Sob
o sugestivo título de La orgia perpetua, foi publicado em abril de 1975,
pela Seix Barral de Barcelona, um longo ensaio sobre Flaubert e Madame
Bovary. Seu autor, um dos mais representativos escritores do Continente:
Mario Vargas Lhosa.
Doze
anos se haviam passado desde que o romance La ciudad y los perros lhe
conferira notoriedade internacional, abrindo caminho para os que se lhe seguiram:
La casa verde, Los cachorros, Conversación en la
Catedral, Pantaleón y las visitadoras.
É,
então, com seu conhecimento d e escritor ficcional e de ensaísta que já
demonstrara o seu talento no estudo García Márquez: historia de um
deicidio que ele se aproxima de
Gustave Flaubert. Uma aproximação que a bibliografia existente – imensa e,
muitas vezes, respeitável - não desencorajou.
La
orgia perpetua, título da frase de Gustave Flaubert que aparece, em
epígrafe, no livro – A única maneira de suportar a existência é atordoar-se
na Literatura como numa orgia perpétua – é um ensaio no qual se
aliam as qualidades de romancista e as qualidades críticas, acrescidas de uma
rigorosa metodologia e de uma ampla visão do fazer literário.
No
entender de Vargas Lhosa, os críticos de todos os tempos utilizaram três
perspectivas para o estudo de uma obra: a subjetiva, a objetiva de pretensões
científicas e aquela que se insere na História Literária. Sua proposta é
realizar esses três intentos separadamente. Seu ensaio se compõe, portanto, de
três partes.
Na
primeira, o seu relacionamento com Madame Bovary. Como ele próprio diz,
na “Introdução”, é um texto que fala mais dele do que da obra de Flaubert. Uma
bela narrativa de seu encontro com a obra e com o seu personagem. Recorda a primeira vez e, então, tinha
dezesseis anos, que tomou conhecimento da existência do romance: no cinema da
praça principal de Piura, cidade peruana situada nos limites da Floresta
amazônica, assiste, estrelado por James
Mason, Lous Jourdan e Jenifer Jones, o filme feito pelos norte-americanos.
Confessa que não ficou muito impressionado pois não procurou pelo livro numa
época em que se tornara um verdadeiro devorador de romances. Sobre Flaubert,
vai ouvir falar mais tarde. Na Universidade de San Marcos, quando as palavras do crítico francês
André Goyné sobre o realismo de Flaubert são abafadas pelos gritos ‘Viva a
Argélia livre”com que os estudantes se
manifestavam contra as colônias francesas na África.
Somente
em 1959, ao chegar a Paris, é que Mario Vargas Lhosa irá ler Madame Bovary.
Leitura que tomará conta dele como um
feitiço poderosíssimo e que lhe dará duas certezas: uma, que delineia
perfeitamente o escritor que ele teria apreciado ser; outra, que ficaria
apaixonado por Madame Bovary até o fim de seus dias.
Certamente,
é essa paixão que norteará a análise que empreende na segunda parte de seu
ensaio. Tentando ser objetivo, se dedica à estudar a origem e a feitura de Madame
Bovary. Serve-se, muitas vezes, da Correspondência de Gustave Flaubert, de
artigos e de obras escritas em diferentes épocas para responder às vinte
perguntas que se propôs. De que
modo se consumou a transformação
literária de Flaubert que iria culminar em Madame Bovary? Qual era
o seu método de trabalho? Quanto tempo
levou para escrever o romance, quatro
anos, sete meses e onze dias de trabalho ininterrupto? Quais os autores que o
influenciaram? De que maneira sua
vida pessoal e familiar se projetou no romance? entre outras, levam à
respostas que se constituem um material resumido e ordenado para preparar o
capítulo seguinte. Capítulo que irá se deter nas transfigurações que se
processam a partir do fato real e nas quais se aninha a originalidade.
Originalidade, esta, que dará autonomia à realidade fictícia diferenciando-se
do real.
Para
Vargas Lhosa, o instrumento pelo qual se opera a transfiguração é o estilo. Ao
estudar o estilo de Flaubert, chama a atenção sobre os objetos que se
humanizam, sobre os homens que se apresentam como objetos, sobre a íntima
vinculação entre o amor e a posse dos objetos, sobre a ambivalência de Emma
Bovary e sobre os diferentes tempos da narrativa: o singular, o circular, o
imóvel e o imaginário.
Na
terceira parte, ao mesmo tempo em que observa as técnicas narrativas
precursoras que estão contidas nessa obra do século XIX, Vargas Lhosa se
estende sobre os caminhos que ela abriu para tantos romances que se lhe
seguiram.
Mas,
é, principalmente, ao enunciar conceitos sobre o romance contemporâneo que o
ensaio do autor peruano se mostra extremamente atual. Ao falar de textos
impassíveis, neutros ou da responsabilidade pedagógica do romancista, ao
mencionar a existência de uma criação conformista e experimental que, no entanto, continua a repetir obras do
passado, ele incita à discussão. Sobretudo, se tais palavras ressoam no
Continente, espaço que abriga, hoje, o que de melhor é produzido no mundo
ficcional.
Provocativas,
polêmicas há, sem dúvida, lugar para elas nesse território quase todo
colonizado culturalmente e submisso ao mundo dos outros.
Ao
buscar uma aproximação crítica mais ampla e que recusa o parcial, Vargas Lhosa
não apenas aponta um caminho como dá uma lição de crítica àqueles que, no
Continente, só tem olhos para perceber e aceitar o que se produz no outro
hemisfério. Aquele que pretende enunciar todas as leis.

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