domingo, 26 de agosto de 2007

As imprecisões do tempo


         Em Porto Alegre, desce do bonde e, por a caso, ao entrar num armazém de fim de linha, para a compra de cigarros, aceita o convite de quatro rapazes que lá estavam e segue junto com eles para a praia, no passeio que deveria durar um  dia e que para ele e para Norberto, acabou resultando num tempo bem maior em que acontecimentos foram surgindo e os levaram até o Rio de Janeiro de onde ele volta para o lugar de sua infância, às margens do Cati, no extremo sul do Rio Grande.
 

            É extremamente numeroso o uso dos parênteses no texto de Dyonélio Machado. Em O Louco do Cati eles são usados como um adendo coloquial que acrescenta uma informação seja em relação ao espaço romanesco, seja em relação aos personagens ou ao tempo do relato. Resulta, porém, curioso que nos casos de referência ao tempo, essa informação resulte sempre imprecisa: O maluco já dormia. ( Era noite). Ao caminhar pelo campo, já nas terras do Cati, só mais tarde (já de noite, uma noite chegada mais cedo), conseguiu sair do vale por onde se embrenhara; ainda,  A chuva não passava.(Eram pouco mais de cinco horas da manhã); quando caminhavam pelas areias do litoral gaúcho,  Aquela hora ( seriam as sete da manhã), acrescentaram à rapadura um naco de queijo[...]. No Rio de Janeiro,  Norberto e Lopo estavam no seu lugar habitual, no café da Praça Tiradentes ( era de manhã);  ao saírem  em busca de uma requisição para conseguir a passagem do maluco para o sul era cedo ainda ( era de manhã). Na menção ao horário do ônibus no qual embarcaram Norberto e o Maluco, com destino a Araranguá, a informação é vaga, à noite e, então, ente parênteses, um dado igualmente vago: (nove horas mais ou menos). Geraldo que hospedara o Maluco em Lages, havia ido para a capital com seu caminhão e já fazia dois dias. Pouco tempo mais ( talvez até no dia seguinte) ele estaria de volta.  No Rio de Janeiro, no centro da cidade, aquela hora muito movimentada certas pessoas que procuravam os bondes ( era quase meio dia). 


            Há vezes, em que e menção ao tempo se entrelaça àquelas que se referem às condições  meteorológicas. Salvo  uma vez em que é descrita a paisagem do Rio de Janeiro, divisada da casa do professor de medicina, é elogiosa: “Da terraça principalmente aquela hora (  anoitecer), era uma beleza [...];  nas  demais, as referências são à chuva, ao vento, ao frio.  Em meio ao diálogo do capitalista e da mulher que o acompanhava - protetores do maluco-  sobre a continuação da viagem, entre parênteses a informação  ( era depois do almoço, dum dia frio e ventoso, mas seco). Casos há, também, em que se acrescem à noção de tempo, elementos subjetivos: ventava furiosamente ( Noite muito feia).; quando rompeu o dia ( quase tão escuro como a noite e tão assombrado como ela [...]); ou, o tempo é definido pela própria palavra  tempo ( talvez naquele dia que iria nascer chuvoso e escuro, talvez na outra noite – num tempo misterioso qualquer) estaria entrando no Cati [...].;  e entre as lembranças do Maluco, o período em que estivera preso com Norberto, em Florianópolis, a síntese do que acontecera: ...Naquele tempo, eles estavam num quarto escuro, lá mesmo...Empenhavam-se numa luta...A tarefa era não comer!. Também, a lembrança daquele par de trilhos que cruzara: mas há muitos meses num dia de calor e dum vento morno que soprava do mar . Ainda,o  demonstrativo que  remete a um tempo indefinido: Aqueles dias ( chuvosos, dissimulados, misteriosos).

            Imprecisões no registro do tempo e algo de tristonho que, por vezes, o acompanha, revelam um narrador que se aproxima do claro-escuro nos meandros de uma narrativa cujo fina, no entanto, é feito da luminosidade de um céu azul e de um sol que brilha.

 

domingo, 19 de agosto de 2007

As nuanças do tempo


Em Porto Alegre, desce do bonde e, por a caso, ao entrar num armazém de fim de linha, para a compra de cigarros, aceita o convite de quatro rapazes que lá estavam e segue junto com eles para a praia, no passeio que deveria durar um  dia e que para ele e para Norberto, acabou resultando num tempo bem maior em que acontecimentos foram surgindo e os levaram até o Rio de Janeiro de onde ele volta para o lugar de sua infância, às margens do Cati, no extremo sul do Rio Grande. 


