domingo, 25 de novembro de 2007

O Coronel se compara...

 
            Em 1964, José Cândido de Carvalho publicava O Coronel e o lobishomem. O narrador, Ponciano de Azeredo Furtado, um dos mais ricos e expressivos personagens da Literatura Brasileira, ao longo do relato que faz de sua vida de proprietário de imensas terras, menciona algo de sua aparência física e, muitas vezes, se refere às características de seu temperamento e de sua maneira de atuar. Então, na sua singular forma de expressão, usa dos símiles. Ou, servindo-se de formas já consagradas pelo uso da língua ou daquelas que inventa. Em ambos os casos, reafirmando a admirável escrita do autor do romance, o segundo que escreveu, passados quase trinta anos do aparecimento de Olha para o céu, Frederico!

            Para dizer da sua concordância com o interlocutor, Ponciano de Azeredo Furtado, diz que balança a cabeça como boi de presépio, escuta o postulante na maior atenção como manda o figurino e curva o congote como compete a um sujeito educado. No intuito de demonstrar a sua fina educação diante de Isabel Pimenta, ao lhe ser apresentado, lembra: Curvei, como bodoque de bugre, os dois metros do coronel, pois quando quero nenhum galante da cidade pode comigo em mesura  e vassalagem. Esperto para negociar, firma seu nome na praça como sujeito atilado e, precisando, se faz de desentendido, no que sabe manobrar como gente das ribaltas. Quando deve enfrentar o fantasma do avô, bem sentado na sua cadeira como se estivesse vivo, confessa ter sentido uma pontada no espinhaço como em noite que fui picado de jararaca estando em vadiagem de menino. Falta de coragem que, também, demonstra ao sair em comitiva, com seus homens, para enfrentar a onça. Na aparição da fera, é uma fuga só, mas, ele, cujo medo não fora presenciado por terceiros, fica muito brabo com  seus homens, suspende o almoço que seria para festejar o sucesso da empreitada e, caminhando na sala de lá para cá, remói o acontecido nos detalhes mais mínimos, em imitação de boi. Em várias circunstâncias, não demonstra pejo em falar de seu sentir: estar feliz como um passarinho ou cheio de brabeza como um possesso ou de suas intenções (vou rebentar esse confiado como quem rebenta um ovo choco) ou da conseqüência de seus atos (Foi como eu mexer em gaveta de lacraia).     

            Porém, assim como para se retratar, usa, de vez em quando, as comparações, igualmente as emprega para exibir as fraquezas de seus próximos. O gosto pela bebida de Janjão Caramujo, o faz beber feito gambá de galinheiro; a falta de coragem de seu capataz Juquinha Cantanilha que, ao ouvir suas histórias de assombração o deixa amarelo e mais parecendo  um rato assustado; no desentendimento entre Totonho e Fontainha em que um teve medo do outro, Totonho foi achado no sótão de seu hotel mais amedrontado do que um gato na água.

            Tais comparações, constituídas de elementos muito próximos do rude universo em que vive e reina o Coronel, ademais de auxiliarem na composição de seu perfil e de alguns daqueles que lhe são próximos e serem indicadores da riqueza de sua linguagem, reafirmam a verossimilhança, ainda que mágica, de um relato em que cenário, personagens, ações e fantasioso se entrelaçam à perfeição.

