domingo, 25 de março de 2007

O requinte das imagens


            São palavras sonoras e envoltas no mistério de seu significado, pois não são facilmente encontráveis no rol daquelas que pertencem à língua oficial: caguncho trapizonha, gurumbumba, enganço. Por vezes, algum provérbio, um dito popular: berrava por qualquer maracujá de gaveta, não pregava prego sem estopa, botar guizo na onça, pintar o caneco. Pitoresco de uma linguagem que figuras de estilo – dessa forma alguns recursos são chamados pela norma culta – enriquecem numa harmoniosa combinação de espontaneidade e despretensão da narrativa. No cenário do engenho, nos personagens que o habitam e nos que a eles se enredam, o eu narrador se revela. No seu dizer, a sinédoque e os símiles fazem parte da representação do universo ficcional no qual ele se inscreve. Assim, ao empregar a parte pelo todo, uma vez se refere ao engenho São Martinho como o assoalho dos Menezes; em outros três casos, a sinédoque serve para mencionar um primo cuja gordura baixou no sofá da sala e a brabeza de Dona Lúcia, que, ao não suportar as afrontas do vizinho, sua beleza pegava fogo e quando ele ousou tirar satisfações na porta de sua casa, pode ser vista a beleza dela avançar para cima do atrevido.

             Em muito maior número e pródiga engenhosidade, os símiles. Ora introduzidos pelo adjetivo feito (A carruagem corria feito pássaro na noite, Frederico era gavião que voava feito andorinha, ora pelo verbo parecer (Os mesmos hábitos, a mesma fala mansa que parecia forrada de veludo, Eu só tinha idéias que mais pareciam lesmas, que não tomavam forma de jeito nenhum). Também por advérbios no seu grau comparativo (mais por baixo que minhoca na terra, o que doía, o que picava em mim mais que espinho brabo, era a secura de Dona Lúcia, O pessoal da lavoura saía do horário das doze horas mais ressequido que bagaço das moendas. Em diversos casos, definem comportamentos (padre Hugo levantava os dedos como galhos secos de cajueiro, Dona Lúcia, zangada, chegando no engenho sem ninguém esperar, como tormenta de verão, Quincas de Barros que entrara na briga do açúcar como leão e saiu como gambá); ou maneiras de ser (o padre Hugo de Arimatéia era alto como vela de promessa; ou estados de espírito (Minha cabeça zunia como se tivesse besouros por dentro).

            Quanto às metáforas, aparecem para definir um ser inanimado, atribuindo-lhe, por analogia, características de outros seres inanimados como o engenho de São Martinho ser mesmo um túmulo ou características de animais: o trem era aquela lesma por cima dos trilhos. Sobretudo, são usadas para descrever algo dos personagens ou para referir-lhes o comportamento: o padre Hugo tinha o rosto de cera e doçura de moça; Dona Lúcia, era aquele temporal, tinha mão de seda e, no entender de seu marido, coração de veludo. Naninha de tão boa era um veludinho, aa fala de Nabuco, uma fala de trombone.

            Mas, é, principalmente, na descrição de Frederico que abundam as metáforas. Para dizer de seu jeito de viver: levava uma existência de mandacaru, uma vida de convento, era um plantado de raízes profundas na terra doce. Para desenhar-lhe o perfil: seu rosto era de pedra, tinha a palavra suave, a doçura de anjo, dava ordem quase ao ouvido, era aquele algodão e suas desculpas eram vestidas de seda. Por duas vezes, o seu jeito solitário, leva a ser tido por urso e sua esperteza por raposa velha, uma raposa de mil astúcias que, ao desejar vencer o concorrente, procura cercá-lo de arame farpado de mil astúcias.

Ao redor dele, desse Frederico a quem o título do romance dirige a exortação de ser menos materialista é que se tece o relato na voz de seu sobrinho e pretenso herdeiro: Eduardo de Sá Menezes. No retrato que faz do tio com quem convive durante seus anos de adolescência, vai-se delineando o seu próprio perfil e alinhavando uma história de família. Um micro-universo se mostra – nos traços de paisagem, nos seres enovelados em medíocres sentimentos, nos momentos de apogeu e declínio de uma classe que hesita entre a produtividade e a ostentação viciosa – em Olha para o céu, Frederico! Romance que José Cândido de Carvalho marca com o seu impecável manejo do idioma  – um popular sem tropeços e o requinte das imagens – e faz dele um dos maiores ficcionistas brasileiros.