            Lembrando Oscar Tacca no seu imprescindível Las voces de la novela (Madrid, Gredos, 1973), a função do narrador é informar e nela não  está permitido falsidade, nem dúvida, nem interrogação. Apenas lhe é dado poder variar a quantidade de informação que oferece. Em O Louco do Cati, (  Porto Alegre, Globo, 1944 e recente edição da Planeta)  o narrador está fora dos acontecimentos e refere os fatos, na terceira pessoa, sem fazer alusão a si mesmo. No entanto, é constante sua presença, revelada nas explicações que aparecem, entre parênteses, em que acrescenta algo sobre os personagens, o cenário, um ou outro sucesso, ou tempo, introduzindo um elemento coloquial que o aproxima de um provável, eventual interlocutor. A palavra tempo aparece se referindo à condições  meteorológicas: o navio jogava muito ( o tempo ficara feio); O calor não podia-se manter por muito tempo (já se estava quase no outono). Quando vários personagens precisavam seguir viagem aquele tempo louco os atrapalhava:  (Parecia até, pelo jeito com que se reclamava a decifração meteorológica, que era um corretivo que se queria infligir ao tempo). Em outros momentos, aparece, entre parênteses,  a satisfação  de todos: ( O vento que fazia e que todos já suportavam com satisfação porque viria limpar o tempo). Muitas vezes, a referência ao tempo completa um cenário, remete a uma ação. Referindo-se  o narrador  à tonalidade verde-vinho da parede e dos móveis da casa de dona Josefina que ficava mais nítida com a luz do dia, acrescenta, entre parênteses (embora um dia sombrio). Numa  seqüência a hora é mencionada com exatidão, às quatro da tarde e o que se segue, entre parênteses esclarece sobre as condições meteorológicas ( quando o tempo se fizera melhor e até o vento cessara); noutra, igualmente, a hora é mencionada – inclusive duas vezes – e a imprecisão é introduzida na frase, entre parênteses ( Às sete horas da manhã (viajavam desde a véspera à noitinha), às sete horas tinham sido levados ao refeitório [...].

            Essa menção ao tempo,  condição meteorológica ou sucessão de horas e dias, não somente é uma constante em O Louco do Cati como, repetidamente, se constitui o aporte do narrador de um dado que ele julga  pertinente, ainda que o encerre entre parênteses e ao qual    um sentido esclarecedor, embora diluído na imprecisão. Um recurso de Dyonélio Machado que se faz presente muitas vezes –  com habilidade pontilha sua narrativa de lacunas e nuanças – e se ampara, engenhosamente, no seu direito de ofertar ou recusar informações.  

domingo, 12 de agosto de 2007

O registro da palavra


                                 Em Porto Alegre, por acaso, ao entrar num armazém de fim de linha para comprar cigarros, ele aceita o convite de quatro rapazes que lá estavam e segue junto para a praia no passeio que deveria durar um dia e que, para ele e para Norberto, acabou resultando num tempo bem maior e em acontecimentos que foram surgindo e os levaram até o Rio de Janeiro de onde ele volta para o lugar de sua infância, às margens do Cati, no extremo sul do Rio Grande.           

            É revelado pelo olhar dos outros, pela vontade  alheia que decide por ele. Rara vez eleva a voz para dizer uma breve frase que logo se esvai como se fosse dita para si mesmo ou porque mal é levada a sério pelo interlocutor. Ou que é surpreendida por aquele que narra.

            Já de volta para o Sul, Geraldo, o motorista que o havia conduzido de Florianópolis para Lages, pede a um conhecido seu, um sujeito grandalhão, que tratavam de coronel que o leve para o Rio Grande. E, assim, de carro, ele segue até Caxias  de onde continuariam a viagem de trem. Na estação, ao comprar a passagem para Santa Maria, surpreende o coronel que lhe pergunta: - O amigo não é então de Porto Alegre? A resposta, lacônica, é referida pelo narrador, Era e se constitui um parágrafo, seguido de outro, igualmente de uma só palavra: Pausa. Logo, a insistência do coronel: Pretendia porém ir até Santa Maria, arriscava o outro  - Tem negócio lá? Não houve resposta o que induziu o coronel a observá-lo o que não havia feito até então. Percebe seu traje ( o chapéu forçando as orelhas, a capa de borracha mostrando ser de segunda mão) e o seu gesto de querer por o dinheiro e a passagem no bolso interno da capa sem desabotoá-la. A partir daí, o narrador fala do tempo, da chuva que não dá trégua.


