domingo, 18 de março de 2007

Engenhoso enlaçar de sentidos

E nessa noite comecei a escurecer papel com minha letra miúda. O começo de uns apanhados, um arrazoado em que mostraria seu tio Frederico como ele era, no seu entender e não como o apresentava o articulista do jornal O Estado. Tarefa que Eduardo de Sá Menezes empreende com os conhecimentos que recebera do Padre Hugo e que não pretendia enfeitar, como lhe aconselhara, em certo momento da escrita, o redator chefe de O Monitor, entusiasmado com essa pretensão de dar uma resposta, por tudo em letra de imprensa. Fizera-o ler um livro que falava em tarde de ouro e pedrarias sugerindo que insistisse nas tintas, porém o personagem de José Cândido de Carvalho é senhor de seu relato. Se ele entende como um defeito desobedecer à cronologia dos fatos – de um relato que ficou a outro que começa, vai distância de muitos anos – e se reconhece ser incapaz de trabalhar de pincel em certos quadros, porque acha que não tem jeito, que borra, encharca as coisas, a riqueza de sua narrativa desabrocha no singular enlace que faz o verbo com o seu complemento. Para evidenciar a sovinice do tio Frederico conta que à noite quando as estrelas queimavam no alto, mandava que apagassem os lampiões por motivo de não desperdiçar luz. Para se referir à maleita, grassando nos engenhos, diz que as águas chocas despejavam maldades em cima do povo. E se lembra de seus tempos piedosos de rezas e oratórios quando via cachos de anjos chovendo nos seus sonhos.


            Inventivos, os verbos e seus complementos que designam atitudes ou expressam sentimentos: referindo-se ao almoço com um amigo, o sucesso gastronômico é referido por um verbo inopinado: almoçamos juntos, espatifando pato com ameixa. E, assim, menciona o luto pela morte de seu tio, guardado pela viúva: Cozinhava o luto ao lado do pai, no amparo de suas barbas. Sobre ele próprio, constata que em visita à família do velho Souza Cravo, jorrava gentileza a seus pés e que, ao transformar o engenho em usina, chovia admiração sobre sua cabeça. Uma novidade que suscitou indignação do major, pai da viúva, também dona da propriedade, que, falando grosso com ele, abriu as torneiras da raiva. Mas, foram seus gritos de alegria que escorriam pela casa das máquinas e ganhavam as plantações quando viu a usina funcionando, o caldo a deslizar pelas moendas, o ruído da cana nas esteiras.

            Curioso, o emprego do verbo lambuzar: o tio Frederico, negando os mexericos de família que denegriam seu irmão, o lambuzava de bondades; o padre Hugo, quando seu tio Frederico casou, já não encontrando no engenho o mesmo ambiente de antes, passava de longe com medo de se lambuzar de pecado. Numa noite em que saia com amigos, Eduardo de Sá Menezes percebeu que uma lua de encomenda lambuzava os telhados.

            E, incomparável o uso dos verbos que antropomorfizam seres inanimados (A carruagem capengava por dentro da noite, A carruagem gemia no areal, Na frente de minha saudade, corriam meus bilhetes); ou elementos da natureza (a tarde corria esbaforida com medo daquela paisagem de mandacarus, O luar lambia tudo, O luar graúdo levantava âncoras no céu).

            A par desse inusitado e sapiente uso do verbo em relação às palavras que o completam, a sua expressividade se amplia no tempo que determina a ação: um ou outro passado perfeito – ação finita ou assim considerada – entre muitos verbos no imperfeito. Eles não apenas situam a ação no passado, mas lhe dão vida, animando a narrativa como se tal ação voltasse a acontecer no momento em que está sendo evocada.

            Recurso, nesse uso inovador do sentido do verbo que se mantém próximo à espontaneidade do vocabulário regional e dos engenhosos símiles que, abundantes, pontilham o texto de Olha para o céu, Frederico!, que, de per si, atesta esse domínio da expressão e da criatividade tão próprios dos grandes ficcionistas.

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