam entre a tradição e o
cosmopolitismo tinham somente o gaúcho com seus valores para servir de guia.
Quinze
meses depois da publicação de Don
Segundo Sombra, morria Ricardo Güiraldes em Paris. Seus restos voltaram
para serem sepultados no pequeno cemitério de San Antonio de Areco. Duzentos e
cinquenta gaúchos formam um cortejo, encabeçado por Don Segundo que lhe
inspirara o personagem. Um inusitado espetáculo observa Ivonne Bordelois, sua
biógrafa: um personagem que conduz à sepultura o seu próprio autor. Ao
depositar o caixão na terra ele disse: é aqui, patrãozinho.

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