domingo, 18 de março de 2007

Engenhoso enlaçar de sentidos

E nessa noite comecei a escurecer papel com minha letra miúda. O começo de uns apanhados, um arrazoado em que mostraria seu tio Frederico como ele era, no seu entender e não como o apresentava o articulista do jornal O Estado. Tarefa que Eduardo de Sá Menezes empreende com os conhecimentos que recebera do Padre Hugo e que não pretendia enfeitar, como lhe aconselhara, em certo momento da escrita, o redator chefe de O Monitor, entusiasmado com essa pretensão de dar uma resposta, por tudo em letra de imprensa. Fizera-o ler um livro que falava em tarde de ouro e pedrarias sugerindo que insistisse nas tintas, porém o personagem de José Cândido de Carvalho é senhor de seu relato. Se ele entende como um defeito desobedecer à cronologia dos fatos – de um relato que ficou a outro que começa, vai distância de muitos anos – e se reconhece ser incapaz de trabalhar de pincel em certos quadros, porque acha que não tem jeito, que borra, encharca as coisas, a riqueza de sua narrativa desabrocha no singular enlace que faz o verbo com o seu complemento. Para evidenciar a sovinice do tio Frederico conta que à noite quando as estrelas queimavam no alto, mandava que apagassem os lampiões por motivo de não desperdiçar luz. Para se referir à maleita, grassando nos engenhos, diz que as águas chocas despejavam maldades em cima do povo. E se lembra de seus tempos piedosos de rezas e oratórios quando via cachos de anjos chovendo nos seus sonhos.


            Inventivos, os verbos e seus complementos que designam atitudes ou expressam sentimentos: referindo-se ao almoço com um amigo, o sucesso gastronômico é referido por um verbo inopinado: almoçamos juntos, espatifando pato com ameixa. E, assim, menciona o luto pela morte de seu tio, guardado pela viúva: Cozinhava o luto ao lado do pai, no amparo de suas barbas. Sobre ele próprio, constata que em visita à família do velho Souza Cravo, jorrava gentileza a seus pés e que, ao transformar o engenho em usina, chovia admiração sobre sua cabeça. Uma novidade que suscitou indignação do major, pai da viúva, também dona da propriedade, que, falando grosso com ele, abriu as torneiras da raiva. Mas, foram seus gritos de alegria que escorriam pela casa das máquinas e ganhavam as plantações quando viu a usina funcionando, o caldo a deslizar pelas moendas, o ruído da cana nas esteiras.

            Curioso, o emprego do verbo lambuzar: o tio Frederico, negando os mexericos de família que denegriam seu irmão, o lambuzava de bondades; o padre Hugo, quando seu tio Frederico casou, já não encontrando no engenho o mesmo ambiente de antes, passava de longe com medo de se lambuzar de pecado. Numa noite em que saia com amigos, Eduardo de Sá Menezes percebeu que uma lua de encomenda lambuzava os telhados.

            E, incomparável o uso dos verbos que antropomorfizam seres inanimados (A carruagem capengava por dentro da noite, A carruagem gemia no areal, Na frente de minha saudade, corriam meus bilhetes); ou elementos da natureza (a tarde corria esbaforida com medo daquela paisagem de mandacarus, O luar lambia tudo, O luar graúdo levantava âncoras no céu).

            A par desse inusitado e sapiente uso do verbo em relação às palavras que o completam, a sua expressividade se amplia no tempo que determina a ação: um ou outro passado perfeito – ação finita ou assim considerada – entre muitos verbos no imperfeito. Eles não apenas situam a ação no passado, mas lhe dão vida, animando a narrativa como se tal ação voltasse a acontecer no momento em que está sendo evocada.

            Recurso, nesse uso inovador do sentido do verbo que se mantém próximo à espontaneidade do vocabulário regional e dos engenhosos símiles que, abundantes, pontilham o texto de Olha para o céu, Frederico!, que, de per si, atesta esse domínio da expressão e da criatividade tão próprios dos grandes ficcionistas.

domingo, 11 de março de 2007

Marca do talento:o pleonasmo


            Publicado em 1939, no mesmo ano em que aparecia, entre outros, Um lugar ao sol, de Erico Verissimo, Riacho doce, de José Lins do Rego, Floradas na Serra, de Diná Silveira de Queirós, Olha para o céu, Frederico! (romance acontecido em Campos dos Goitacases nos dias do gramofone), o primeiro romance de José Cândido de Carvalho. A par de sua perfeita estrutura romanesca, uma estréia em que a rica experiência de linguagem que, no dizer de Assis Brasil (A Literatura no Brasil, 1971) não o aproxima de escolas ou preconceitos literários, e, certamente, anuncia a rutilante inventiva de que é feito O Coronel e o lobisomem que veio à luz vinte e cinco anos mais tarde.

