domingo, 26 de novembro de 2006

A guerra da Espanha em Subterrâneos da Liberdade: o êxodo


            Iniciado em março de 1952, em Dobris, na Tchecoslováquia e concluído no Rio de Janeiro em novembro de 1953, Subterrâneos da Liberdade é o longo romance de Jorge Amado que não somente retrata figuras das classes dirigentes do país e aqueles que trabalham para tornar o Partido Comunista uma forte expressão do povo brasileiro, como, ao narrar as ações de uns e de outros, com o desigual confronto de forças, revela o que está subjacente nos empreendimentos de exploração das riquezas do país.

            A Luz no Túnel, o terceiro volume da trilogia, se inicia com a prisão de Carlos e de Josefa, sua mulher, militantes comunistas e ao que foram submetidos pelos agentes da repressão da ditadura de Getúlio Vargas. Não recuaram diante da ordem de bater no filho, ainda bebê, que fora levado junto com a mãe. E o relato dessa ação se constitui um dos mais cruéis entre os que documentam em textos ficcionais – como anos depois o fariam Eduardo Galeano em La canción de nosotros, Miguel Angel Asturias em El señor Presidente, Mario Vargas Llosa em La fiesta del chivo, Augusto Roa Bastos em El Fiscal – as torturas infligidas a presos políticos. Mais adiante, o jantar na casa de um ministro de Estado, com a presença de um importante homem de negócios de Wall Street, homenageado por aqueles que lhe eram submissos, como explica uma personagem para outra: estávamos todos na mesa e cada gesto quem comanda, Marieta, é mesmo Mister Carlton. E, depois, os episódios congregando as ações dos militantes comunistas, feitas, tanto de miúdas tarefas partidárias, como do trabalho de reestruturação do secretariado regional, desmantelado pela violência policial e de discussões sobre estratégias para ampliar a máquina do Partido. Alternam-se, ao longo do romance, os relatos concernentes a esses dois mundos antagônicos: o dos que negociam, tanto quanto lhes resulta possível, as riquezas do próprio país, preocupando-se, apenas, em adivinhar quais seriam os melhores compradores, se os alemães ou os norte-americanos; e os que percebem que nem os alemães, nem os norte-americanos têm interesse na democracia do Brasil, mas, somente, na exploração de suas riquezas, ainda que em detrimento dos brasileiros.

            A partir de um liame temporal – Por essa época, em fevereiro, dois homens encontraram-se e reconheceram-se em meio à multidão de soldados e civis, na fronteira da França com a Espanha – continuando-lhe a trajetória, outra vez, a presença de Apolinário. Nos volumes anteriores, havia saído da prisão e de São Paulo, obedecendo às instruções do Partido, seguira para a Espanha como voluntário das Brigadas Internacionais. Com a derrota dos Republicanos findara a Guerra da Espanha. Ele devia comandar sua companhia para cobrir a retaguarda dos últimos soldados republicanos e da massa de fugitivos a dar tempo para que todos pudessem cruzá-la. Mantinha a ordem entre seus soldados: - Não estamos fugindo. Estamos nos retirando como soldados da República, com disciplina e ordem. Ao seu redor, a fúnebre procissão se movia em meio ao trágico inverno da derrota. Eram carros puxados por jumentos e bois, levando velhos e crianças e pobres pertences: colchões, panelas, trapos, arcas e baús antigos, quadros de santos católicos. Dos que se retardavam e caíam nas mãos dos mouros de Franco ou dos soldados das legiões fascistas que procuravam alcançar a massa em retirada, ficavam as manchas de sangue na neve. Dos céus, aviões alemães, metralhavam ao azar, deixando cadáveres no rastro de seu ruído assassino. Ao atravessar a fronteira, na noite, no frio, no vento, na fome, os fugitivos partiam para terras que não eram as suas, iam recomeçar a vida em país estrangeiro, de língua diferente, de diversos costumes. Não sabiam que seriam confinados num campo cercado de arame farpado como se fossem criminosos. Desse drama que, então, se instaura, Jorge Amado pouco revela.

domingo, 19 de novembro de 2006

A guerra da Espanha em Subterrâneos da liberdade: emoção


A critica literária brasileira aponta, em geral, duas fases na obra de Jorge Amado: a primeira, a partir de Cacau até Subterrâneos da Liberdade (trilogia da qual fazem parte Os ásperos tempos, Agonia da noite e A luz no túnel) e a segunda, na qual se incluem as suas demais obras.

