domingo, 24 de setembro de 2006

Laços no Continente



            No ano 2002, comemorando os cem anos de Os Sertões, a publicação de O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões (São Paulo, Geração Editorial), organizado por Reinaldo de Fernandes, uma alentada obra de quase seiscentas páginas, ilustrada pelo artista plástico baiano, T. Gaudenzi. Dividida em partes que reúnem trabalhos agrupados sob distintas rubricas – Jornalistas e escritores, Poemas sobre Euclides da Cunha, Os Sertões, A crítica literária e Entrevistas com moradores de Canudos e região – é uma obra que, nas suas diversas abordagens, nem sempre trata, efetivamente, do texto de Euclides da Cunha. Há estudos que lembram paralelos biográficos (a morte de Euclides da Cunha e a do Ministro do Exército que no desfile das tropas finalmente vitoriosas foi morto por um soldado enlouquecido ou a morte de Euclides da Cunha e a de Antonio Conselheiro); aquele que refaz a trajetória, “o processo” editorial de Os Sertões; o que tem por objetivo, rasteando as marcas de leitura em Euclides da Cunha, situar Os Sertões como obra literária ou histórica; a que formula o destino de Euclides da Cunha: estava fadado a escrever Os Sertões. Ainda, o trabalho que, exaustivo segue, ao longo do tempo e de autores, a palavra sertão; o que expõe, veemente, os desacertos ideológicos de Euclides da Cunha. Em geral, se trata de matéria laudatória, poucas vezes, pautada por dúvidas e que, frequentemente, privilegia divagações no melhor estilo acadêmico do Continente: essa conhecida e como que inevitável tendência para mostrar erudição. Erudição que só parece ser aceitável se tiver referência a autores e a obras do hemisfério norte ainda que a sua relação com o assunto estudado esteja distante, como é o caso de Emile Zola com seu J’accuse, Primo Levi com seu É isto um homem?, Josepf Conrad com seu Coração em chamas; ou, que,ainda, não se justifiquem como as comparações entre a obra jornalística de Gabriel García Márquez e a de Euclides da Cunha. A tais opções, se acrescem, outras, não menos curiosas. Por exemplo, dar a referência de uma obra de Ítalo Calvino, da qual foi citada uma frase, e na mesma página, mencionar Darcy Ribero, cuja asserção, mesmo aparecendo entre aspas, não foi referenciada; transcrever longos textos em língua estrangeira sem a sua respectiva tradução para o português; permitir-se enunciar conceitos tão simplórios que induzem a concluir não estar sendo o leitor levado muito a sério como o demonstra a seqüência que trata da relação entre Literatura e Jornalismo: Aparentemente [jornalismo e literatura] são coisas diferentes, a começar pelo veículo. Livro é uma publicação de certo volume, capaz de ficar de pé numa prateleira, onde sobreviverá mesmo empoeirado, por muitos anos. Jornal é descartável – nada mais velho que o jornal de ontem [...]. Como exceção, por trabalhar as relações entre uma obra brasileira e uma obra hispano-americana, o estudo de Rinaldo de Fernandes “Os Sertões na leitura de Mario Vargas Llosa: quatro personagens”. Um estudo inusual no panorama da critica literária brasileira que não se detém, a não ser que façam sucesso na Europa e nos Estados Unidos, em obras latino-americanas; como, também, inusual que um escritor latino-americano trate, na sua ficção, de um tema brasileiro como o fez Vargas Llosa em La guerra del fin de mundo. Rinaldo de Fernandes sob a ótica de um literato pois, além de contista (O caçador, 1997 e O perfume de Roberta, 2005) é professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal da Paraíba, analisa quatro personagens históricos com o objetivo de caracterizar-lhes a visão de mundo (que é sabido, não irá ser muito diferente daquela de certos segmentos do Continente) e aflora algumas técnicas ficcionais do escritor peruano num trabalho que enriquece O clarim e a oração: cem anos de Os Sertões. Volume que pelo mérito da maioria de seus textos será, sem dúvida, referência para novos trabalhos sobre esse grande autor que foi Euclides da Cunha.

domingo, 17 de setembro de 2006

Todas esas mortes

             Se parece impossível que alguém possa entender a própria morte, Pablo Neruda teria, ainda, razões de sobra para não o ter conseguido: morreu no sofrimento de ver sucumbirem seus últimos sonhos na desgraça do dia 11 de setembro de 1973, em Santiago do Chile. Velado em meio ao caos de sua casa destruída, em meio à angústia daqueles que, além do sentimento de perda e de revolta, sabiam que estavam correndo sério risco simplesmente por estarem ali. Assim, não foi lembrado o que pedira: Não fechem meus olhos / mesmo depois de morto, / precisarei deles ainda para aprender, / para olhar e compreender a minha morte. Estes versos pertencem ao poema “La verdad”, do livro Memorial de Isla negra, publicado, em 1962. Como o fizera alguns anos antes, em alguns versos de Canto General, aos cinqüenta e oito anos, Pablo Neruda obedece ao impulso de escrever em verso, como o fazia em prosa para as memórias publicados pelo O CRUZEIRO Internacional,  a sua biografia.

