domingo, 11 de março de 2007

Marca do talento:o pleonasmo


            Publicado em 1939, no mesmo ano em que aparecia, entre outros, Um lugar ao sol, de Erico Verissimo, Riacho doce, de José Lins do Rego, Floradas na Serra, de Diná Silveira de Queirós, Olha para o céu, Frederico! (romance acontecido em Campos dos Goitacases nos dias do gramofone), o primeiro romance de José Cândido de Carvalho. A par de sua perfeita estrutura romanesca, uma estréia em que a rica experiência de linguagem que, no dizer de Assis Brasil (A Literatura no Brasil, 1971) não o aproxima de escolas ou preconceitos literários, e, certamente, anuncia a rutilante inventiva de que é feito O Coronel e o lobisomem que veio à luz vinte e cinco anos mais tarde.

             Em Olha para o céu Frederico!, a narrativa de Eduardo de Sá Menezes é marcada por vocábulos regionais, pela  renovadora combinação entre o verbo e seus complementos, pelo reiterado uso do símil e pelo uso do pleonasmo na expressão do personagem.

            Na verdade, repetições não são muito freqüentes em Olha para o céu, Frederico! Uma dezena de casos a reafirmar uma zanga ou uma argumentação de Frederico, Dona Lúcia, Eduardo de Sá Menezes, Carlos. Frederico é o dono todo poderoso do engenho São Martinho; Dona Lúcia, sua mulher; Eduardo, o sobrinho órfão com pretensão a herança do tio; Quincas de Barros, o parente distante, e por achego; Carlos, primo de Frederico, dono de engenho falido. Nas poucas vezes em que se expressam pelo diálogo direto, suas emoções se reiteram pelo pleonasmo.

 Dona Lúcia, ofendida com Quincas de Barros que recuava os mourões, adentrando-se nas suas terras e praticando outras afrontas, sentencia:-Isso é um desaforo de ninguém aturar. Ninguém. Eduardo de Sá Menezes, por herança, tornado o dono do Engenho São Martinho vê chegar o guarda-livros, a mando do pai da viúva do tio, a quem a propriedade também pertencia para dela fuçar as cifras e os cifrões, diz que em São Martinho só uma boca tinha mando e, aos berros, completa: -A minha, ouviu. A minha! Quando argumenta das vantagens de montar uma usina, pois tempo de fabriqueta amarrada com cordão, era coisa passada. Não valia nada. Valia menos que um caracol, gosta do caracol dito na frase, pelo que repete, enérgico: -Menos que um caracol de jardim. Ao que, o Major Ataliba, pai de sua tia, a quem desejava convencer, indignado, se mostra contra um possível prejuízo para sua filha e repete, ao longo do episódio, três vezes: -Era só o que faltava!.Como, também, por três vezes, o manda lamber sabão.

            Igualmente, os demais pleonasmos se originam de emoções e, nem sempre, elas são sinceras. Quando Carlos pede dinheiro emprestado, a explicar que o devolveria em quinze dias, afirmando taxativo: -No mais tardar, no mais tardar, não é levado a sério por Frederico. Ele está ciente de que tal dinheiro não seria devolvido nunca o que lhe daria o lucro da hipoteca, mas, cordial, recrimina o parente por não ter pedido o dinheiro antes e franco de bolso aberto: -Parente é para isso, primo Carlos. Parente é para isso. Expressão que ,um pouco diferente, vai repetir mais adiante: Parente era para essas ocasiões.

            Em duas vezes, a repetição tem por objetivo defender Quincas de Barros, cujas atitudes de rapina em relação às terras de Frederico não eram desconhecidas de ninguém, salvo do próprio prejudicado que, assim, explicava o fato ao ouvir-lhe as desculpas e o pedido das sobras de sua safra: “O parente sabe que não tenho ouvidos para candongas. O doutor é de hoje. Conheci seu pai fazendo açúcar em gangorra de burro. Estou nesses ermos desde 1849. Conheço este povinho como a palma de minha mão. Linguarudo, primo Quincas. Linguarudo. Defesa que, também, parte de Carlos, tentando convencer a prima Lúcia das qualidades de Quincas de Barros: Quincas tem gênio. Muito gênio. Fora disso é uma luva. Uma luva, prima Lúcia.

Em todos esses casos em que o pleonasmo apareceu na expressão dos personagens, ele não funcionou como figura de retórica – o que lhe é peculiar – mas como um elemento que se mostra imprescindível para o esboço dessas figuras que, entre outras, povoam o romance. Figuras que se completam, com os demais recursos de linguagem que José Cândido de Carvalho sabe, entre singeleza e astúcia, tão bem manejar e que, em meio às situações as mais prosaicas, se mostram, no entanto, verdadeiramente ímpares.

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