            Subterrâneos da Liberdade tem por fito traçar um panorama da vida política brasileira nos anos do Estado Novo. Jorge Amado, na verdade, quer fixá-lo a partir das forças antagônicas que, na época, se digladiavam – o integralismo e o comunismo – e que, então, conduzem as ações de seus personagens. Uma extensa galeria da qual fazem parte os que dominam a cena (os políticos, os donos de grandes fortunas e alguns intelectuais ou pseudo-intelectuais que estão a seu serviço) e aqueles que lutam para instaurar uma nova orientação política (representados pelos integrantes do Partido Comunista). Entre eles, Apolinário. Aparece em os Ásperos tempos, primeiramente, a partir do que sobre ele era do conhecimento dos seus companheiros: lutara no levante do quartel do Terceiro Regimento, fora preso e dera magníficas respostas nos interrogatórios, discursara diante do juiz na fase de instrução do processo. Depois, no encontro com Marina, que fora lhe entregar os novos documentos de identidade no hotel onde se hospedava ao ser posto em liberdade, após quase dois anos de prisão e prestes a abandonar o país com destino a Espanha, enviado pelo Partido para lutar nas brigadas internacionais. Seu retrato vai-se fazendo: ao abrir a porta, mostra uma face jovem e sorridente de homem com ar infantil que faz com que Marina se admire de não ter diante de si o que esperava: um cara barbudo e feio, como os comunistas que os cartazes da polícia pintam. Fala sem parar, rindo sempre e pelas suas palavras se mostra um irmão atento e afetuoso, um filho que sabe do sofrimento da mãe que pertencia a uma família de militares, por ele ter sido expulso do Exército. E de seu contentamento em ir participar na grande batalha entre o proletariado e o capitalismo num país cujo nome não foi pronunciado, mas que tanto Marina quanto ele, guardavam no coração. Ao ficar sozinho, examina o documento de identidade que lhe serviria até atravessar a fronteira uruguaia. Logo, seria o navio até a Espanha e, talvez, outros caminhos. As instruções, na minúscula tira de papel que ele queimou o fizeram lembrar de um episódio na cadeia, da fragilidade da irmã, de Marina, a saudá-lo de longe, vista pela janela do hotel e, principalmente, da beleza da missão que o Partido lhe confiara: eram os operários brasileiros que o enviavam para ajudar a luta dos operários espanhóis. Não estaria longe do Brasil quando se encontrasse nas trincheiras de Teruel. Ao contrário, todo esse mundo brasileiro, esse misterioso mundo loiro de trigo ao negro de carvão, todo o Brasil estaria com ele, estaria dentro dele e seriam as Marianas de todo o Brasil, os Joões de todo o Brasil a sustentar o seu braço de fuzil levantando contra os falangistas de Franco, os fascistas de Mussolini, os nazistas de Hitler.

            Em Agonia da noite, ele já está na Espanha e com a ferida na perna apenas cicatrizada, marcha, entre laranjais, com seus soldados, cansados, porém contentes da vitória que haviam tido. E’quando ele sente, de verdade, a presença da morte ao encontrar a moça tombada entre laranjeiras, os grandes olhos abertos, a mão crispada sobre as folhas amarelas. Seu ventre fora rasgado pela rajada de metralhadora, as frutas que estivera colhendo ficaram esparramadas e o sangue dera tons vermelhos à casca cor de ouro. Algumas haviam sido partidas pelas balas e o seu mel saboroso se misturava ao sangue da camponesa morta.

            A metralhadora abandonada logo adiante, sugere o autor dos disparos, soldados inimigos que matavam soldados ou civis, homens ou mulheres, jovens ou velhos, como o fizeram com os donos da casa e do laranjal, tombados ali perto.

            A indignação de Apolinário e de seus soldados, diante dos inocentes mortos sem defesa se acompanha do sofrimento que é presença constante num campo de batalha. E, igualmente, daquela que advém face aos atos do inimigo, combatido pelas Brigadas Internacionais, deixando clara a posição ideológica de Jorge Amado, na época, 1952-1953, em que escreveu a trilogia.

