Em
16 de janeiro de 1962, a revista O CRUZEIRO Internacional, em caráter de primícia e com absoluta exclusividade inicia a
publicação das memórias de Pablo Neruda. Num breve texto introdutório, o
cuidado em informar aos leitores que essas memórias foram escritas, a pedido, o
que representou um ano e meio de esforços junto ao Poeta. Em meados de 1960,
Pablo Neruda estava em Paris de onde regressou para o Chile em fevereiro do ano
seguinte. No capítulo quinto, ao todo foram dez, ele diz que escreve diante do
mar, na sua casa de Valparaíso, no ano de 1961. No último capítulo, publicado
em primeiro de junho do ano seguinte, lembra a figura de poetas da América e, entre
eles, a de César Vallejo: era sério e
puro. Morreu em Paris. Morreu do ar sujo de Paris, do rio sujo de onde foram
tirados tantos mortos. O poeta peruano morrera em 1938 e Pablo Neruda o
conhecera dez anos antes ao chegar pela primeira vez na Europa. E o
reencontrara quando já não era mais cônsul chileno na Espanha e trabalhava na
preparação, em Paris, do congresso de escritores antifascistas que iria se
realizar em Madrid. Depois, em várias oportunidades, Pablo Neruda esteve na
França e, não poucas vezes, a menciona nas suas memórias como, também, seus
amigos franceses e episódios inusitados. Mas, na verdade, não deixa de ser
curiosa essa referência aos mortos do Sena. Talvez, simplesmente, remeta aos
suicidas que escolhem morrer se afogando no rio que atravessa Paris. Porque,
parece difícil (porquanto não impossível) que tivessem chegado ao Continente as
informações sobre o massacre do dia 17 de outubro de 1961, ocorrido em Paris
quando o Poeta estava a escrever as suas memórias para O CRUZEIRO Internacional.
Nesse dia, os Argelinos de França, principal base financeira da FLN (Frente de
Liberação Nacional) realizaram um protesto pacífico, no qual estava
absolutamente proibido aos manifestantes o porte de qualquer tipo de arma.
Mesmo assim, o protesto foi violentamente reprimido pela polícia que jogou
manifestantes no Sena, numa ação cujo número de vítimas continua sendo assunto
de debate: várias dezenas ou mais de duzentos, segundo estimativas, pois a
consulta aos arquivos, dificultada por leis cerceadoras, se constitui um
obstáculo ao trabalho dos historiadores tanto quanto o silêncio da imprensa e a
amnésia do Estado. Porque o acesso
aos arquivos nacionais franceses, com freqüência, é negado. Também, amiúde,
documentos essenciais para deslindar fatos ocorridos, no caso o de 17 de
outubro de 1961, desapareceram. Entre outros, o relatório enviado ao presidente
da República, pelo Chefe de Polícia que sustentava terem sido dois ou três o
número de mortos, contrariando documentos do Ministério da Justiça que referem
terem sido entre sessenta e oitenta os que morreram na manifestação.
Em
1961, segundo Claude Liauzu, professor de Paris VII, houve o silêncio oficial e
houve o silêncio da imprensa. E ele questiona como foi possível que as forças
da ordem, pretensamente apanhadas de surpresa (embora a manifestação estivesse
programada desde o dia 10 de outubro e por uma comunidade cuidadosamente
vigiada), tivessem prendido quinze mil dos trinta mil manifestantes. Diante da
gravidade dos fatos e do número de pessoas envolvidas é evidente que do que
ocorreu, algo, tenha conseguido – ou à boca pequena ou pela voz de entidades
políticas – ultrapassar as barreiras oriundas dos pactos de silêncio, imposto
pelos que decidem o que é bom para o país, o que pode ou não ser dado a
conhecer.
E se a
breve seqüência de Pablo Neruda sobre o Sena, o rio sujo de onde foram tirados tantos
mortos, faz pensar no rio onde pessoas se lançam para morrer, ela tampouco
deixa esquecer que, em suas águas, inocentes foram jogados, no dia 17 de
outubro de 1961, em nome da lei ou da soberania nacional.





