segunda-feira, 8 de junho de 1987

A história de Martín Romaña ou um latino-americano em Paris

            Depois de uma viagem complicada, Martín Romaña, o especialíssimo personagem de La vida exagerada de Martín Romaña (romance do peruano Bryce Echenique, publicada pela Argos Vergara de Madrid, em 1981) chega na França. Antes, tivera que suportar se despedir do pai e dos tristes olhos de Inês o quê o faz constatar que é num momento assim que muitos “se ferram” e não vão a Paris; também o momento em que muitos insistem em que sim, que irão para Paris e também se ferram. Martín Romaña foi. Para se embasbacar, como todos aqueles das gerações anteriores à Dysnelândia, diante de Notre Dame, da Sorbonne  e da Civilização. Naturalmente, enredando-se com os outros latino-americanos do Quartier Latin, sempre sem dinheiro e, talvez por isso, sempre da esquerda, das mais variadas esquerdas e cheio de idéias revolucionárias que, sem a menor dúvida, se postas em prática, iriam salvar o seu país, no caso o Peru.

            No seu dia a dia, como todos os latino-americanos na Franca, enfrentando, primeiro a ira do dono do hotelzinho cada vez que lhe pedia a chave do banheiro para tomar o banho cotidiano que a educação da elite latino-americana impõe como regra irreversível. Depois, enfrentando o funcionário da Sorbonne, “irmão gêmeo” do dono do hotel que lhe transmite as regras burocráticas: sem o carnê de residente não poderia se matricular na Sorbonne e sem o comprovante de matrícula não  lhe dariam o carnê de residente.

            Nas seiscentas e trinta e cinco páginas  do livro, são infinitas as aventuras e desventuras de Martín Romaña que, na qualidade de bolsista, vai conhecendo outros aspectos da França e dos franceses que não encontrou nos filmes e diapositivos vistos e revistos na Aliança Francesa de Lima.

            Por exemplo, o sistema de ensino daquela que foi durante décadas, a suprema catedral do saber. Onde a  questão era  bem tomar notas porque no fim do ano quem melhor memorizasse e   transcrevesse na folha do exame era quem obtinha a melhor nota. Era um mundo circular e perfeito no qual os professores recebiam a mesma coisa que davam e davam a mesma coisa que pensavam receber. Ou, os contratos de locação em que o sub-locador pagava por mês  o que o locador pagava trimestralmente para o proprietário. Ou, ainda, a precisão das mulheres que serviam no restaurante universitário em atirar a sobremesa exatamente em cima da comida. Constatação do recém chegado num meio social cujas evidências desconhece, pensando conhecer, cujo tom de suprema ingenuidade se insere naquela atitude básica do humorismo de que fala Robert Escarpit que, em Martín Romaña pode se exacerbar, tornando-se, por vezes, contundente. Sem que, no entanto, nas mudança de tom – trocista, irônico ou sarcástico  -  se perca o fio narrativo, se diluam as esplêndidas situações romanescas, a expressividade perfeita dos diálogos, a maravilhosa galeria de tipos.  A tão linda história de amor.

            E num narrar que flui, que se desdobra na voz de Martín Romana e, por vezes, também na voz do narrador demiúrgico que, explicando Martín Romana parece ser Martín Romana, as histórias se mesclam; tornam-se, prosaicamente reais,  a vida dos estudantes latino-americanos em Paris, os sonhos revolucionários, as peregrinações em busca das raízes européias. E, uma entre outras, a história de uma descolonização intelectual: a de Martín Romana.

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