 

domingo, 12 de novembro de 2006

A guerra da Espanha em Subterrâneos da liberdade: documento



            Subterrâneos da Liberdade se inicia com a instauração do Estado Novo no Brasil num relato que, brevemente, se atém às circunstâncias que o antecederam para se estender naquelas que, então, se originaram. Relato constituído de diversos núcleos narrativos, congregados ao redor do deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, (descendente da velha elite paulista) de Mariana (ativo membro do Partido Comunista), de Manuela (moça pobre e ingênua que se deixa seduzir pelo jovem rico sem caráter), do banqueiro Costa Vale e que, a par das ações que os dinamizam, expressam as suas verdades e seus parâmetros críticos. Nos diálogos, as assertivas da elite dominante e as dos que militam no Partido Comunista a esboçar o momento político do país que a data 30 de outubro de 1937, mencionada em meio à narrativa, enuncia com precisão. Uns e outros não ignoram a ascensão, na Europa, das ideologias totalitárias como tampouco ignoram a Guerra da Espanha, campo de luta onde tais ideologias se digladiam. Em algumas seqüências de Ásperos tempos, primeiro volume de Subterrâneos da Liberdade, aparecem referências ao que acontecia na Espanha: Orestes, o velho comunista, como se define, lamenta não ser mais moço para estar em Madrid ou na Catalunha e lutar pelos republicanos e, indignado, se queixa dos jornais brasileiros que somente noticiam as vitórias de Franco. Enquanto espera a partida do ônibus para Santo André, Jofre, militante comunista compra um jornal que abre para esconder o rosto e lê o editorial em louvor a Franco. Em reunião na casa de Mariana para festejar o seu aniversário, a conversa girava sobre os mais diversos assuntos, da vida difícil cada vez mais cara até uma discussão sobre a Guerra da Espanha, provocada pelo cunhado da aniversariante, admirador de Franco. Suas palavras fizeram levantar uma onda de protestos e até a mãe, sempre pronta a evitar qualquer conflito com o genro, protestara, levantando-se. –Esse Franco é um assassino de operários. Tenho fé que ele ainda acaba numa forca. Deus me ajude!. E num texto do primeiro capítulo de Agonia da Noite (segundo volume da trilogia), o que foi contado por um espanhol que vivia no Brasil para um jornal da Espanha sobre o ocorrido em Santos quando os estivadores se recusaram a carregar o café que seria enviado para Franco, no navio alemão: as primeiras prisões, o início da greve para liberar os presos, o assassinato de Bartolomeu e o ataque da polícia no seu enterro, os soldados carregando o navio, as ameaças aos estivadores presos. E a afirmação de que a greve, embora vencida, era uma prova de que os trabalhadores brasileiros estavam ao lado do povo espanhol e o demonstravam[...]. Páginas antes, o relato desse episódio, na voz do narrador, se faz impregnado de emoção a falar da cidade de Santos, ocupada como uma cidade de país em guerra, conquistada pelas forças inimigas; na incongruência das metralhadoras assentadas nos armazéns do porto, nas entradas dos bairros operários; a pergunta: contra quais soldados se lançavam eles? Pergunta que irá originar outras, fortemente marcadas pelo sarcasmo também presente na enumeração que faz o comandante da cidade, daqueles que não são os inimigos do país. E, novamente, a indagação: contra quem conduz o coronel as suas armas, contra quem comanda os seus soldados. A reposta agora, reafirma a crença nos princípios socialistas, expressa a indignação diante da violência do exército contra seu próprio povo. Uma crônica que não é diferente daquela que foi relatada no jornal espanhol mas à qual se acrescentam fortes traços conferidos pelo julgamento de valor frente à ação bélica que pretende castigar aqueles que se recusam a carregar o café roubado ao povo para ser oferecido a um assassino de poetas e operários.

            Jorge Amado, na sua realidade ficcional que documenta e acusa não se exime de expressar os sentimentos que o norteiam, mas, por apaixonado e maniqueísta que seja o seu relato sobre a greve dos portuários de Santos e da repressão por eles sofrida, ele não disse inverdades, não se afastou da realidade dos fatos.

domingo, 5 de novembro de 2006

A mulher asiática


            Ele foi entregue no porto a um sujeito (amigo de Alberto Ponsard), sujeito fino (capitalista ou coisa que o valha) que também seguia. A seu lado, no cais, estava uma mulher. Mas de certo não era a mulher dele. Embarcava também. Alberto Ponsard recomendava que fosse tratado com carinho. O que, de fato, acontece. A mulher (morena e um tanto baixa, meio mongolóide – tinha um ar oriental, asiático) dizia ter prática em viajar e, ao se aproximar a hora da primeira refeição a bordo, faz questão de ir vê-lo na segunda classe. Ao voltar, já havia decidido que ele deveria comer na primeira classe e insiste com o capitalista, que se mostrava indeciso, para que isso acontecesse.