domingo, 18 de novembro de 2007

Inusitada escala musical

            O espaço no romance O Louco do Cati (Porto Alegre, 1944 e recente edição da Planeta), de Dyonélio Machado, oferece múltiplas possibilidades de aproximações; seja, entre elas, o lugar em que transcorre a ação, extremamente diverso, devido ao longo itinerário  pelo qual é conduzido o personagem, seja pelos, também, diferentes ambientes que é levado a freqüentar. Tanto os lugares indicados pelos topônimos – e são muitos, na viagem empreendida – quanto aqueles, encerrados entre quatro paredes são apenas esboçados pelo narrador. No entanto, como o faz em relação ao tempo do relato ou a seus personagens, uma vez que é deveras parco em propiciar detalhes, serve-se do parênteses com o fito de oferecer uma informação adicional. Considerando os espaços amplos e exteriores (a cidade e a rua) e aqueles fechados (a casa), essas informações mencionam algo referente à ação – isso fora em Porto Alegre, onde se encontrava, de passagem [...], O funcionário informou: -Não se consegue senão uma passagem até a estação do Norte (São Paulo, Num café da praça Tiradentes (para os lados do Recreio), Norberto e o companheiro encontravam sempre um rapaz de Alagoas [...]. Ou explicam a localização, por exemplo da bomba de gasolina (quase defronte da porta principal do hotel), do Mercado de Lages (que ficava numa das faces, no correr mesmo da rua principal da pequena cidade), do hotel de Livramento (situado, não na rua principal mas, mesmo assim, bem no centro)”. Algumas vezes, entre parênteses, adendos referentes à casa: Ao chegarem numa casa de esquina (o vento aí estava forte mesmo: é que o mar se achava perto), O café [...] contava com muitas portas, abertas para duas ruas (era de esquina). Outras vezes, detalhes sobre alguma dependência: a luz avermelhada da varandinha, a peça da casa que era ampliação de um corredor (o desvão para um desafogo, um téte a téte, uma fuga em dias de aglomêro).
 

            E, também, referências a um ou outro móvel. Em relação estreita com ações dos personagens, algumas parecem, ter o objetivo de um indispensável registro: o da experiência na cadeia. Na seqüência em que Norberto, embarcado preso com o Louco do Cati, para o Rio de Janeiro, reflete no seu beliche, segue-se a explicação: “(os beliches eram dispostos em sentido transversal). Em outra, o Louco do Cati, exausto da viagem e do susto ao ser jogado na cela, senta-se sobre uma tarimba.(O cubículo possuía duas camas, estreitas como tarimbas de quartel). Principalmente, a presença do cadeado na porta da prisão de Florianópolis para onde foram levados Norberto e seu companheiro. Ao ser aberto pelo sargento que os acompanhava, fez o barulho cristalino de ferros, em cascata (da corrente que se desprendia) e deixou ouvir, ao ser fechada, com os dois lá dentro, a porta gradeada (outra vez a mesma escala musical e cristalina da corrente deslizando nos ferros).

            Encerrada entre parênteses, uma simplicidade que não mais se mostra inocente.

domingo, 11 de novembro de 2007

Cantares do mar e terra


            Manoel de Andrade é interiorano, nascido em Rio Negrinho. Poeta, perseguido pela ditadura, fugiu do Brasil em 1969 e percorreu quinze paises da América. Sua lírica de combate foi, então, conhecida no Continente em que os sonhos eram perseguidos e, por eles, muitas pessoas ultrajadas. Agora, neste 2007 que está a findar, publica, pela Escritura de São Paulo, seu último livro Cantares: vinte e nove poemas. Dividido em duas partes, Marítimos e Sobreviventes, em ambas é constante a presença do mar e a expressão de seus ideais que, imunes à passagem do tempo, continuam a ser o que sempre foram.

            No primeiro poema do livro “Marítimo”, de 1965, como o indica o título, é do mar que se trata. Nele, o poeta se dirige, na segunda pessoa, a um interlocutor – na verdade, ele próprio – para dar conta de seu estado de espírito diante dos impasses a vida (Teu barco / atrelado à fantasia soçobra nas brechas das calçada), dos sonhos irrealizados de viagens  irrealizadas (Já não ousas sonhar com a fascinante travessia dos fiordes), do sentido de seu canto (e tu cantarás um sol atrás dessa penumbra). Um mar que lhe habita a alma, mas que é o mar de sempre e de todos, de tantos que o cruzaram para o Bem e para o Mal. Esse amado mar continuará a ser presença nos poemas que seguem, lhe ensinando a mágica leitura do infinito, a sonoridade e o silêncio, lhe oferecendo visões de beleza , transparente beleza de flores e de frutos, lhe dando a paz que só ele concede, marcando a passagem do tempo na beleza do amanhecer, nas horas tristes da tarde que se esvai. E, ofertando parâmetro de beleza: todas as tuas medidas eu quisera ter na suprema síntese dos meus versos.

