Ao
voltar do exílio europeu para Montevideo, Mario Benedetti escreveu um
poema-síntese sobre esse retorno que, finalmente, acabou por não ser uma volta,
mas um começo. De reencontros e desencontros. De olhares que se cruzam, se
interrogam prenhes de paisagens e caminhos, ausências e testemunhos. Marcados
ambos. Cem vezes marcados pela distância
e pela proximidade, pela mágoa de saber, de querer saber ou de ignorar. Ou,
simplesmente marcados pelo tempo passado entre paredes e grades. Grades que
resultaram eficientes para prender homens. No entanto, brechas insuspeitas
permitiram o vôo dos poemas em minúsculos papéis de carteiras de cigarro que, a
exemplo das folhas manuscritas que circulavam na América Colonial, pregando a
liberdade e a justiça, cumpriram o seu
destino: passaram de mão em mão, atravessaram o Atlântico para dizer dos
desacertos de um país onde a palavra era proibida, onde a leitura era proibida;
onde, ao contrário, torturar era permitido.
Impressos
na Suécia, em 1981, La canción de los
presos (poemas anônimos, saídos da cadeia
“Libertad”, de Montevidéu) retornam à América. São poemas do homem
comum. Aquele que, no dizer de Eduardo Galeano que assina o prólogo, não se
limita a consumir a pouca ou a inexistente cultura possível, mas que se mostra
capaz de criá-la. Homem comum que, na prisão, luta em busca de uma palavra (ajudem a procurá-la, companheiros), na
procura de um idioma (um alfabeto que escorra entre as grades).
Um homem comum ansioso do mar, do sal, do riso do moleque escutado na rua. Do
sol do meio dia. Ansioso de coisas simples, possíveis porque o desejo do vinho
francês e do presunto da Dinamarca já é de praxe pertencer aos outros, alguns
dos que estão livres, sem outro compromisso que o de garantir o privilégio dos
privilegiados.
Se
a loucura, o suicídio, a degradação física fazem parte das metas do sistema, o
misterioso acontecer dos poemas significa momentos de resistência onde é
possível encarar a morte, a tortura e, principalmente, onde é possível pensar
no amor. E resistir.
A
morte possível, próxima e que depende apenas do calibre e da distância. A
tortura que é o sofrimento de outro torturado, chame-se ele Javier, Antonio,
Pedro: São todos nomes da mesma história / São todos história da mesma
infâmia. A tortura que é a incerteza do outro, do torturador: Por que tanta paixão / no aplicar da picana
/ ou nas surras. Por que se eu não
sou nem latifundiário nem financista? Ou a tortura que se espraia além do
sofrimento físico, da sobrevivência: Hoje
me tiraram o capuz / como vou chorar
agora / exatamente agora? / que tenho vontade
de chorar / onde esconder minhas
lágrimas? / agora? / agora que me
tiraram o capuz.
O
amor é enredado no sonho, no captar de um detalhe: o rosto enfeitiçado do teu riso que, formosíssimo deve ser escondido dos fantoches, do terrificante circo
das trevas; ou, enredado no desejo
simples de estar junto, apenas
caminhando enlaçados pelas ruas; ou, muito fugazmente, entrelaçado em
relâmpagos de erotismo: momentos em que
te penso freira e te faria ver / sentir / deus até o aturdimento; ou, encravado na irreal distância de um dia
de viver tranqüilo: chegar a ti / achar
tua boca / beijar –te com minhas mãos / cegar-nos juntos / morder / queimar /
arder até a cinza.
Amor,
amores que em lugar de se enfraquecer em lágrimas, se enrijecem . A mulher, o filho, o companheiro, a cidade
do mar e das gaivotas até, quem sabe, o soldado que passou frio na infância e
foi treinado para matar, conduzem para a resistência. Não somente a resistência
da
luta continua, coragem companheiro / estando o inimigo /
estamos nós. Uma outra, muito mais profunda e abrangente: Falar brevemente com a abelha / que passou
zumbindo / dizer para a formiga que se apresse / com seu pão / para a
companheira formiga / contemplar a aranha / admirar a beleza / de suas patas
portentosas / e suplicar-lhe / que suba mais devagar pela teia / são todas
formas de resistir.

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