domingo, 18 de fevereiro de 2007

Os Albuquerques

          

-Eles hão de se convencer de que a tradição, o nome, os fumos de valentia não valem nada, diz Vasco Bruno para sua prima Clarissa. “Eles” são Amâncio, Jovino, João de Deus, os três irmãos que haviam sido ricos e não aprenderam a ser pobres. Nenhum deles trabalhava: um bebia, outro se drogava e o terceiro vivia das glórias passadas. Essas que são contadas pelos mais velhos e adquirem foros de verdades indiscutíveis e definitivas como repetir que os Albuquerques existiam muito antes do Rio Grande, muito antes do Brasil. Um nome que, em Portugal, pertencia a guerreiros, a descobridores, a poetas. Gravemente, Zezé, a velha tia afirmando, muitas vezes: a nossa família descende de d. Urraca, rainha de Portugal. No velho casarão, a mobília antiga da sala de visitas, com a mesinha de mármore, o dunquerque cheio de bibelôs, o espelho de moldura de ouro fosco onde anjinhos formam uma guirlanda; na sala de jantar, a mesa pesada de jacarandá, o velho relógio de ébano e, principalmente, o retrato do antepassado, herói da Guerra do Paraguai, fardado de general, com as dragonas douradas, espadagão à cinta, luvas brancas, medalhas no peito, atestando o passado de riqueza e prestígio.

            Os Albuquerques, a família mais antiga do município, eram ricos, donos de léguas e léguas de campo, de vários prédios e de terrenos na cidade, quase um quarteirão inteiro. E dando nome à rua. Propriedades dilapidadas em hipotecas que não foram honradas. João de Deus perdeu a estância – os bancos levaram tudo –, mas, como ex-proprietário da maior estância do município, não aceita trabalhar como empregado. Recusa e tem vontade de esbofetear o insolente que, em agradecimento à ajuda recebida de seu pai, lhe oferece um emprego. Em nome do que acredita ser verdade, a honra, a tradição, o cavalheirismo, a coragem dos Albuquerques, nega ter contas a pagar. Sem condições de resgatar as hipotecas das propriedades que a família possuía, enche-se de rancor e rotula aqueles a quem devia de gringos sujos. Sente-se roubado pelo italiano, dono da padaria a quem, mais uma vez, recorre, hipotecando outra casa e o designa de gringo safado. Porém, se lhes dói tudo ir perdendo e ver a casa onde viviam, transformada em padaria, nem por isso aceitam trabalhar. Para João de Deus, a hora da sesta é sagrada e trabalhar, motivo de riso e uma vergonha. Não, porém, pedir dinheiro emprestado, permitir que a filha, com seu salário de professora, salde a conta do armazém. Se trabalhar para outrem é algo de inaceitável para um Albuquerque, algum vago projeto de negócio que possa solucionar os problemas financeiros, João de Deus o transfere a cada semana: Quem é que se lembra de negociar com um inverno brabo desses?, ele justifica. Porque levou a vida, como os irmãos, com as facilidades oferecidas aos que tem nome e dinheiro: Papai é rico, Nos Albuquerques ninguém encosta um dedo, Meu avô foi um grande general, Temos léguas e léguas de campo, gado em penca. Pobres, não percebem que a tradição da família, que o nome que possuem não se constituem razões suficientes para que os demais paguem por seus vícios. Para João de Deus, as contas, simplesmente, não existem. Tocar nelas, falar nelas é um sacrilégio, uma violação.

            Cristalizados no passado, os Albuquerques não se dão conta da dinâmica do presente – que move o italiano e seu filho – atribuindo a derrota financeira à má sorte e a ganância dos que vão se apossando dos bens que hipotecam. No relato dessa sua decadência, Érico Veríssimo reflete sobre um dos traços da formação da sociedade rio-grandense. O que, aliado ao que ele considera uma das primeiras tentativas de regionalismo urbano feitas no Rio Grande do Sul no campo do romance, são temas que se entrelaçam em Música ao longe, publicado em 1934 e que, presentes nos romances que se lhe seguem, marcarão a trajetória do escritor gaúcho.

Nenhum comentário:

Postar um comentário