Se existissem
parâmetros para medir a façanha de colocar um ditador no mais profundo
ridículo, a vitória caberia, certamente a Miguel Littin, o cineasta
chileno que realizou, em 1985, a proeza
de entrar no seu país, nele permanecer e dele sair sem que as forças da repressão
dessem por isso. No entanto, o que realmente passa a ser importante nessas seis
semanas de risco, vividas pelo Diretor de cinema, é um significado que
ultrapassa a extraordinária aventura que foi filmar o que ele bem quis sob os
olhos de um regime que se quer eficientemente opressor.
A
emoção originada da leitura do livro La
aventura de Miguel Littin clandestino en Chile (Ediciones El País, Madrid, 1986), independente
da genialidade de quem a escreve, o colombiano Gabriel García Márquez, é a de um romance policial ainda que, no
caso, se saiba, de antemão, o seu final. Seria o que se chama uma leitura
lúdica, apenas prazerosa não fossem as reflexões que, obrigatoriamente, se lhe
seguem. Antes de mais nada, imaginando como
se instituiu Primeiro Mandatário do país aquele que, no livro, acaba recebendo
trinta e dois mil e duzentos metros de “rabo de burro” que são os trinta e dois
mil metros de filme que Miguel Littin rodou no desejo de documentar a ditadura.
Logo, indagando sobre esse direito
(entre outros) que tal mandatário se
atribui para decidir, demiurgicamente, quais dos cidadãos do país nele podem
viver e quais aqueles que, embora aí tenham nascido e crescido sem outro crime
que o de pensar e o de querer estruturas diferentes para a sociedade, devem ser banidos em nome de razões sempre inexplicáveis.
Evidentemente,
pensar essas questões levaria a refletir, também, no significado da expressão
“desobediência civil” que é como se chamaria a entrada no país daquele que tem esse direito negado. E Miguel Littin não
o possui. Não tem o direito de rever os lugares de sua infância, as ruas onde
passeou; não tem o direito,
simplesmente, de viver perto de suas raízes. Porém, contrariando as ordens, ele
retorna para olhar e, mais do que qualquer coisa, para registrar esse olhar,
desejando que mil olhos possam também ver o Palácio de la Moneda reconstruído, as
pontes sobre o rio Mapocho, os rostos tensos dos guardas e daqueles que ficaram
exilados na sua própria terra. Para que possam ver a casa de Pablo Neruda em Isla
Negra.
Imagens
comprometidas com o seu ideal de antes, agora reafirmado, que estão sendo
mostradas ao público sob o título “Actas
de Chile” (mais do que uma lembrança de Actas
de Marussia). Nelas, a aventura
de Miguel Littin, contada por Gabriel García Márquez, alcança outra dimensão ao
conter a paisagem de um drama que ainda não terminou, ao conter as figuras – ou
farsantes ou heróis – que desse drama fazem parte.
Para
o leitor das aventuras de Miguel Littin como para o espectador do filme que
ele realizou, entre muitas outras,
permanecerão perguntas que, talvez, somente alguns poucos responderão: o que
significa, exatamente, “desobediência civil”?
E, no Continente, quem, exatamente, a está cometendo?
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