domingo, 25 de fevereiro de 2007

Da paina e da paineira


            Eduardo de Sá Menezes, ao ler no jornal um trabalho que, sobejamente, elogiava seu tio Frederico, responde, no desejo de pôr os pingos nos is, diminuindo-lhe a figura, num artigo em que  diz ter ele arrotado grandeza por tudo que foi virgula. Não convenceu, porém, seu antagonista que tornou a enaltecer o trabalho de Frederico, reconstruindo com mãos de calo o que os dedos finos dos barões arruinaram para concluir que essa nobreza de cana acaba sempre apodrecendo sem eira nem beira. Eduardo de Sá Menezes, ofendido, lhe aplica nos fundilhos meia-dúzia de pontapés. Depois, planeja uma vingança: escrever um negócio em que mostrasse seu tio como ele era de verdade. Órfão, ainda criança, fora por ele acolhido e com ele conviveu quinze anos, nos quais não chegou a conhecê-lo a não ser pelos seus atos e palavras: trabalhador, uma raposa de mil astúcias que jamais se impacientava. Sua voz nunca saía daquela mansidão de paina e ao argumentar o fazia em garganta de paina. No cuidado com as filhas do usineiro – que já tentara prejudicá-lo, invadindo suas terras – quando visitavam sua casa, se esmerava em cercá-las dos cuidados mais de paina. Morreu, deixando para o sobrinho grande parte do que possuía, um mundo de terras e ainda alguns contos de reis para o cofre de dinheiro. Patrimônio que Eduardo de Sá Menezes – da estirpe dos barões, de que tanto se orgulhava – não demorou em arruinar pela sua absoluta incapacidade de reger trabalhos e negócios ou de fazer frente aos boicotes advindos de sua prepotência sem medidas. Com os prejuízos surgindo de todos os lados, ele se confessa impotente contra essa onda de desmandos que vinha com pés de paina.  
            Publicado em 1939, na breve nota introdutória quando de sua quarta reedição, José Cândido de Carvalho diz ser Olha para o céu, Frederico! um velho amor. E ele tem razões para tal, pois esse  romance de estréia no seu desenrolar harmonioso, na riqueza das figuras que o povoam, na  expressividade de sua linguagem, se constrói em perfeição.

            Cinco anos antes, Érico Veríssimo publicava Música ao longe. No prefácio para a sua edição do Círculo do Livro, em 1961, o autor gaúcho diz que o considera um livro medíocre e lhe menciona os defeitos e, também o fato, de apesar deles, ter recebido, em 1934, junto com Os Ratos de Dyonélio Machado e com Totônio Pacheco de João Alfonsus o Prêmio de Romance Machado de Assis, em vista do qual fora escrito.

            Ora um narrador onisciente, ora Clarissa, no seu diário, dão conta desse universo em que se instala uma família em crise. Na voz do narrador, o cotidiano de Clarissa onde se inserem os pequenos dramas individuais daqueles que vivem ao seu redor. Eventualmente, breves descrições fixam o cenário: algo do casarão e do jardim com seus canteiros arruinados. Nele, a paineira. À noite, está toda respingada de prata e seu perfil rendilhado se destaca contra o céu noturno [...]. Na luz do dia, lembrada por Clarissa, grande e florida, contra um céu claro e, assim, reencontrada no quadro em que o pintor a reproduz, como ela teria feito se soubesse pintar: a sua paineira num dia de sol, toda florida, contra o céu azul. Expressão de posse intensificada ao conversar com o primo que pretende deixar a família e a cidade a quem pergunta se não tem amor a sua terra. Ele responde que sim e se confessa preso ao pátio de sua casa, à figueira, à paineira... Pelo narrador, Clarissa é surpreendida, inerte, emocionada com a figura do primo que tanto deseja entender, como imóvel, silenciosa se ergue a paineira contra o céu noturno. Ou, ao abrir a janela e ver a paineira que perdeu suas flores e os passarinhos que nela moravam; ou, ainda, olhando para fora o sol esmaecido, um pedacinho de céu azul entre as nuvens cinzentas, a paineira sem flores. O que a emociona e a faz anotar no seu diário, tão importante quanto suas tristezas e sonhos, que por causa do inverno não tem mais a sua paineira florida.