            Na segunda parte, do longo poema “Sobreviventes”, (de 2003), as duas primeiras estrofes se constituem o registro do que acontecia no país, ao ser instaurado o regime de exceção: não haver o nascimento do sol, ser proibido o amanhecer, e nos vinte anos seguintes, as canções caladas, o norte eliminado, as bússolas quebradas, o destino da pátria ancorado nos quartéis. O pronome possessivo nosso a indicar um destino comum – nossas vidas, nossas canções, nosso norte, nossos punhos, nossos sonhos, nossos gritos de protesto amordaçada, nossos lares, nossas almas – que no décimo nono verso da segunda estrofe é substituído pelo destino daquele (esse tu a quem o poeta se dirige) que tentou lutar e foi neutralizado pela repressão, observado, delatado, seguido, algemado, torturado, morto. A terceira estrofe, um intermezzo, dizendo o que acontecia nos anos dourados, e a volta do pronome possessivo, nossos anos de infortúnio, presente na estrofe seguinte onde o interlocutor, agora, é a Resistência, cuja história é a história da própria humanidade. O poeta lembra, homenageando, os resistentes brasileiros e latino-americanos, em versos comovidos que não esquecem dos sobreviventes de tantas lutas abortadas / de tantas trincheiras abertas pela fé de uma bandeira.

            Manoel de Andrade faz versos porque é poeta e o lirismo de seus poemas, se entrelaçando no coletivo, além de expressar emoções se agiganta para reafirmar o que é imprescindível não esquecer.

 

domingo, 4 de novembro de 2007

As riquezas do cofre


            São cinqüenta e duas crônicas, reunidas sob o título O cofre que a Editora Palloti de Santa Maria, lançou neste ano. Segundo livro de Afif Simões Neto – em 2005 publicou Em nome do pai – são páginas feitas de emoção. Emoção, cujo fio condutor é a consciência da passagem do tempo com seus inúmeros significados, por vezes dolorosos, por vezes, permitindo a insinuação de um sorriso e que se enraíza em São Sepé, cidade onde nasceu e para onde sempre volta quanto quer se recriar. No caminho, um olhar de desconsolo diante do que acontece a seu redor: a comida que sobra e é atirada para alguns imundos que tocam a campainha, os meninos vadios que procuram – e acham – na maconha e na cocaína, parceiras perfeitas para aprimorar o ócio nas praças escuras, o mendigo, recostado à parede do velho casarão da esquina, boca repuxada pela fome ardida. Também, um voltar-se para o passado e para o futuro. Em “Um sujeito a cavalo recolhendo meninos”, registra esse momento de sua infância em que a prisão política do pai, decretada pelos desmandos que aconteciam no país a partir de 1964, deixou sua família desamparada. Com cinco anos, não conseguia entender as ausências. O pai fora levado para São Gabriel, local escolhido pelos golpistas para aplicação do corretivo exemplar; a mãe, com a irmã mais velha, seguindo para a cidade vizinha no desejo de ficar (respeitadas as grades ) mais perto do marido. No seu entender, quando os pais sumiam só poderiam ser encontrados no cemitério. E, para o cemitério ele seguia, caminhando firme. Por duas vezes, um amigo e cliente de seu pai que num cavalo bem encilhado e reluzente de gordo costumava andar pela cidade, o encontrou pelas ruas e o levou de volta para o que sobrara da família. Hoje, diz Afif Simões Neto: Passados tantos anos, refaço o mesmo trajeto. Sozinho, como convém aos que ainda crêem na ajuda desinteressada. Levo uma flor solitária à tumba do meu protetor. Um homem a cavalo, com o bondoso costume de restituir crianças desorientadas à casa paterna.
 

            O futuro está cristalizado em “Maria Cecília”, título da crônica dedicada a sua afilhada. Ela tem quatro meses de vida, pequena boca em coração e o privilégio de receber conselhos de um padrinho que acredita não serem eles nem sábios nem demorados mas vindos de alguém que caminhou o suficiente para se arriscar no ofício de ensinar os outros aquilo que aprendeu, por conta da dor plangente, ou obra do acaso. Na verdade, se revelam valiosos pelo que dizem e pelo afeto que deles transborda:  algo de imprescindível como não esquecer o torrão que abrigou a infância, ter a certeza de encontrar, sempre, o aconchego da mãe na hora em que o mundo se mostrar o lobo mau que é, e lançar seus olhos de procela. E aceitar o ritual da família nos natais quando o levantar das taças quer  dizer prece pelos ausentes e o que para ela já está, então, estipulado: repartir abraços e seu olhar de pitanga.