domingo, 25 de junho de 2006

Os afogados do Sena


            Em 16 de janeiro de 1962, a revista O CRUZEIRO Internacional, em caráter de primícia e com absoluta exclusividade inicia a publicação das memórias de Pablo Neruda. Num breve texto introdutório, o cuidado em informar aos leitores que essas memórias foram escritas, a pedido, o que representou um ano e meio de esforços junto ao Poeta. Em meados de 1960, Pablo Neruda estava em Paris de onde regressou para o Chile em fevereiro do ano seguinte. No capítulo quinto, ao todo foram dez, ele diz que escreve diante do mar, na sua casa de Valparaíso, no ano de 1961. No último capítulo, publicado em primeiro de junho do ano seguinte, lembra a figura de poetas da América e, entre eles, a de César Vallejo: era sério e puro. Morreu em Paris. Morreu do ar sujo de Paris, do rio sujo de onde foram tirados tantos mortos. O poeta peruano morrera em 1938 e Pablo Neruda o conhecera dez anos antes ao chegar pela primeira vez na Europa. E o reencontrara quando já não era mais cônsul chileno na Espanha e trabalhava na preparação, em Paris, do congresso de escritores antifascistas que iria se realizar em Madrid. Depois, em várias oportunidades, Pablo Neruda esteve na França e, não poucas vezes, a menciona nas suas memórias como, também, seus amigos franceses e episódios inusitados. Mas, na verdade, não deixa de ser curiosa essa referência aos mortos do Sena. Talvez, simplesmente, remeta aos suicidas que escolhem morrer se afogando no rio que atravessa Paris. Porque, parece difícil (porquanto não impossível) que tivessem chegado ao Continente as informações sobre o massacre do dia 17 de outubro de 1961, ocorrido em Paris quando o Poeta estava a escrever as suas memórias para O CRUZEIRO Internacional. Nesse dia, os Argelinos de França, principal base financeira da FLN (Frente de Liberação Nacional) realizaram um protesto pacífico, no qual estava absolutamente proibido aos manifestantes o porte de qualquer tipo de arma. Mesmo assim, o protesto foi violentamente reprimido pela polícia que jogou manifestantes no Sena, numa ação cujo número de vítimas continua sendo assunto de debate: várias dezenas ou mais de duzentos, segundo estimativas, pois a consulta aos arquivos, dificultada por leis cerceadoras, se constitui um obstáculo ao trabalho dos historiadores tanto quanto o silêncio da imprensa e a amnésia do Estado. Porque o acesso aos arquivos nacionais franceses, com freqüência, é negado. Também, amiúde, documentos essenciais para deslindar fatos ocorridos, no caso o de 17 de outubro de 1961, desapareceram. Entre outros, o relatório enviado ao presidente da República, pelo Chefe de Polícia que sustentava terem sido dois ou três o número de mortos, contrariando documentos do Ministério da Justiça que referem terem sido entre sessenta e oitenta os que morreram na manifestação.



            Em 1961, segundo Claude Liauzu, professor de Paris VII, houve o silêncio oficial e houve o silêncio da imprensa. E ele questiona como foi possível que as forças da ordem, pretensamente apanhadas de surpresa (embora a manifestação estivesse programada desde o dia 10 de outubro e por uma comunidade cuidadosamente vigiada), tivessem prendido quinze mil dos trinta mil manifestantes. Diante da gravidade dos fatos e do número de pessoas envolvidas é evidente que do que ocorreu, algo, tenha conseguido – ou à boca pequena ou pela voz de entidades políticas – ultrapassar as barreiras oriundas dos pactos de silêncio, imposto pelos que decidem o que é bom para o país, o que pode ou não ser dado a conhecer.

            E se a breve seqüência de Pablo Neruda sobre o Sena, o rio sujo de onde foram tirados tantos mortos, faz pensar no rio onde pessoas se lançam para morrer, ela tampouco deixa esquecer que, em suas águas, inocentes foram jogados, no dia 17 de outubro de 1961, em nome da lei ou da soberania nacional.

domingo, 18 de junho de 2006

Notícias de outrso tempos


            Como soe acontecer com tantos estudiosos e pesquisadores do Continente que arrostam dificuldades várias e não poucos entraves financeiros para realizar seus trabalhos e, nem sempre, dispõem de recursos para divulgá-los, Getulio Schilling é conduzido por uma persistência de sonhador. Começou a publicar aos vinte e dois anos e a esse poema em prosa, Belleza Dolorida, seguiu-se uma vasta produção. Arroladas por ele, quatro anos antes de morrer, foram quarenta e cinco obras entre ensaios, biografias, contos, poemas, peças teatrais, romances. No ano passado, sob os auspícios da Câmara dos Vereadores de Santa Maria, foi publicado A arte fotográfica e o teatro em Santa Maria, uma cuidadosa pesquisa que acompanha a chegada da fotografia na cidade e registra a sua vida teatral.