–Você está na obrigação de pedir ao comissário que ele venha comer aqui em cima. Tal foi feito, mediante negociações, das quais constava, não somente um aporte em dinheiro como traje adequado a sua nova classe, solução dada pelo capitalista que viajava com muita roupa. Mais tarde, já informada que ele estivera preso, a mulher conclui –Ora, o pobre... e continua a se ocupar dele. Leva-o para almoçar em Santos quando ela e o capitalista desembarcaram e, também, para São Paulo onde, foram tomar chá e ao cinema. E onde o hospedaram junto com eles na casa dessa parenta, Dona Josefina, que tinha uma bela casa e os receberia com prazer. Ainda que a surdez a impedisse de ouvir o que se passava a seu redor, passou a manhã a contar ao Cati a história da filha, loira e inteligente que havia morrido criança. Depois, pela mulher asiática, sabe-se que Dona Josefina se encantara com ele, certamente porque a ouvira calado. No retorno a Santos, para embarcar com destino a Florianópolis, a asiática, outra vez, se interessa por ele quanto à passagem de navio, preocupando-se quanto ao fato de que ele seja louco ou não. Mas, ele já encontrara outro protetor, o médico de bordo, que por sua vez o irá cuidar. Na escala em Paranaguá, desembarcam para comer os camarões de que todos falavam a bordo. Quando o navio torna a zarpar, ficaram em terra a mulher de cara mongólica e seu companheiro. Nem dela, nem dele, foram dados a conhecer os nomes. São referidos como o sujeito, o homem, o amigo, o companheiro, o indivíduo; como a mulher, a companheira, sua companheira de viagem, mulher mongólica, a asiática, a mulher de cara mongólica, a sujeita. Tampouco, a não ser esse traço fisionômico asiático da mulher e a referência a seus quadris muito proporcionados e ser, aos olhos do companheiro de viagem, ágil e bem feita, não constam muitas outras informações sobre ela.

            Sobre o capitalista, menos ainda: que na breve travessia até Santos, procurava fazer uma viagem de comodidade o que era, também, o intuito da mulher. Seguiam naquele navio, considerado grande, porque não haviam conseguido lugar num dos verdadeiros paquetes que demandavam Buenos Aires. Ele opina sobre a qualidade do navio em que viajariam, essas gaiolas já estão mais confortáveis. E ela garante que irão se conformar com isso. Viajando juntos e juntos tomando decisões – usam, inclusive o pronome nós – também estão de acordo quando aceitam se encarregar do Cati: –Mas não há dúvida, afirma, o capitalista, lembrando – o que é contado pelo narrador – que já cuidara alguma coisa, numa viagem de trem: era um casal de galgos que seguiam para uma exposição. É, porém, principalmente, a mulher que, sentindo pena do Cati, além de cuidá-lo no navio e se ocupar dele durante a escala em São Paulo, providenciando, inclusive, um agasalho para que enfrente o chuvisqueiro frio da cidade, igualmente, se interessa pela continuação de sua viagem.

            Essa viagem que ele iniciara em Porto Alegre, conduzido por Norberto, em direção ao litoral e depois, ao norte, quando já ambos presos foram levados sem que tivesse sido precisado o motivo da prisão. Liberados, Norberto providencia a sua volta para o Rio Grande do Sul. Responsável que fora por essa ida ao Rio de Janeiro e pelas, nem sempre, agradáveis peripécias ocorridas durante a viagem, posto em liberdade, conseguira, também livrar o Cati da prisão e disso resultando ter que se haver com suas despesas. Continua se estabelecendo, então, essa corrente de solidariedade em torno do Cati. Como as demais mulheres que dele se apiedaram , a asiática é um de seus elos: um personagem sem nome e cujo perfil é apenas esboçado que, ao se erigir em mulher liberada –à margem das situações femininas usuais da sociedade da época em que foi concebido o romance –, possui uma função que vai além de, simplesmente, fazer fluir a narrativa. Sensível e bondosa, é um dos personagens, da ampla galeria de tipos de O Louco do Cati (Editora Globo, 1942), não somente luminoso, mas, principalmente, revelador de um Dyonélio Machado capaz de entender um universo feminino e valorizá-lo ainda que o seu viver se faça à revelia dos preceitos estabelecidos.