            Liame afetivo de Clarissa e de seu primo com o mundo em que vivem ou razão indireta da tragédia que sobreveio à família quando o artista forâneo, ao pintá-la, se apaixona pela moça da casa, é correspondido e depois a abandona com o filho pequeno, levando-a ao suicídio, a paineira florida contra o céu azul ou despojada pelo inverno é, também, em Música ao Longe, marca poética do espaço em que se passa a ação.

domingo, 18 de fevereiro de 2007

Os Albuquerques

          

-Eles hão de se convencer de que a tradição, o nome, os fumos de valentia não valem nada, diz Vasco Bruno para sua prima Clarissa. “Eles” são Amâncio, Jovino, João de Deus, os três irmãos que haviam sido ricos e não aprenderam a ser pobres. Nenhum deles trabalhava: um bebia, outro se drogava e o terceiro vivia das glórias passadas. Essas que são contadas pelos mais velhos e adquirem foros de verdades indiscutíveis e definitivas como repetir que os Albuquerques existiam muito antes do Rio Grande, muito antes do Brasil. Um nome que, em Portugal, pertencia a guerreiros, a descobridores, a poetas. Gravemente, Zezé, a velha tia afirmando, muitas vezes: a nossa família descende de d. Urraca, rainha de Portugal. No velho casarão, a mobília antiga da sala de visitas, com a mesinha de mármore, o dunquerque cheio de bibelôs, o espelho de moldura de ouro fosco onde anjinhos formam uma guirlanda; na sala de jantar, a mesa pesada de jacarandá, o velho relógio de ébano e, principalmente, o retrato do antepassado, herói da Guerra do Paraguai, fardado de general, com as dragonas douradas, espadagão à cinta, luvas brancas, medalhas no peito, atestando o passado de riqueza e prestígio.

            Os Albuquerques, a família mais antiga do município, eram ricos, donos de léguas e léguas de campo, de vários prédios e de terrenos na cidade, quase um quarteirão inteiro. E dando nome à rua. Propriedades dilapidadas em hipotecas que não foram honradas. João de Deus perdeu a estância – os bancos levaram tudo –, mas, como ex-proprietário da maior estância do município, não aceita trabalhar como empregado. Recusa e tem vontade de esbofetear o insolente que, em agradecimento à ajuda recebida de seu pai, lhe oferece um emprego. Em nome do que acredita ser verdade, a honra, a tradição, o cavalheirismo, a coragem dos Albuquerques, nega ter contas a pagar. Sem condições de resgatar as hipotecas das propriedades que a família possuía, enche-se de rancor e rotula aqueles a quem devia de gringos sujos. Sente-se roubado pelo italiano, dono da padaria a quem, mais uma vez, recorre, hipotecando outra casa e o designa de gringo safado. Porém, se lhes dói tudo ir perdendo e ver a casa onde viviam, transformada em padaria, nem por isso aceitam trabalhar. Para João de Deus, a hora da sesta é sagrada e trabalhar, motivo de riso e uma vergonha. Não, porém, pedir dinheiro emprestado, permitir que a filha, com seu salário de professora, salde a conta do armazém. Se trabalhar para outrem é algo de inaceitável para um Albuquerque, algum vago projeto de negócio que possa solucionar os problemas financeiros, João de Deus o transfere a cada semana: Quem é que se lembra de negociar com um inverno brabo desses?, ele justifica. Porque levou a vida, como os irmãos, com as facilidades oferecidas aos que tem nome e dinheiro: Papai é rico, Nos Albuquerques ninguém encosta um dedo, Meu avô foi um grande general, Temos léguas e léguas de campo, gado em penca. Pobres, não percebem que a tradição da família, que o nome que possuem não se constituem razões suficientes para que os demais paguem por seus vícios. Para João de Deus, as contas, simplesmente, não existem. Tocar nelas, falar nelas é um sacrilégio, uma violação.

            Cristalizados no passado, os Albuquerques não se dão conta da dinâmica do presente – que move o italiano e seu filho – atribuindo a derrota financeira à má sorte e a ganância dos que vão se apossando dos bens que hipotecam. No relato dessa sua decadência, Érico Veríssimo reflete sobre um dos traços da formação da sociedade rio-grandense. O que, aliado ao que ele considera uma das primeiras tentativas de regionalismo urbano feitas no Rio Grande do Sul no campo do romance, são temas que se entrelaçam em Música ao longe, publicado em 1934 e que, presentes nos romances que se lhe seguem, marcarão a trajetória do escritor gaúcho.

