domingo, 11 de junho de 2006

Troças do cárcere


             Há vinte anos atrás, a MPM Propaganda e a Editora Record publicaram Monteiro Lobato vivo, uma coleção de suas cartas, em grande parte, inéditas. Tratando de sua vida literária, impressões de viagens, preocupações em relação ao ferro e ao petróleo, interesse pelo social e pelo além, de sua experiência na prisão, muito do que elas contêm não perderam a atualidade. Assim, como em A Barca de Gleide, que o revela um brilhante epistológrafo, estas cartas, ademais de concorrerem para que a sua figura, tantas vezes polêmica, seja conhecida de outros ângulos, possuem, nos inúmeros recursos estilísticos que as pontilham, uma singular e espontânea expressividade: símiles e metáforas que remetem ao mundo animal (livros engolidos por inteiro como o avestruz; passou a viver feliz e livre como um passarinho; São Paulo está mais cheio que uma lata de sardinha, o pampeiro da indignação trouxe do sul uma onda de centauros). Adjetivos que atribuem qualidades humanas a noções de tempo e à substantivos abstratos: meses casmurros, excessivamente asmáticos, estúpido e arrepiado domingo, doce analfabetismo ledo e cego. Uso de palavras inexistentes que engenhosamente, ele deriva daquelas dicionarizadas: acacianices, desasnadores, anatolescamente, microscopiar.  

            Porém, é, sobretudo, nas “Cartas de e sobre a prisão”, nono capítulo do livro, que mais se faz presente a vivacidade e a rebeldia que lhe são inerentes.

            No dia 20 de março de 1941, Monteiro Lobato é procurado por dois investigadores de polícia. Apresentam-lhe um mandato de prisão preventiva pelo crime de audaciosa e injustificável irreverência. Por motivos políticos ou pessoais o certo é que o Tribunal de Segurança o condena a seis meses de cadeia.

            Já no segundo dia de prisão, ele escreve a Geraldo Serra, que exercendo atividades jornalísticas e culturais, lhe esteve sempre muito próximo. Pede-lhe que envie as cartas que estavam debaixo do porta-chapeús e que se alguém perguntar por ele, pela sua ilustre pessoa, responda que está ótimo, satisfeitíssimo, na Sala Livre, com um belo jardim para passear à vontade e com ótimos companheiros. Quatro dias depois, escreve a seu amigo, o juiz Paulo de Oliveira Costa a quem pede a libertação de Nelson Mendes Bezerra, um companheiro de prisão. E no dia 6 de maio, torna a escrever-lhe, agora, para agradecer o ter concedido a liberdade condicional que o réu havia pedido. Além dessas, ainda outras duas cartas. Para Benjamim de Garay, que muito auxiliou a divulgar a sua obra na Argentina e para Leonor de Aguiar, cantora de música erudita e, depois, tradutora que dele se tornou amiga. Em todas essas cartas, à parte tratar da publicação de Reinações de Narizinho na Argentina e relatar o resultado de seu julgamento e as conseqüências de sua prisão, a presença da troça que faz de si mesmo e da situação em que se encontra: que está como quer, colhendo o que plantou e a viver num hotelzinho da Avenida Tiradentes, gratuito e muito melhor que muitos daqueles da estação Norte; que na Sala Livre – pitoresco nome dado ao chiqueirinho é onde mora; que já recebeu duzentas e trinta visitas e tanto doce e bolo e coisas gostosas que já engordou. Troça que não impede que nele se mostre esse homem cordial e simples que não apenas se relaciona facilmente com os companheiros de prisão como tenta, ao dialogar com eles, transmitir-lhes um outro jeito de pensar e que, distribuindo dezenas de seus livros, lhes oferece poder devanear no sítio de D.Benta. Ou, esse homem lúcido que percebe não haver nada mais absurdo do que o poder dado a um homem de condenar outros a uma coisa que ele não conhece: a privação da liberdade. E que sabe ser o patriota um ser sumamente sábio – vive da pátria; em vez de dar-lhe coisas, tira-as mas tira-as à força de retórica. Quando morrer, os necrológios choram o desaparecimento de um servidor da Pátria. Eu sei como a servem: roendo-a, devorando-lhe as carnes, vivendo às custas dela a vida inteira. Acham jeito de, mesmo depois de mortos, prosseguirem no serviço da Pátria; os montepios e pensões às viúvas e filhas por meio dos quais eles prolongam o devoramento por anos e anos depois de mortos.

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