            O primeiro texto se inicia com uma breve história da fotografia em que faz menção aos precursores e afirma ser o ano de 1839 aquele em que a fotografia foi inventada. Constata que, para chegar às Américas, ela precisou de muitos anos. Em Santa Maria, primeiramente pela arte dos fotógrafos ambulantes; depois, pelos que montaram seus ateliês na cidade. Uma presença, nem sempre duradoura, registrada em anúncios em que eram oferecidos os serviços, informando o tipo de fotografia realizada, o preço, os horários de atendimento e, por vezes, as condições de trabalho: tirava retrato em qualquer tempo, Tira retratos todos os dias[...] menos em dia de chuva ou vento muito forte, não tira retrato de mortos no atelier. Mais tarde, apareceram as novidades: retratos esmaltados para medalhas e os fotógrafos amadores, que viam na fotografia uma fonte de emoções e perenes recordações e começavam a descobrir-lhes os segredos. E o desenvolvimento de Santa Maria, propiciando a existência de profissionais permanentes. No capítulo IV, Getulio Schilling os enumera e lhes traça a trajetória na cidade. Entusiasmado, se refere às revistas que, embora fossem  propaganda das companhias que representavam, a Kodak e a Agfa, se constituíam, no seu entender, revistas de arte e de ciência fotográfica, registrando novas conquistas e experiências, instituindo concursos, transmitindo as novidades que surgiam. Conclui que, num futuro próximo – o seu texto é de 1943 – a fotografia suplantará a tipografia e com seus poderes, o de penetrar na atmosfera e no fundo do mar, o de mostrar, pela radiografia, o corpo humano, e levá-lo, pela televisão, a lugares distantes, brevemente irá penetrar os íntimos refolhos da alma.


            Na segunda parte da publicação, dedicada ao teatro em Santa Maria, Getulio Schilling fixa sua origem a partir de textos existentes. Minuciosamente, inventaria os esforços para que a cidade tenha o seu teatro, os espetáculos e os locais onde ocorreram. Um importante registro ao qual se acrescentam os referentes às apresentações musicais e cinematográficas e que não é mais completo porque publicações que, certamente, ofereceriam informações preciosas foram de difícil consulta ou desapareceram. Obstáculos que faz constar: as repartições públicas dificultam a consulta de suas coleções aos estudiosos. A partir de um certo momento, não mais relaciona grandes sucessos teatrais nem cinematográficos. Ao contrário do otimismo de suas palavras quanto ao futuro da fotografia, nada de promissor ele vislumbra em relação ao teatro em Santa Maria. Ainda assim, quer acreditar que o progresso da cidade apresenta sinais de exuberante vitalidade e com ele o teatro marchará [..].

            Pela abundância de informações, esses dois textos de Getulio Schilling se constituem um imprescindível material de consulta para estudos que venham a ser feitos sobre os temas por ele tratados. E, deveras importante a sua publicação a permitir o acesso a dados nem sempre facilmente disponíveis. Enriquecida por oportunas notas elucidativas e por um conjunto de imagens que se apresentam valorizadas pelo primoroso trabalho de Valter Antonio Noal Filho, A arte fotográfica e o teatro em Santa Maria, além de se constituir uma valiosa pesquisa, é, também, a expressão do justificável desejo de prestigiar os méritos de um filho da terra.

domingo, 11 de junho de 2006

Troças do cárcere


             Há vinte anos atrás, a MPM Propaganda e a Editora Record publicaram Monteiro Lobato vivo, uma coleção de suas cartas, em grande parte, inéditas. Tratando de sua vida literária, impressões de viagens, preocupações em relação ao ferro e ao petróleo, interesse pelo social e pelo além, de sua experiência na prisão, muito do que elas contêm não perderam a atualidade. Assim, como em A Barca de Gleide, que o revela um brilhante epistológrafo, estas cartas, ademais de concorrerem para que a sua figura, tantas vezes polêmica, seja conhecida de outros ângulos, possuem, nos inúmeros recursos estilísticos que as pontilham, uma singular e espontânea expressividade: símiles e metáforas que remetem ao mundo animal (livros engolidos por inteiro como o avestruz; passou a viver feliz e livre como um passarinho; São Paulo está mais cheio que uma lata de sardinha, o pampeiro da indignação trouxe do sul uma onda de centauros). Adjetivos que atribuem qualidades humanas a noções de tempo e à substantivos abstratos: meses casmurros, excessivamente asmáticos, estúpido e arrepiado domingo, doce analfabetismo ledo e cego. Uso de palavras inexistentes que engenhosamente, ele deriva daquelas dicionarizadas: acacianices, desasnadores, anatolescamente, microscopiar.  

            Porém, é, sobretudo, nas “Cartas de e sobre a prisão”, nono capítulo do livro, que mais se faz presente a vivacidade e a rebeldia que lhe são inerentes.