             Em Olha para o céu Frederico!, a narrativa de Eduardo de Sá Menezes é marcada por vocábulos regionais, pela  renovadora combinação entre o verbo e seus complementos, pelo reiterado uso do símil e pelo uso do pleonasmo na expressão do personagem.

            Na verdade, repetições não são muito freqüentes em Olha para o céu, Frederico! Uma dezena de casos a reafirmar uma zanga ou uma argumentação de Frederico, Dona Lúcia, Eduardo de Sá Menezes, Carlos. Frederico é o dono todo poderoso do engenho São Martinho; Dona Lúcia, sua mulher; Eduardo, o sobrinho órfão com pretensão a herança do tio; Quincas de Barros, o parente distante, e por achego; Carlos, primo de Frederico, dono de engenho falido. Nas poucas vezes em que se expressam pelo diálogo direto, suas emoções se reiteram pelo pleonasmo.

 Dona Lúcia, ofendida com Quincas de Barros que recuava os mourões, adentrando-se nas suas terras e praticando outras afrontas, sentencia:-Isso é um desaforo de ninguém aturar. Ninguém. Eduardo de Sá Menezes, por herança, tornado o dono do Engenho São Martinho vê chegar o guarda-livros, a mando do pai da viúva do tio, a quem a propriedade também pertencia para dela fuçar as cifras e os cifrões, diz que em São Martinho só uma boca tinha mando e, aos berros, completa: -A minha, ouviu. A minha! Quando argumenta das vantagens de montar uma usina, pois tempo de fabriqueta amarrada com cordão, era coisa passada. Não valia nada. Valia menos que um caracol, gosta do caracol dito na frase, pelo que repete, enérgico: -Menos que um caracol de jardim. Ao que, o Major Ataliba, pai de sua tia, a quem desejava convencer, indignado, se mostra contra um possível prejuízo para sua filha e repete, ao longo do episódio, três vezes: -Era só o que faltava!.Como, também, por três vezes, o manda lamber sabão.

            Igualmente, os demais pleonasmos se originam de emoções e, nem sempre, elas são sinceras. Quando Carlos pede dinheiro emprestado, a explicar que o devolveria em quinze dias, afirmando taxativo: -No mais tardar, no mais tardar, não é levado a sério por Frederico. Ele está ciente de que tal dinheiro não seria devolvido nunca o que lhe daria o lucro da hipoteca, mas, cordial, recrimina o parente por não ter pedido o dinheiro antes e franco de bolso aberto: -Parente é para isso, primo Carlos. Parente é para isso. Expressão que ,um pouco diferente, vai repetir mais adiante: Parente era para essas ocasiões.

            Em duas vezes, a repetição tem por objetivo defender Quincas de Barros, cujas atitudes de rapina em relação às terras de Frederico não eram desconhecidas de ninguém, salvo do próprio prejudicado que, assim, explicava o fato ao ouvir-lhe as desculpas e o pedido das sobras de sua safra: “O parente sabe que não tenho ouvidos para candongas. O doutor é de hoje. Conheci seu pai fazendo açúcar em gangorra de burro. Estou nesses ermos desde 1849. Conheço este povinho como a palma de minha mão. Linguarudo, primo Quincas. Linguarudo. Defesa que, também, parte de Carlos, tentando convencer a prima Lúcia das qualidades de Quincas de Barros: Quincas tem gênio. Muito gênio. Fora disso é uma luva. Uma luva, prima Lúcia.

Em todos esses casos em que o pleonasmo apareceu na expressão dos personagens, ele não funcionou como figura de retórica – o que lhe é peculiar – mas como um elemento que se mostra imprescindível para o esboço dessas figuras que, entre outras, povoam o romance. Figuras que se completam, com os demais recursos de linguagem que José Cândido de Carvalho sabe, entre singeleza e astúcia, tão bem manejar e que, em meio às situações as mais prosaicas, se mostram, no entanto, verdadeiramente ímpares.

domingo, 4 de março de 2007

Sonhar no Continente


             E fora numa espécie de ponte sobre uma oficina, quente como o inferno, e onde fumegavam umas vinte linotipos que eu escrevera Olhai os lírios do campo, romance que publicado em 1938 [...] mudou minha vida, escreve Érico Veríssimo na “Breve crônica duma Editora de província”, publicada em O tempo e o vento: 50 anos (Editoraufsm, EDUSC, 2000).