            Memorial de Isla Negra  se divide em cinco partes (cinco volumes como as define o Poeta) e na primeira, “Donde nace la lluvia”, procura fixar, em busca do reencontro e numa evocação que o vazio das ausências torna profundamente dolorido, três figuras: a da mãe, cujo rosto se desvaneceu e lhe ficou desconhecido, roubado pela morte prematura; a da mamadre (quem o criou e nunca foi, por ele, chamada de madrasta) que, lavando, passando, semeando, costurando, cozinhando, ao vê-lo criado, partiu no pequeno esquife /  onde pela primeira vez ficou ociosa / sob a dura chuva de Temuco; e do pai, o pai brusco, ferroviário que volta do trabalho, recriminando em voz alta, sacudindo as tábuas da mesa, bebendo com os amigos. O pai, chamado José del Carmen Reyes, que um dia com mais chuva que outros dias[...] subiu no trem da mortee não voltou.

            Nestes três poemas, “Nacimiento”, “La mamadre”, “El padre”, Pablo Neruda inicia, sob a égide da morte, o fio biográfico que irá conduzir suas lembranças, também, outras vezes, encadeadas aos desígnios do inevitável. No poema “Locos amigos” fala desse vazio que ficou no lugar de Rojas Giménez, o amigo extraviado, aquele que deveria dar lições à primavera, motivo da ode que lhe dedicou, ao saber, em Barcelona, que havia morrido. Recorda a sua delicadeza, a sua ternura errante, a sua fragilidade, o que dele recebeu e esse partir inesperado como se o vinho o tivesse levado embora. Também, retorna à figura de outros amigos, Federico García Lorca e Miguel Hernández, no poema “Los muertos”. Pertence, como outros que dizem de sua experiência na Guerra Civil espanhola, ao terceiro volume, “Fuego cruel”, e expressa a grande dor que sentiu com suas morte e a indignação diante do suplício infligido a muitos outros feridos, / crucificados  / até na lembrança / com a morte espanhola.

            Dois anos depois da publicação de Memorial de Isla Negra, proferiu, na Biblioteca Nacional de Santiago, uma conferência na qual diz ter perseguido, nos versos desse livro, a expressão venturosa ou sombria de cada dia e que seu relato se dispersa e volta a se unir, acurralado por fatos de sua vida e pela natureza que o continua chamando com todas as suas inumeráveis vozes. Premissa já presente no poema “Aquellas vidas” do volume, “La luna en el labirinto”, ao confessar que não lhe era possível, somente, falar de si pois, nesse tecer Não somente conta o fio / mas o ar que escapa das redes. Então, fala dos que amam e dos que morrem de amor e do que presenciou, uma tarde, na Índia: o ritual fúnebre nas margens do rio onde foi consumido pelo fogo o corpo da mulher: e não sei se era a alma ou era a fumaça / o que do sarcófago saía / até que não restou mulher nem fogo / nem ataúde, nem cinza: já era tarde / e só a noite e água e sombra e rio  / ali permaneceram na morte. Fala de animais porque não pode esquecer aquele que foi sacrificado quando ele era menino e cujo grito ainda ressoa na distância aterradora. Fala dos peixes porque lhe persiste a lembrança dos que azuis, peixes de puro âmbar amarelo, peixes de luz violeta e pele fosfórica, no Ceilão, morriam esvaindo-se no fio da pálida faca mercenária.

            Com seus olhos de humano, não pode o Poeta enxergar depois de morto. Tampouco pode cantar, como queria, ao deixar de existir. O que viu, no entanto, e cantou, ainda que tenham sido todas essas mortes, adquiriu vida na sua expressão luminosa. 

