No
ano 2002, comemorando os cem anos de Os Sertões, a publicação de O
clarim e a oração: cem anos de Os Sertões (São Paulo, Geração
Editorial), organizado por Reinaldo de Fernandes, uma alentada obra de quase
seiscentas páginas, ilustrada pelo artista plástico baiano, T. Gaudenzi.
Dividida em partes que reúnem trabalhos agrupados sob distintas rubricas –
Jornalistas e escritores, Poemas sobre Euclides da Cunha, Os Sertões, A crítica
literária e Entrevistas com moradores de Canudos e região – é uma obra que, nas
suas diversas abordagens, nem sempre trata, efetivamente, do texto de Euclides
da Cunha. Há estudos que lembram paralelos biográficos (a morte de Euclides da
Cunha e a do Ministro do Exército que no
desfile das tropas finalmente vitoriosas
foi morto por um soldado enlouquecido ou a morte de Euclides da Cunha e a de
Antonio Conselheiro); aquele que refaz a trajetória, “o processo” editorial de Os
Sertões; o que tem por objetivo, rasteando as marcas de leitura em Euclides
da Cunha, situar Os Sertões como obra literária ou histórica; a que
formula o destino de Euclides da Cunha: estava
fadado a escrever Os Sertões. Ainda, o trabalho que,
exaustivo segue, ao longo do tempo e de autores, a palavra sertão; o que expõe,
veemente, os desacertos ideológicos de Euclides da Cunha. Em geral, se trata de
matéria laudatória, poucas vezes, pautada por dúvidas e que, frequentemente,
privilegia divagações no melhor estilo acadêmico do Continente: essa conhecida
e como que inevitável tendência para mostrar erudição. Erudição que só parece
ser aceitável se tiver referência a autores e a obras do hemisfério norte ainda
que a sua relação com o assunto estudado esteja distante, como é o caso de
Emile Zola com seu J’accuse, Primo Levi com seu É isto um homem?,
Josepf Conrad com seu Coração em chamas; ou, que,ainda, não se
justifiquem como as comparações entre a obra jornalística de Gabriel García
Márquez e a de Euclides da Cunha. A tais opções, se acrescem, outras, não menos
curiosas. Por exemplo, dar a referência de uma obra de Ítalo Calvino, da qual
foi citada uma frase, e na mesma página, mencionar Darcy Ribero, cuja asserção,
mesmo aparecendo entre aspas, não foi referenciada; transcrever longos textos
em língua estrangeira sem a sua respectiva tradução para o português;
permitir-se enunciar conceitos tão simplórios que induzem a concluir não estar
sendo o leitor levado muito a sério como o demonstra a seqüência que trata da
relação entre Literatura e Jornalismo: Aparentemente
[jornalismo e literatura] são coisas diferentes, a começar pelo veículo. Livro
é uma publicação de certo volume, capaz de ficar de pé numa prateleira, onde
sobreviverá mesmo empoeirado, por muitos anos. Jornal é descartável – nada mais velho que o jornal de ontem [...].
Como exceção, por trabalhar as relações entre uma obra brasileira e uma obra
hispano-americana, o estudo de Rinaldo de Fernandes “Os Sertões
na leitura de Mario Vargas Llosa: quatro personagens”. Um estudo inusual no
panorama da critica literária brasileira que não se detém, a não ser que façam
sucesso na Europa e nos Estados Unidos, em obras latino-americanas; como,
também, inusual que um escritor latino-americano trate, na sua ficção, de um
tema brasileiro como o fez Vargas Llosa em La guerra del fin de mundo.
Rinaldo de Fernandes sob a ótica de um literato pois, além de contista (O
caçador, 1997 e O perfume de Roberta, 2005) é professor de Teoria da
Literatura da Universidade Federal da Paraíba, analisa quatro personagens
históricos com o objetivo de caracterizar-lhes a visão de mundo (que é sabido,
não irá ser muito diferente daquela de certos segmentos do Continente) e aflora
algumas técnicas ficcionais do escritor peruano num trabalho que enriquece O
clarim e a oração: cem anos de Os Sertões. Volume que pelo
mérito da maioria de seus textos será, sem dúvida, referência para novos
trabalhos sobre esse grande autor que foi Euclides da Cunha.
domingo, 24 de setembro de 2006
domingo, 17 de setembro de 2006
Todas esas mortes
Memorial
de Isla Negra se divide em cinco
partes (cinco volumes como as define o Poeta) e na primeira, “Donde nace la
lluvia”, procura fixar, em busca do reencontro e numa evocação que o vazio das
ausências torna profundamente dolorido, três figuras: a da mãe, cujo rosto se
desvaneceu e lhe ficou desconhecido, roubado pela morte prematura; a da mamadre
(quem o criou e nunca foi, por ele, chamada de madrasta) que, lavando,
passando, semeando, costurando, cozinhando, ao vê-lo criado, partiu no pequeno esquife / onde pela primeira vez ficou ociosa / sob
a dura chuva de Temuco; e do pai, o pai brusco, ferroviário que volta do
trabalho, recriminando em voz alta, sacudindo as tábuas da mesa, bebendo com os
amigos. O pai, chamado José del Carmen Reyes, que um dia com mais chuva que outros dias[...] subiu no trem da mortee
não voltou.