            Dizer que a publicação de Olhai os lírios do campo mudou sua vida é repetir o que já é por demais sabido. No Prefácio para a edição do Círculo do Livro, em 1966, lembra que foi a partir desse romance que pôde fazer da Literatura uma profissão. O seu sucesso foi muito grande: em poucos meses esgotaram-se várias edições. Um sucesso que o autor gaúcho confessa não entender muito bem, uma vez que o considera um tanto fácil e exageradamente sentimental, mas que, talvez, tenha explicação no seu romantismo e na sua intriga. Um amor que a escolha do indivíduo e, depois, a crueldade da vida impedem de se concretizar na felicidade. Uma intriga na qual os desencontros são frutos apenas da fragilidade das decisões.

            Eugênio, médico, deseja ser rico; Olivia, médica, aspira servir seu semelhante. Seus caminhos se cruzam e, quando podem resultar paralelos, a morte os interrompe. Como em outros de seus romances, Érico Veríssimo, como já o observara Wilson Martins no capítulo de A Literatura Brasileira. O Modernismo 1916-1945 (São Paulo, Cultrix, 1965) que lhe consagra, mistura ao relato longos trechos de discussões teóricas de política ou de filosofia social [...]. Se tal procedimento acarreta o enfraquecimento ficcional, ao inserir matéria estranha, causando, assim, ruptura na unidade narrativa, por outro lado testemunha inquietações que, vicejando nesse longínquo ano de 1938 em que foi escrito o romance, continuam sendo  as mesmas que  atormentam alguns brasileiros nos dias de hoje.

            Inquietações expressas pelo Dr. Seixas e por Eugênio. O doutor Seixas era um homem grande, barbudo e de ar agressivo, amigo de Eugênio e que lhe dizia: médico de gente pobre é como mulher de beco: faz tudo. Vivia atormentado pelos credores e pela bronquite crônica; não nega os defeitos dos homens, porém , nem por isso, se desinteressa de suas dores. Quando vai buscar Eugênio para que o ajude na operação da mulata velha, magra e escangalhada, que deseja salvar, não deixa de se questionar se existe razão para isso, pois, em dez dias, ela iria estar na beira do riacho, lavando roupa outra vez para criar os seus cinco filhos. E se pergunta, pergunta a Eugênio, quando é que gente assim, Que não pode pagar vai ter o seu hospital, a sua assistência médica decente?

            Eugênio já se distanciara da vida rica e cômoda que o casamento por interesse lhe havia propiciado, para voltar a ser médico de cinco mil réis a consulta. Começara a se sentir médico de verdade. Atendia cada cliente com solicitude, interessava-se pela sua vida, surpreendia-se com o sofrimento. Cada ficha de paciente não continha somente um nome e alguns sintomas, mas se impregnava, também, de seus dramas. Como homem, queria entender, ser útil, dar conforto e ajuda. Médico, desejava aliviar, dar o remédio da cura, porém, na maioria das vezes, nada podia fazer. Entre as conclusões desoladoramente materialistas, a sua relutância em aceitar a destruição irremediável da morte e a tendência em acreditar que misérias e conflitos poderiam desaparecer dentro da grande harmonia universal, se instalam, ainda, seus ideais utópicos: E se um dia os homens de gênio e de boa vontade descobrissem um meio de empregar todas as conquistas do engenho humano no sentido de minorar os males da humanidade? Talvez conseguissem achar trabalho para todos, pão para todos, saúde para todos ou pelo menos para a grande maioria.

            A prática do cotidiano, ao atender gente pobre, faz com que responda à pergunta do Dr. Seixas, dizendo que um dia, quem sabe, possa existir a medicina socializada: um grande hospital de urgência com um perfeito serviço de ambulância, todos os recursos da técnica, muitos médicos... Iam, os dois, a caminho do hospital para operar a lavadeira. Ouvindo sua resposta, o Dr. Seixas conclui: Dois malucos sonhando de olhos abertos dentro de um carro de praça.