         Só a morte permaneceu calada

domingo, 10 de setembro de 2006

Mais do que perguntar

             Em setembro de 1983, editado nos Estados Unidos por Ediciones de la Frontera, o vigésimo quinto número de Literatura Chilena, creación y crítica. Homenagem a Salvador Allende, na contracapa, reproduz breves palavras, destacados dos discursos que ele pronunciou em várias oportunidades, inclusive o do dia 11 de setembro de 1973. Entre os textos que lhe são dedicados, o de Carlos Droguett romancista e Rafael Agustín Gumucio, presidente da Unidad Popular. Exilados da ditadura chilena, viviam na Europa e, num de seus encontros, idealizaram um trabalho comum no qual, sem censura, falassem do céu, da terra e do inferno a partir da figura de Salvador Allende que, para eles, significou um eixo magnífico e permanente. O resultado foi “Diálogo sobre Salvador Allende”, uma entrevista onde não há “entrevistador e entrevistado”, mas perguntas que são opiniões e respostas, testemunhos não somente sobre Salvador Allende, mas, também, sobreos fatos que antecederam e tornaram possível o seu assassinato.
            Longas são as perguntas de Carlos Droguett, definidas como temas em forma de perguntas que ele, em número de doze, mas às quais acrescenta muitas outras – podem ser mais, podem ser menos – como previne ao enviá-las para o amigo. Na primeira, quer saber se a juventude de Salvador Allende já anunciava essa passagem de médico assistencial para a cabeceira de um doente mais doente, mais numeroso, mais desastroso, um povo inteiro, um país longo e esquelético, uma sociedade marcada e tarada, um organismo social desintegrando-se, apodrecendo-se. Em outra, se ele deixava prever, ao ser ministro da saúde do governo de Pedro Aguirre Cerda, no seu trabalho para aliviar a miséria e erradicar as doenças oriundas dos males da pobreza, o Presidente que proclamava e preconizava as mudanças na sociedade, efetuadas dentro da lei. Respostas que o convívio de estreita amizade e durante trinta anos de Rafael Agustín Gumucio com Salvador Allende, torna particulares pois confessa lhe resultar difícil emitir juízos que se atenham a um ou a outro momento de sua vida familiar ou política. Assim, jovem ou maduro, em qualquer escalão de governo onde estivesse, Salvador Allende se constituiu, para ele, o homem insubornável, respeitador de seus compromissos.

            Na verdade, Salvador Allende não pode ser compreendido longe do povo que o elegeu  do qual se despede no dia 11 de setembro  e da classe que o destruiu . Carlos Droguett a nomeia aristocracia e com a ressalva de que, além das pouquíssimas exceções, nada mais é do que uma classe covarde, ladra, extorsionária, aventureira, que não mata, que não se atreve a matar, que contrata assassinos. Por sua vez, Rafael Agustín Gumucio, nessa aristocracia chilena, só vê o amor desenfreado pelo dinheiro, uma arrogante incultura e, sobretudo, o poder que, representada pela direita, exerce no país.

            Então, Carlos Droguett e Rafael Agustín Gumucio falam de algo sobejamente conhecido, parte desse lugar comum, inscrito na razão do mais forte, a permitir que as verdades oscilem conforme o imprescindível interesse daqueles que as enunciam. Isto é, a imoralidade congênita da direita, na expressão de Rafael Agustín Gumucio. Razão do mais forte que reinou sempre e , reina, soberana, nos países do Continente ainda que se abriguem (e ou querem fazer crer) sob a égide da democracia. Daí, impossível não serem mencionadas a dívida exterior, a venda do patrimônio nacional, a fuga do capital para as contas bancárias suíças, a manipulação da doutrina de segurança nacional inspirada pelos norte-americanos para lhes facilitar o contínuo saque efetuado pelo seu imperialismo.


             De um e de outro, são palavras ainda emocionadas, ainda indignadas pelo assassinato de Salvador Allende. E a vivência sofrida dessa perda e do que então, a partir dela se desencadeou no Chile, se torna uma expressão que, interrogando e respondendo traz em si um valor documental e polêmico que é imprescindível para uma aproximação hegemônica da verdade – no Continente, é quase uma utopia – sobre o que ocorreu em Santiago do Chile no dia 11 de setembro de 1973.