Nestes
três poemas, “Nacimiento”, “La mamadre”, “El padre”, Pablo Neruda inicia, sob a
égide da morte, o fio biográfico que irá conduzir suas lembranças, também,
outras vezes, encadeadas aos desígnios do inevitável. No poema “Locos amigos”
fala desse vazio que ficou no lugar de Rojas Giménez, o amigo extraviado, aquele que deveria dar lições à primavera, motivo da ode
que lhe dedicou, ao saber, em Barcelona, que havia morrido. Recorda a sua
delicadeza, a sua ternura errante, a sua fragilidade, o que dele recebeu e esse
partir inesperado como se o vinho o tivesse levado embora. Também, retorna à
figura de outros amigos, Federico García Lorca e Miguel Hernández, no poema
“Los muertos”. Pertence, como outros que dizem de sua experiência na Guerra
Civil espanhola, ao terceiro volume, “Fuego cruel”, e expressa a grande dor que
sentiu com suas morte e a indignação diante do suplício infligido a muitos
outros feridos, / crucificados / até na
lembrança / com a morte espanhola.
Dois
anos depois da publicação de Memorial de Isla Negra, proferiu, na
Biblioteca Nacional de Santiago, uma conferência na qual diz ter perseguido,
nos versos desse livro, a expressão
venturosa ou sombria de cada dia e que seu relato se dispersa e volta a se
unir, acurralado por fatos de sua vida e pela
natureza que o continua chamando com todas as suas inumeráveis vozes. Premissa já presente no poema “Aquellas vidas”
do volume, “La luna en el labirinto”, ao confessar que não lhe era possível,
somente, falar de si pois, nesse tecer Não
somente conta o fio / mas o ar que
escapa das redes. Então, fala dos que amam e dos que morrem de amor e do
que presenciou, uma tarde, na Índia: o ritual fúnebre nas margens do rio onde
foi consumido pelo fogo o corpo da mulher: e
não sei se era a alma ou era a fumaça / o que do sarcófago saía / até que não
restou mulher nem fogo / nem ataúde, nem cinza: já era tarde / e só a noite e
água e sombra e rio / ali permaneceram na morte. Fala de
animais porque não pode esquecer aquele que foi sacrificado quando ele era
menino e cujo grito ainda ressoa na distância
aterradora. Fala dos peixes porque lhe persiste a lembrança dos que azuis, peixes de puro âmbar amarelo, peixes
de luz violeta e pele fosfórica,
no Ceilão, morriam esvaindo-se no fio da
pálida faca mercenária.
Com
seus olhos de humano, não pode o Poeta enxergar depois de morto. Tampouco pode
cantar, como queria, ao deixar de existir. O que viu, no entanto, e cantou,
ainda que tenham sido todas essas mortes,
adquiriu vida na sua expressão luminosa.
Só a morte permaneceu calada
domingo, 10 de setembro de 2006
Mais do que perguntar
Longas
são as perguntas de Carlos Droguett, definidas como temas em forma de perguntas que ele, em número de doze, mas às
quais acrescenta muitas outras – podem
ser mais, podem ser menos – como
previne ao enviá-las para o amigo. Na primeira, quer saber se a juventude de
Salvador Allende já anunciava essa passagem de médico assistencial para a cabeceira de um doente mais doente, mais
numeroso, mais desastroso, um povo inteiro, um país longo e esquelético, uma
sociedade marcada e tarada, um organismo social desintegrando-se,
apodrecendo-se. Em outra, se ele deixava prever, ao ser ministro da saúde
do governo de Pedro Aguirre Cerda, no seu trabalho para aliviar a miséria e
erradicar as doenças oriundas dos males da pobreza, o Presidente que proclamava
e preconizava as mudanças na sociedade, efetuadas dentro da lei. Respostas que
o convívio de estreita amizade e durante trinta anos de Rafael Agustín Gumucio
com Salvador Allende, torna particulares pois confessa lhe resultar difícil
emitir juízos que se atenham a um ou a outro momento de sua vida familiar ou
política. Assim, jovem ou maduro, em qualquer escalão de governo onde
estivesse, Salvador Allende se constituiu, para ele, o homem insubornável,
respeitador de seus compromissos.
