sexta-feira, 15 de maio de 1987

Gaivotas sem mar

            Ao voltar do exílio europeu para Montevideo, Mario Benedetti escreveu um poema-síntese sobre esse retorno que, finalmente, acabou por não ser uma volta, mas um começo. De reencontros e desencontros. De olhares que se cruzam, se interrogam prenhes de paisagens e caminhos, ausências e testemunhos. Marcados ambos. Cem vezes marcados  pela distância e pela proximidade, pela mágoa de saber, de querer saber ou de ignorar. Ou, simplesmente marcados pelo tempo passado entre paredes e grades. Grades que resultaram eficientes para prender homens. No entanto, brechas insuspeitas permitiram o vôo dos poemas em minúsculos papéis de carteiras de cigarro que, a exemplo das folhas manuscritas que circulavam na América Colonial, pregando a liberdade e a  justiça, cumpriram o seu destino: passaram de mão em mão, atravessaram o Atlântico para dizer dos desacertos de um país onde a palavra era proibida, onde a leitura era proibida; onde, ao contrário, torturar era permitido.

            Impressos na Suécia, em 1981, La canción de los presos (poemas anônimos, saídos da cadeia  “Libertad”, de Montevidéu) retornam à América. São poemas do homem comum. Aquele que, no dizer de Eduardo Galeano que assina o prólogo, não se limita a consumir a pouca ou a inexistente cultura possível, mas que se mostra capaz de criá-la. Homem comum que, na prisão, luta em busca de uma palavra (ajudem a procurá-la, companheiros), na procura de um idioma (um alfabeto que escorra entre as grades). Um homem comum ansioso do mar, do sal, do riso do moleque escutado na rua. Do sol do meio dia. Ansioso de coisas simples, possíveis porque o desejo do vinho francês e do presunto da Dinamarca já é de praxe pertencer aos outros, alguns dos que estão livres, sem outro compromisso que o de garantir o privilégio dos privilegiados.

            Se a loucura, o suicídio, a degradação física fazem parte das metas do sistema, o misterioso acontecer dos poemas significa momentos de resistência onde é possível encarar a morte, a tortura e, principalmente, onde é possível pensar no amor. E resistir.

            A morte possível, próxima e que depende apenas do calibre e da distância. A tortura que é o sofrimento de outro torturado, chame-se ele Javier, Antonio, Pedro: São todos nomes da mesma história / São todos história da mesma infâmia. A tortura que é a incerteza do outro, do torturador: Por que tanta paixão / no aplicar da picana / ou nas surras. Por que se eu não sou nem latifundiário nem financista?  Ou a tortura que se espraia além do sofrimento físico, da sobrevivência: Hoje me tiraram o capuz / como vou chorar agora / exatamente agora? / que tenho vontade de chorar / onde esconder minhas lágrimas? / agora? /  agora que me tiraram o capuz.

            O amor é enredado no sonho, no captar de um detalhe: o rosto enfeitiçado do teu riso que, formosíssimo deve ser escondido dos fantoches, do terrificante circo das trevas; ou, enredado no desejo  simples de  estar junto, apenas caminhando enlaçados pelas ruas; ou, muito fugazmente, entrelaçado em relâmpagos de erotismo: momentos em que te penso freira e te faria ver / sentir / deus até o aturdimento; ou, encravado na irreal distância de um dia de viver tranqüilo: chegar a ti  / achar tua boca / beijar –te com minhas mãos / cegar-nos juntos / morder / queimar / arder até a cinza.

            Amor, amores que em lugar de se enfraquecer em lágrimas, se enrijecem  . A mulher, o filho, o companheiro, a cidade do mar e das gaivotas até, quem sabe, o soldado que passou frio na infância e foi treinado para matar, conduzem para a resistência. Não somente a resistência da  luta continua, coragem companheiro / estando o inimigo / estamos nós. Uma outra, muito mais profunda e abrangente: Falar brevemente com a abelha / que passou zumbindo / dizer para a formiga que se apresse / com seu pão / para a companheira formiga / contemplar a aranha / admirar a beleza / de suas patas portentosas / e suplicar-lhe / que suba mais devagar pela teia / são todas formas de resistir.

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