sexta-feira, 8 de maio de 1987

As artes clandestinas de Miguel Littin ou o direito de estar na própria casa

            Se existissem parâmetros para medir a façanha de colocar um ditador no mais profundo ridículo, a vitória caberia, certamente a Miguel Littin, o cineasta chileno  que realizou, em 1985, a proeza de entrar no seu país, nele permanecer  e  dele sair sem que as forças da repressão dessem por isso. No entanto, o que realmente passa a ser importante nessas seis semanas de risco, vividas pelo Diretor de cinema, é um significado que ultrapassa a extraordinária aventura que foi filmar o que ele bem quis sob os olhos de um regime que se quer eficientemente opressor.
            A emoção originada da leitura do livro La aventura de Miguel Littin clandestino en Chile    (Ediciones El País, Madrid, 1986), independente da genialidade de quem a escreve, o colombiano Gabriel García Márquez,  é a de um romance policial ainda que, no caso, se saiba, de antemão, o seu final. Seria o que se chama uma leitura lúdica, apenas prazerosa não fossem as reflexões que, obrigatoriamente, se lhe seguem. Antes de mais nada, imaginando como se instituiu Primeiro Mandatário do país aquele que, no livro, acaba recebendo trinta e dois mil e duzentos metros de “rabo de burro” que são os trinta e dois mil metros de filme que Miguel Littin rodou no desejo de documentar a ditadura.  Logo, indagando sobre esse direito (entre outros) que tal  mandatário se atribui para decidir, demiurgicamente, quais dos cidadãos do país nele podem viver e quais aqueles que, embora aí tenham nascido e crescido sem outro crime que o de pensar e o de querer estruturas diferentes para a sociedade, devem  ser banidos em nome de razões sempre inexplicáveis.
            Evidentemente, pensar essas questões levaria a refletir, também, no significado da expressão “desobediência civil” que é como se chamaria a entrada no país daquele que  tem esse direito negado. E Miguel Littin não o possui. Não tem o direito de rever os lugares de sua infância, as ruas onde passeou;  não tem o direito, simplesmente, de viver perto de suas raízes. Porém, contrariando as ordens, ele retorna para olhar e, mais do que qualquer coisa, para registrar esse olhar, desejando que mil olhos possam também  ver o Palácio de la Moneda reconstruído, as pontes sobre o rio Mapocho, os rostos tensos dos guardas e daqueles que ficaram exilados na sua própria terra. Para que possam ver a casa de Pablo Neruda em Isla Negra.
            Imagens comprometidas com o seu ideal de antes, agora reafirmado, que estão sendo mostradas ao público sob o título  “Actas de Chile” (mais do que uma lembrança de Actas de Marussia). Nelas, a aventura de Miguel Littin, contada por Gabriel García Márquez, alcança outra dimensão ao conter a paisagem de um drama que ainda não terminou, ao conter as figuras – ou farsantes ou heróis – que desse drama fazem parte.        
            Para o leitor das aventuras de Miguel Littin como para o espectador do filme  que  ele  realizou, entre muitas outras, permanecerão perguntas que, talvez, somente alguns poucos responderão: o que significa, exatamente, “desobediência civil”?  E, no Continente, quem, exatamente, a está cometendo?

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