-Eles hão de se convencer de que a tradição,
o nome, os fumos de valentia não valem nada,
diz Vasco Bruno para sua prima Clarissa. “Eles” são Amâncio, Jovino, João de
Deus, os três irmãos que haviam sido ricos e não aprenderam a ser pobres.
Nenhum deles trabalhava: um bebia, outro se drogava e o terceiro vivia das
glórias passadas. Essas que são contadas pelos mais velhos e adquirem foros de verdades
indiscutíveis e definitivas como repetir que os Albuquerques existiam muito antes do Rio Grande, muito antes do Brasil. Um nome que, em
Portugal, pertencia a guerreiros, a descobridores, a poetas. Gravemente, Zezé,
a velha tia afirmando, muitas vezes: a
nossa família descende de d. Urraca,
rainha de Portugal. No velho casarão, a mobília antiga da sala de visitas,
com a mesinha de mármore, o dunquerque cheio de bibelôs, o espelho de moldura
de ouro fosco onde anjinhos formam uma guirlanda; na sala de jantar, a mesa
pesada de jacarandá, o velho relógio de ébano e, principalmente, o retrato do
antepassado, herói da Guerra do Paraguai, fardado de general, com as dragonas douradas, espadagão à cinta, luvas
brancas, medalhas no peito,
atestando o passado de riqueza e prestígio.
Os
Albuquerques, a família mais antiga do município, eram ricos, donos de léguas e
léguas de campo, de vários prédios e de terrenos na cidade, quase um quarteirão
inteiro. E dando nome à rua. Propriedades dilapidadas em hipotecas que não
foram honradas. João de Deus perdeu a estância – os bancos levaram tudo –, mas, como ex-proprietário da maior
estância do município, não aceita trabalhar como empregado. Recusa e tem
vontade de esbofetear o insolente que, em agradecimento à ajuda recebida de seu
pai, lhe oferece um emprego. Em nome do que acredita ser verdade, a honra, a
tradição, o cavalheirismo, a coragem dos Albuquerques, nega ter contas a pagar.
Sem condições de resgatar as hipotecas das propriedades que a família possuía,
enche-se de rancor e rotula aqueles a quem devia de gringos sujos. Sente-se roubado pelo italiano, dono da padaria a
quem, mais uma vez, recorre, hipotecando outra casa e o designa de gringo safado. Porém, se lhes dói tudo
ir perdendo e ver a casa onde viviam, transformada em padaria, nem por isso
aceitam trabalhar. Para João de Deus, a hora
da sesta é sagrada e trabalhar, motivo
de riso e uma vergonha. Não, porém, pedir dinheiro emprestado, permitir que
a filha, com seu salário de professora, salde a conta do armazém. Se trabalhar
para outrem é algo de inaceitável para um Albuquerque, algum vago projeto de
negócio que possa solucionar os problemas financeiros, João de Deus o transfere
a cada semana: Quem é que se lembra de
negociar com um inverno brabo desses?, ele justifica. Porque levou a vida,
como os irmãos, com as facilidades oferecidas aos que tem nome e dinheiro: Papai é rico, Nos Albuquerques ninguém encosta um dedo, Meu avô foi um grande general, Temos
léguas e léguas de campo, gado em penca. Pobres, não percebem que a
tradição da família, que o nome que possuem não se constituem razões
suficientes para que os demais paguem por seus vícios. Para João de Deus, as contas, simplesmente, não existem. Tocar
nelas, falar nelas é um sacrilégio, uma violação.
Cristalizados
no passado, os Albuquerques não se dão conta da dinâmica do presente – que move
o italiano e seu filho – atribuindo a derrota financeira à má sorte e a
ganância dos que vão se apossando dos bens que hipotecam. No relato dessa sua
decadência, Érico Veríssimo reflete sobre um dos traços da formação da
sociedade rio-grandense. O que, aliado ao que ele considera uma das primeiras tentativas de regionalismo
urbano feitas no Rio Grande do Sul no campo do romance, são temas que se
entrelaçam em Música ao longe, publicado em 1934 e que, presentes nos
romances que se lhe seguem, marcarão a trajetória do escritor gaúcho.

Nenhum comentário:
Postar um comentário