Na
verdade, Salvador Allende não pode ser compreendido longe do povo que o elegeu do qual se despede no dia 11 de setembro e da classe que o destruiu . Carlos Droguett a
nomeia aristocracia e com a ressalva
de que, além das pouquíssimas exceções, nada mais é do que uma classe covarde, ladra, extorsionária, aventureira,
que não mata, que não se atreve a matar, que contrata assassinos. Por sua
vez, Rafael Agustín Gumucio, nessa aristocracia
chilena, só vê o amor desenfreado
pelo dinheiro, uma arrogante
incultura e, sobretudo, o poder que, representada pela direita, exerce no
país.
Então,
Carlos Droguett e Rafael Agustín Gumucio falam de algo sobejamente conhecido,
parte desse lugar comum, inscrito na razão do mais forte, a permitir que as
verdades oscilem conforme o imprescindível interesse daqueles que as enunciam.
Isto é, a imoralidade congênita da direita, na expressão de Rafael Agustín
Gumucio. Razão do mais forte que reinou sempre e , reina, soberana, nos países
do Continente ainda que se abriguem (e ou querem fazer crer) sob a égide da
democracia. Daí, impossível não serem mencionadas a dívida exterior, a venda do
patrimônio nacional, a fuga do capital para as contas bancárias suíças, a
manipulação da doutrina de segurança nacional inspirada pelos norte-americanos
para lhes facilitar o contínuo saque efetuado pelo seu imperialismo.
De um e de outro, são palavras ainda
emocionadas, ainda indignadas pelo assassinato de Salvador Allende. E a
vivência sofrida dessa perda e do que então, a partir dela se desencadeou no
Chile, se torna uma expressão que, interrogando e respondendo traz em si um
valor documental e polêmico que é imprescindível para uma aproximação hegemônica
da verdade – no Continente, é quase uma utopia – sobre o que ocorreu em
Santiago do Chile no dia 11 de setembro de 1973.
domingo, 3 de setembro de 2006
As benfeitoras
Também D. Amélia, a dona da pensão do Rio de Janeiro,
e sua filha Nanci irão demonstrar espontânea disposição em ajudá-lo.
Ao
sair da prisão, sem recursos, ele morou, com
Norberto, seu companheiro de viagem, escondido na casa de pensão.
Dormiam no quarto de um pensionista de quem ficaram amigos e para não serem
descobertos usavam de estratagemas: subiam os degraus da escada, ao mesmo
tempo, com passos simultâneos; pensando que a dona já ficara desconfiada,
dormiam durante o dia pois as visitas não eram proibidas. Ao precisar da ajuda do pensionista para
resolver um delicado assunto de família
- a ida à delegacia no intuito de
responsabilizar o hóspede que seduzira sua filha - D. Amélia aceitou-lhes a
presença. Até sugeriu – achando uma
crueldade que ele fosse abandonado em São Paulo – que ficasse mais tempo no Rio
de Janeiro, pois sua passagem poderia ser vendida ali na sua casa mesmo, uma
vez que todos os dias havia pessoas que viajavam para São Paulo. Quando Norberto lhe consegue uma passagem marítima, D. Amélia
arranja para ele uma pequena mala e todos da pensão procuram, sem êxito, persuadi-lo porque não queria viajar de navio. Então, Nanci, com muito jeito, o convence a partir.
Raro na trajetória do Cati, desde o
início de sua viagem em Porto Alegre até a sua volta para Quaraí, esse momento
em que ele decide por si mesmo, embora submisso à entonação carinhosa da voz
feminina que o anima ( -Meu benzinho vai
embarcar, sim, Ele vai, sim.) e o torna confiante, para expressar, ainda que num
sussurro, o grande medo que sente de que o levem para o Cati, (lugar que lhe
ficou gravado, desde criança, como lugar
de prisões e de mortes).
Mais do que
piedade, como ocorre com D. Rita, D. Miroca, D. Amélia, há em Nanci
um enternecimento, no trato com o Cati que, diante de seu olhar
de uma pureza de criança, só faz aumentar e lhe completa o perfil de mulher
amorosa. Pois além da função que lhe é atribuída, como às outras, no relato -
provocar mudanças no percurso do Cati e na sua história – possui, também, como vítima dos
preconceituosos usos e costumes ( e leis) de sua época, uma função
denunciatória que as qualidades de um narrador da estirpe de Dyonélio
Machado, fazem ser de admirável sutileza
e nem por isso menos contundente.
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