domingo, 19 de maio de 1991

Lição de crítica (2)


            Não isenta de perigos, para um crítico, é a aventura de se aproximar de uma obra já consagrada pelos que o antecederam cujas palavras, muitas vezes, se cristalizam e passam a ter o estatuto das verdades intocáveis.

            A confessada e perene paixão de Mario Vargas Lhosa por Madame Bovary  o conduziu, no entanto,  seguro, nesse ensaio sobre o romance de Flaubert, certamente, um dos melhores que he foram dedicados.

            Mario Vargas Lhosa em La orgia perpetua (Seix Barral, Barcelona, 1975), não ignorou a bibliografia existente e se serviu dela para avançar nos enunciados críticos que se originam, principalmente, de sua longa e renovada relação com a obra, de uma perspicácia incomum e de um conhecimento da criação literária que são próprios de quem é mestre naquilo que faz

            Suas fontes – Maurice Nadeau, Enie Starkie, Albert Thibaudet, Jean Paul Sartre, Renée Dumensil, Saint Beuve, Ernest Robert Curtius, Charles Baudelaire – quer as aceite ou discuta, significam a etapa de um caminho que o seu ensaio, com brilhantismo, alongou. E’um trabalho que se inscreve num dos princípios básicos da pesquisa científica: o de respeitar o caminho existente e avançar, construindo espaço,  para que outros pesquisadores possam seguir além.

            A seriedade metodológica e a composição clara que o aproximam dos melhores trabalhos acadêmicos não se perdem na espontaneidade e beleza de seu texto, digno, neste ensaio do grande romancista que é.

            Após ter, na primeira parte, se estendido sobre o seu relacionamento com Madame Bavary,  na segunda, irá se deter em questões ligadas à gênese da obra e à detalhes de sua composição e, na terceira,  a situará como o primeiro romance moderno. Afirmativa que justifica enumerando inovações – narrativa centrada no anti-herói, mudança do narrador – inovações estas, presentes nos romances que se lhe seguiram. Assim,  ele não pode se impedir de comparar a qualidade da obra que analisa com a Literatura produzida nos dias de hoje: ou submissa ao êxito, ao dinheiro ou às migalhas do poder que o Estado dispensa aos intelectuais dóceis. Uma Literatura dos “ best sellers            do mundo capitalista ou a Literatura patrioteira e oficial do mundo socialista. Triturada, então, pela demanda da oferta e da procura da sociedade industrial ou pelas honrarias e chantagens do Estado-patrão, a Literatura, privada  da sua principal virtude, o questionamento crítico, se torna uma inofensiva diversão.

            Embora maniqueístas e, de certa maneira, afastadas do mapa do Continente, essas observações de Mario Vargas Lhosa não deixam de ser válidas. Embora nem sempre seja possível, em se tratando da América Latina, falar em sociedade industrializada, na grande maioria das vezes, é à sombra do Poder que se refugiam os escritores. Em troca de benesses, oferecem sua liberdade de expressão, seu direito de ver e de criticar.

            Assim, ainda que as palavras de Mario Vargas Lhosa possam ser, então reveladoras dos conhecidos desentendimentos que passaram a existir entre ele e alguns escritores latino-americanos, as questões que levanta são necessárias num Continente onde o preço dos homens e de suas almas, é, freqüentemente, tão pequeno.

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