domingo, 11 de fevereiro de 2007

O brasão

          Com o intuito de escrever um arrazoado que mostrasse Frederico a olho nu, o personagem narrador termina por fazer um retrato de si mesmo em que se mostra um verdadeiro anti-herói. Eduardo de Sá Menezes inicia o relato com a sua ida para São Martinho, propriedade de seu tio Frederico para que dele se torne o herdeiro. Órfão, fora criado como filho pelo tio Nabuco e pela tia Nica e, aos dez anos, é enviado para a casa do tio solteirão e ficar sob a sua responsabilidade. Na velha casa, passa a viver como um menino triste, encafuado pelos cantos. Recebe aulas do padre Hugo e, de vez em quando, a bênção do tio que um dia se casa. Eduardo de Sá Menezes foi crescendo e, então, a jovem mulher do velho tio o inicia no aprendizado dos tratos amorosos. Depois, o tio morre e, como previsto, o deixa um herdeiro grandemente beneficiado em terras e dinheiro no banco. Seu caráter não fora moldado e, a princípio, se dedicou a cuidar portas adentro da viúva e dos bens que recebera sem que, para isso, tivesse movido uma palha. Logo, a fortuna nas mãos, faz com que sinta o poder que dela emana. De ver tanta submissão ao meu redor, tantos cumprimentos e louvações, dei de engrossar a voz, ele diz. Ao primeiro grito e ameaça, proferida diante da cabeça de vinte anos de serviço que se abaixava com a humilhação, tomou gosto pelo berro e se arvorou em valente para desfeitear os subalternos e se convencer de seus brasões. No casarão de São Martinho, ao chegar, encontrara paredes dobradas, antiga morada de barões e pratarias antigas, veludos, retratos, histórias de riqueza e velhos cetins deixados nos gavetões. E o tio sempre preso ao trabalho o que o fez matutar: O mundo de meu tio era feito de terra. O meu era dos barões. Um mundo perdido, enterrado com o meu bisavô Pedro Lisa. Um mundo de invenção. Mundo que ele quer reinventar. Primeiro, manda pedir ao tio Nabuco, em carta cheia de efes e de erres, os desenhos com o brasão da família para pintá-lo na entrada de São Martinho; numa noitada de bebedeira e gritando que era barão, bisneto de Pedro Lisa, quer abrir as veias para que vissem a cor de seu sangue. O companheiro de esbórnia, um jornalista que já o havia elogiado pelo poderio da usina, com as novas máquinas que fizera instalar em São Martinho, lembra que ele tinha sangue de barão e seguindo os seus desvarios, menciona-lhe o brasão onde pontifica um javali vermelho e três estrelas douradas. E desanda a distribuir título de nobreza para o pessoal de saias do bordel; a si mesmo, o de Conde Papa-Moça, numa jocosidade burlesca, ampliada ao se referir às armas que teria o seu brasão, destruindo, assim, os elogios feitos à nobreza de Eduardo de Sá Menezes. Que não foi levada a sério pela viúva do tio quando, zangada, afirma que os Sá de Menezes não passavam de uma cambada de parasitas; nem pelo jornalista que, mais tarde, acompanha os seus escritos a opinar que o Barão de Sá Menezes é um bugre. Só falta a flecha; tampouco pelo seu empregado que mandando e desmandando em São Martinho, de copo na mão, lhe diz aos gritos: Barão feito nas coxas, barão de meia cuia.  

E o nome graúdo, cheirando a barão, que ele, ainda menino, quando foi para a casa do tio Frederico, sabia que não lhe seria de ajuda, não o impele a lutar pela propriedade, perdida, como tudo o mais, em esbanjamentos. Chegara de mãos vazias, fora colmado de riqueza e por preguiça e inépcia vai embora sem ter nada de seu. Só os seus rabiscados e a sensação de liberdade: não precisar dar ordens aos outros, não ter mais responsabilidades e zelos.

 Com o fito de recomeçar a vida, pede dinheiro emprestado, pensa no dote da moça a quem havia prometido casamento e compra um emprego público. No espelho, se enxerga um anão de gente, capaz de caber num dedal, mas, convencido de que não é nem melhor nem pior do que ninguém, acha que é sempre uma garantia mamar no governo. Segue os passos dos outros parentes: almeja se pendurar num emprego público, desses que rendem um samburá de dinheiro por mês para não fazer nada, só assinar meia dúzia de papéis.