     

   
Em Santa Maria, o coronel o convence para um passeio até o centro da cidade, apesar da chuva e não parava de falar mas, o barulho da tempestade impedia  de ser ouvido pelo outro. Gritou para lhe perguntar em que mês estivera em São Paulo. Depois de se informar, o coronel refletiu, calculou e chegou à conclusão de que há um mês ( época em que o outro passara lá) ele ainda não se tinha movido da fronteira para aquela viagem de exploração à capital do grande Estado. – E o amigo gostou? Outra vez é o narrador que responde pelo seu personagem –Gostara.  Resposta que, também, se constitui um parágrafo e  é seguida  por outro, constituído, ainda outra vez, da palavra Pausa. No seguinte, a continuação do relato desse passeio noturno em baixo de chuva.

            Apropriando-se da voz de seu personagem, Dyonélio Machado instaura  um inusitado diálogo. Inusitado que também está presente, e sob diferentes estruturas, na maioria daqueles em que se comunicam os que fazem parte da grande galeria de tipos que povoa o universo de O Louco do Cati ( Porto Alegre, Globo, 1942 e recente edição da Editora Planeta). Como outros tantos outros, se trata de um recurso que reafirma o virtuosismo narrativo do escritor gaúcho.

domingo, 5 de agosto de 2007

A voz desvanecida


Desce do bonde e por acaso, ao entrar num armazém de fim de linha para a compra de cigarros, ele aceita o convite de quatro rapazes que lá estavam e segue junto para a praia no passeio que deveria durar um dia e que, para ele e para um deles,  Norberto, acabou  resultando num tempo bem maior  e em acontecimentos que foram surgindo e os levaram até o Rio de Janeiro de onde volta para o lugar de sua infância, às margens do Cati, no extremo sul do Rio Grande. 

            Ele é mencionado de vários modos: o passageiro, o outro, o pobre,  o amigo, o companheiro, o Cati, o maluco, o louco e, de muitos outros. Registrado o seu caminhar, o chapéu que usa, o jeito de comer, um grande medo diante de certas situações, algum gesto. Porém,  parcamente é  ouvida a   voz desse  personagem que dá título ao romance de Dyonélio Machado, O Louco do Cati ( Porto Alegre, Globo, 1942 e a recente edição da Editora Planeta). Uma  voz que, rara vez, diz umas poucas palavras. Ouvidas, atraem o olhar do interlocutor que, no entanto, se depara, apenas, com seu rosto de expressão distante.

            Logo no começo do passeio, o rapaz que dirigia o pequeno caminhão, pergunta o nome do outro, que viajava na carroceria. Diante da resposta, - Maneco Manivela,  conclui: - Tem um nome engraçado. Opinião que, imediatamente, provoca  uma tentativa  para explicá-lo:  -De certo é um apelido. O que perguntara e Norberto, também viajando na cabine, com o “maluco”, se tornaram com vivacidade  mas, ele já estava  outra vez olhando prá frente, pra longe.... 

            Quando, no Rio de Janeiro, Norberto que o levara para lá, tentando  conseguir-lhe uma passagem de volta para o Rio Grande do Sul,  se dirige à polícia, um dos funcionários pergunta se ele pensava voltar por mar. -Eu quero por terra.  Aquela voz soou no gabinete com um tom estranho, subterrâneo.  Os dois fitaram o maluco. Ele não tinha nenhum outro desejo a exprimir. Assumira outra vez o ar indiferente.  Na hora em que devia deixa a pensão, se recusa a partir e fica imóvel até o momento em que Nanci, a filha da dona, procura convencê-lo e é para ela que dirá num sussurro: - Eles vão me levar pra o Cati... A moça acha graça e Norberto explica que se tratava de uma esquisitice dele. E consegue levá-lo para o embarque.

            Já em Lages, é hospedado pelo motorista do caminhão que o levara desde Florianópolis. À mesa, lhe pergunta o nome. O outro ainda engolia. Suspendeu-se um momento. O dono da casa viu a sua atrapalhação. Engula primeiro – sugeriu-lhe.   Foi o que ele fez. E falou depois num apelido... num apelido que ultimamente... -Como é o apelido? – Ah! Isso mesmo – considerou ao ouvir a resposta do outro.

            Sem dúvida, uma incomum estrutura do diálogo. Mostra o domínio que tem Dyonélio Machado de sua narrativa e o talento ímpar que lhe permite  criar um personagem cuja extrema parcimônia de expressão lhe inteira um perfil que é um dos mais intrigantes e comovedores do romance brasileiro.