domingo, 5 de maio de 1991

Lição de crítica (1)

            Sob o sugestivo título de La orgia perpetua, foi publicado em abril de 1975, pela Seix Barral de Barcelona, um longo ensaio sobre Flaubert e Madame Bovary. Seu autor, um dos mais representativos escritores do Continente: Mario Vargas Lhosa.

            Doze anos se haviam passado desde que o romance La ciudad y los perros lhe conferira notoriedade internacional, abrindo caminho para os que se lhe seguiram: La casa verde, Los cachorros, Conversación en la Catedral,  Pantaleón y las visitadoras.

            É, então, com seu conhecimento d e escritor ficcional e de ensaísta que já demonstrara o seu talento no estudo García Márquez: historia de um deicidio  que ele se aproxima de Gustave Flaubert. Uma aproximação que a bibliografia existente – imensa e, muitas vezes, respeitável - não desencorajou.

            La orgia perpetua, título da frase de Gustave Flaubert que aparece, em epígrafe, no livro – A única maneira de suportar a existência é atordoar-se na Literatura como numa orgia perpétua – é um ensaio no qual se aliam as qualidades de romancista e as qualidades críticas, acrescidas de uma rigorosa metodologia e de uma ampla visão do fazer literário.

            No entender de Vargas Lhosa, os críticos de todos os tempos utilizaram três perspectivas para o estudo de uma obra: a subjetiva, a objetiva de pretensões científicas e aquela que se insere na História Literária. Sua proposta é realizar esses três intentos separadamente. Seu ensaio se compõe, portanto, de três partes.

            Na primeira, o seu relacionamento com Madame Bovary. Como ele próprio diz, na “Introdução”, é um texto que fala mais dele do que da obra de Flaubert. Uma bela narrativa de seu encontro com a obra e com o seu personagem.  Recorda a primeira vez e, então, tinha dezesseis anos, que tomou conhecimento da existência do romance: no cinema da praça principal de Piura, cidade peruana situada nos limites da Floresta amazônica,  assiste, estrelado por James Mason, Lous Jourdan e Jenifer Jones, o filme feito pelos norte-americanos. Confessa que não ficou muito impressionado pois não procurou pelo livro numa época em que se tornara um verdadeiro devorador de romances. Sobre Flaubert, vai ouvir falar mais tarde. Na Universidade de San  Marcos, quando as palavras do crítico francês André Goyné sobre o realismo de Flaubert são abafadas pelos gritos ‘Viva a Argélia livre”com que os estudantes se  manifestavam contra as colônias francesas na África.

            Somente em 1959, ao chegar a Paris, é que Mario Vargas Lhosa irá ler Madame Bovary. Leitura que tomará conta dele como um feitiço poderosíssimo e que lhe dará duas certezas: uma, que delineia perfeitamente o escritor que ele teria apreciado ser; outra, que ficaria apaixonado por Madame Bovary até o fim de seus dias.

            Certamente, é essa paixão que norteará a análise que empreende na segunda parte de seu ensaio. Tentando ser objetivo, se dedica à estudar a origem e a feitura de Madame Bovary. Serve-se, muitas vezes, da Correspondência de Gustave Flaubert, de artigos e de obras escritas em diferentes épocas para responder às vinte perguntas que se propôs.            De que modo se consumou a transformação literária de Flaubert que iria culminar em Madame Bovary?  Qual era o seu método de trabalho? Quanto tempo levou para escrever o romance, quatro anos, sete meses e onze dias de trabalho ininterrupto? Quais os autores que o influenciaram? De que maneira sua vida pessoal e familiar se projetou no romance? entre outras, levam à respostas que se constituem um material resumido e ordenado para preparar o capítulo seguinte. Capítulo que irá se deter nas transfigurações que se processam a partir do fato real e nas quais se aninha a originalidade. Originalidade, esta, que dará autonomia à realidade fictícia diferenciando-se do real.

            Para Vargas Lhosa, o instrumento pelo qual se opera a transfiguração é o estilo. Ao estudar o estilo de Flaubert, chama a atenção sobre os objetos que se humanizam, sobre os homens que se apresentam como objetos, sobre a íntima vinculação entre o amor e a posse dos objetos, sobre a ambivalência de Emma Bovary e sobre os diferentes tempos da narrativa: o singular, o circular, o imóvel e o imaginário.

            Na terceira parte, ao mesmo tempo em que observa as técnicas narrativas precursoras que estão contidas nessa obra do século XIX, Vargas Lhosa se estende sobre os caminhos que ela abriu para tantos romances que se lhe seguiram.

            Mas, é, principalmente, ao enunciar conceitos sobre o romance contemporâneo que o ensaio do autor peruano se mostra extremamente atual. Ao falar de textos impassíveis, neutros ou da responsabilidade pedagógica do romancista, ao mencionar a existência de uma criação conformista e experimental  que, no entanto, continua a repetir obras do passado, ele incita à discussão. Sobretudo, se tais palavras ressoam no Continente, espaço que abriga, hoje, o que de melhor é produzido no mundo ficcional.

            Provocativas, polêmicas há, sem dúvida, lugar para elas nesse território quase todo colonizado culturalmente e submisso ao mundo dos outros.

            Ao buscar uma aproximação crítica mais ampla e que recusa o parcial, Vargas Lhosa não apenas aponta um caminho como dá uma lição de crítica àqueles que, no Continente, só tem olhos para perceber e aceitar o que se produz no outro hemisfério. Aquele que pretende enunciar todas as leis. 

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