Olha para o céu, Frederico!: romance acontecido em Campos dos Goitacases nos dias do gramofone foi publicado em 1939, estréia de José Cândido de Carvalho no campo da ficção. Ao reeditá-lo, em 1974, pela José Olympio, diz que “é um romance de título longo e texto curto. Um belíssimo texto curto em que a narrativa se faz num ritmo e numa tessitura sem entraves e se enriquece na expressividade da linguagem, cujos vocábulos e imagens regionais com ela estão em acorde. Sobretudo em que o personagem, em todas as suas ridículas facetas, quase setenta anos passados de sua criação, continua sendo o retrato de muitos que ainda vicejam por este vasto território nacional.            

domingo, 4 de fevereiro de 2007

As horas e os dias de Ponciano

       
Num marco de início e fim, diluídos na imprecisão temporal, estão compreendidas as peripécias que, numerosas, colmaram a vida de Ponciano de Azeredo Furtado. No relato que delas faz, nada diz de seu nascimento, só menciona ter perdido pai e mãe no gosto do primeiro leite e que sob o capotão do avô passou os dias de menino pequeno; sua morte é referida pela agulhada no centro do peito que o fez cair e, escutar, distante, alguém pedindo uma vela, alguém chorando e sentir o sono de paina que lhe fecha os olhos para dar acordo de si, em pé de sonho e cheio de alegria, a galopar em pata de nuvem mais por cima dos arvoredos do que um passarinho. Tudo o que irá contar, no entanto, estará sob a égide do tempo, freqüentemente, sua duração ou transitoriedade, indicado por horas, dias, semanas, meses, anos em notações ora precisas, ora imprecisas.

            Dadas pelo relógio, apenas as dez horas são exatas. As demais, aparecem nuançadas por diferentes expressões: a tarde devia estar no ponteiro das três, depois das sete, luar das oito horas, como o ponteiro do relógio abeirasse das onze, no bafo do meio-dia, o roçar da meia-noite. A menção ao dia aparece com o cômputo das vinte e quatro horas e, então, marcando um determinado momento: morto o dia, o raiar do dia. Mais especificamente, de manhã, na manhã da eleição. Ou indicando passagem de tempo preciso (no quinto dia, dois dias andados, dois dias adiante, meia dúzia de dias andados, dia e meio, uma braçada de dias, dia todo) ou impreciso (varando os dias, caminhar dos dias) quando, igualmente, é usado o termo madrugada: com a madrugada, toda madrugada, madrugada longe.  Outras vezes, a ação acontece quando o sol se oculta abaixo da linha do horizonte: de noite, na mesma noite, certa noite e, não raro, um adjetivo aponta para o adiantado da hora: noite feita, noite funda, noite cerrada, noite alta. E o tempo compreendido entre o meio-dia e a noite: na tarde, uma tarde, de tarde.

            Os dias da semana marcam o acontecer de sucessos de relativa importância: numa segunda- feira ficou pronta a decoração de seu escritório na cidade; no sábado, os cochichos sobre a sua valentia diante da onça e, em outros, sua presença no camarote para ver um espetáculo de revista; num domingo, a lembrança do convite recebido para almoçar, a promessa de ir jantar em casa do amigo Fonseca, o ajantarado na casa do então amigo Nogueira e a chegada de seu capataz para pedir ajuda no caso da onça. E fatos que o emocionam: num domingo leva para a estação o seu primo Juca Azeredo e sente um aperto no peito ao saber que seria o padrinho do filho que o primo pretendia ter e que levaria o seu prenome; numa segunda-feira, recebe a afronta de chegar na casa de Nogueira, convidado para jantar e encontrar a casa fechada, os donos ausentes. E no sábado que entrava e saia se esboroavam os seus feitos galantes diante de Isabel Pimenta, a moça pretendida.

            Várias são as expressões relacionadas com o tempo que se apresentam diferenciadas. Quando, por exemplo, a nota temporal se quer definida, mas é enunciada com termos que a deixam imprecisa: dia bem crescido e amamentado, no relógio do luar lembrou que era hora dos gatos. Ou, quando se apresenta em função de algum ruído ou olor: De manhã, na primeira modinha do sabiá laranjeira, a madrugada já estalava nos matos, a canto de galo, as cigarras do meio-dia, o cuca do relógio abriu na algazarra das dez, já o cheiro da madrugada, no cheiro do café, na primeira aragem da manhã. Ou, ainda, quando vinculada a algum fenômeno meteorológico: hora do sol a pino, no orvalho da manhã, no primeiro clarão do sábado, a primeira estrela da noite, no começo das águas, sábado de chuva plantadeira, domingo puxador de vento e nuvem, decaía a tarde e do lado do mar soprava um vento invernoso que limpava o céu de tudo que era passarinho.

            Entremeadas de “achados estilísticos”, elas reafirmam o cenário ficcional e contribuem para o esboço do personagem-narrador, eixo do romance. No serpentear das ações e no tecer dos sentimentos, esse minucioso registro temporal de O Coronel e o Lobisomem privilegia detalhes sem que por tal razão se esmoreça o ritmo da narrativa que José Cândido de Carvalho sabe reger muito bem. Tanto quanto todas as demais astúcias e sapiências para atingir a perfeição do relato.