domingo, 3 de setembro de 2006

As benfeitoras


             Uma vizinha, falando da janela com a D.Miroca, queria saber que dia era aquele. Assim tem início o capítulo “Um pique-nique é muito bom”, de O Louco do Cati. D. Miroca  há muito tempo não olhava a folinha e perguntou para a filha  -Essas crianças sabem mais que a gente. A   menina disse o dia e o mês,  porém, na verdade,  não era exatamente   o quê a vizinha pretendia, tinha uma curiosidade de olhos que quase lacrimejavam e sim, informações sobre o hóspede na casa. Havia chegado em Lages, vindo de Florianópolis  e em direção ao Rio Grande, no caminhão  de seu Geraldo  que o  levara para casa  onde foi recebido como hóspede por sua mulher. Aí ficara, participando da vida cotidiana  da família. D. Miroca  disse  para a vizinha o que julgou ser melhor: que ele era do Rio Grande e que estava de passagem por uns poucos dias. Explicação que lhe orientou  o pedido feito ao marido  de que providenciasse a  partida  do hóspede porque já andava enjoada com aquilo. Isto é, das curiosidades, das desconfianças.  Não pelo Cati, coitado... Ele era bom para as crianças e tirava água do poço, ela argumenta quando a mulher de seu Machadinho insinua que o dinheiro numa casa de hóspedes tinha que estar bem guardado e, principalmente,  por causa desse Cati que tinha um ar tão estranho e que ninguém sabia donde vinha.... E porque falavam, D. Miroca quer que ele vá embora, ainda que sinta pena. Compaixão que expressa na palavra Pobre! para designá-lo. A mesma proferida por D. Rita, a mulher do dono da hospedaria em cujo pátio  ele, e o grupo com o qual viajava, havia pernoitado, logo no início da viagem .Cedo, diante da casa,  mal  divisada na claridade da manhã, e de seu Ricardo,   cabeleira lançada para trás, bigodudo..., ele se assustara e fugira, refugiando-se no mato próximo. Ao saber o que se passara, D. Rita se interessa pela sua história – de onde era, se estava louco há muito tempo, quem  do grupo era seu parente- e, ao saber que nenhum deles o conhecia, que o tinham  encontrado no fim da linha do bonde e que  aceitara ir de passeio com eles até a praia, opina que andar com pessoas desconhecidas se tornava perigoso.  Porém, quando o trazem de volta do mato, cansado e sem forças, empresta um acolchoado velho e um travesseiro para acomodá-lo na carroceria do pequeno caminhão em que viajavam.

Também  D. Amélia, a dona da pensão do Rio de Janeiro, e sua filha Nanci  irão demonstrar  espontânea disposição  em ajudá-lo.

            Ao sair da prisão, sem recursos, ele morou, com  Norberto, seu companheiro de viagem, escondido na casa de pensão. Dormiam no quarto de um pensionista de quem ficaram amigos e para não serem descobertos usavam de estratagemas: subiam os degraus da escada, ao mesmo tempo,  com passos simultâneos;  pensando que a dona já ficara desconfiada, dormiam durante o dia pois as visitas não eram proibidas.  Ao precisar da ajuda do pensionista para resolver um  delicado assunto de família -  a ida à delegacia no intuito de responsabilizar o hóspede que seduzira sua filha - D. Amélia aceitou-lhes a presença. Até sugeriu – achando  uma crueldade que ele fosse abandonado em São Paulo – que ficasse mais tempo no Rio de Janeiro, pois sua passagem poderia ser vendida ali  na sua casa mesmo, uma vez que todos os dias havia pessoas que viajavam para São Paulo.  Quando Norberto lhe  consegue uma passagem marítima, D. Amélia arranja para ele uma pequena mala e todos da pensão  procuram, sem êxito, persuadi-lo porque  não queria viajar de navio. Então,  Nanci, com muito jeito, o convence a partir. Raro  na trajetória do Cati, desde o início de sua viagem em Porto Alegre até a sua volta para Quaraí, esse momento em que ele decide por si mesmo, embora submisso à entonação carinhosa da voz feminina que o anima ( -Meu benzinho vai embarcar, sim, Ele vai, sim.) e o torna confiante, para expressar, ainda que num sussurro, o grande medo que sente de que o levem para o Cati, (lugar que lhe ficou gravado, desde criança,  como lugar de prisões e de mortes).

Mais do que piedade, como ocorre com D. Rita, D. Miroca, D. Amélia,   há em Nanci  um enternecimento, no trato com o Cati que, diante  de seu olhar de uma pureza de criança, só faz aumentar e lhe completa o perfil de mulher amorosa.  Pois além da função que  lhe é atribuída, como às outras,  no relato -  provocar mudanças no percurso do Cati e na sua história –  possui, também, como vítima dos preconceituosos usos e costumes ( e leis) de sua época, uma função denunciatória que as qualidades de um narrador da estirpe de Dyonélio Machado,  fazem ser de admirável sutileza e nem por isso menos contundente.