            No dia 20 de março de 1941, Monteiro Lobato é procurado por dois investigadores de polícia. Apresentam-lhe um mandato de prisão preventiva pelo crime de audaciosa e injustificável irreverência. Por motivos políticos ou pessoais o certo é que o Tribunal de Segurança o condena a seis meses de cadeia.

            Já no segundo dia de prisão, ele escreve a Geraldo Serra, que exercendo atividades jornalísticas e culturais, lhe esteve sempre muito próximo. Pede-lhe que envie as cartas que estavam debaixo do porta-chapeús e que se alguém perguntar por ele, pela sua ilustre pessoa, responda que está ótimo, satisfeitíssimo, na Sala Livre, com um belo jardim para passear à vontade e com ótimos companheiros. Quatro dias depois, escreve a seu amigo, o juiz Paulo de Oliveira Costa a quem pede a libertação de Nelson Mendes Bezerra, um companheiro de prisão. E no dia 6 de maio, torna a escrever-lhe, agora, para agradecer o ter concedido a liberdade condicional que o réu havia pedido. Além dessas, ainda outras duas cartas. Para Benjamim de Garay, que muito auxiliou a divulgar a sua obra na Argentina e para Leonor de Aguiar, cantora de música erudita e, depois, tradutora que dele se tornou amiga. Em todas essas cartas, à parte tratar da publicação de Reinações de Narizinho na Argentina e relatar o resultado de seu julgamento e as conseqüências de sua prisão, a presença da troça que faz de si mesmo e da situação em que se encontra: que está como quer, colhendo o que plantou e a viver num hotelzinho da Avenida Tiradentes, gratuito e muito melhor que muitos daqueles da estação Norte; que na Sala Livre – pitoresco nome dado ao chiqueirinho é onde mora; que já recebeu duzentas e trinta visitas e tanto doce e bolo e coisas gostosas que já engordou. Troça que não impede que nele se mostre esse homem cordial e simples que não apenas se relaciona facilmente com os companheiros de prisão como tenta, ao dialogar com eles, transmitir-lhes um outro jeito de pensar e que, distribuindo dezenas de seus livros, lhes oferece poder devanear no sítio de D.Benta. Ou, esse homem lúcido que percebe não haver nada mais absurdo do que o poder dado a um homem de condenar outros a uma coisa que ele não conhece: a privação da liberdade. E que sabe ser o patriota um ser sumamente sábio – vive da pátria; em vez de dar-lhe coisas, tira-as mas tira-as à força de retórica. Quando morrer, os necrológios choram o desaparecimento de um servidor da Pátria. Eu sei como a servem: roendo-a, devorando-lhe as carnes, vivendo às custas dela a vida inteira. Acham jeito de, mesmo depois de mortos, prosseguirem no serviço da Pátria; os montepios e pensões às viúvas e filhas por meio dos quais eles prolongam o devoramento por anos e anos depois de mortos.

domingo, 4 de junho de 2006

Das rãs


            O escândalo do petróleo foi escrito e publicado em 1936 e quatro edições, num total de dezoito mil exemplares, foram vendidos. No ano seguinte, o livro desapareceu nas trevas da supressão de todas as nossas liberdades, diz Monteiro Lobato, anos depois, ao tornar a reeditá-lo. Acrescenta-lhe, então, outros textos, ao todo, uma vintena. Menciona a existência de petróleo em várias regiões brasileiras, com base em relatórios como o do geólogo Gustav Grossman que, após estudos no país, concluiu: Dada a sua área, a quantidade de petróleo do Brasil talvez seja maior que a de qualquer país do mundo. Ou, em informes como o do dinamarquês Thorvald Loch que descobriu oil-seepage (poço espontâneo, nativo, fluente, é a existência viva, palpável, medível, utilizável do petróleo) à margem direita do rio Mamoré. Como, também, se refere à imediata voz do governo a negar a existência de petróleo no país e às arbitrariedades cometidas a fim de neutralizar os trabalhos dos que se propõem a abrir poços. Lembra que, depois de se mostrar entusiasmado com a possibilidade de existir petróleo na zona de São Pedro de Piracicaba onde foi iniciada uma perfuração programada para dois mil metros, Fleury da Rocha, o Diretor do Departamento Nacional de Produção Mineral, nega a existência de petróleo nessa região: Quem influiu nesse homem para o levar a tão completo repúdio dos ideais da véspera?, se pergunta Monteiro Lobato. Quando se tratou de abrir poços em Alagoas, um de seus homens de confiança se insinuou para dirigir os trabalhos. Técnico especialista, ele desvia do prumo o poço de São João, já iniciado. Logo, abandona a Companhia e parte para o Rio de Janeiro de onde volta para Alagoas, como representante do Departamento Nacional de Produção Mineral para provar ao Interventor do Estado que não era idônea a Companhia para a qual trabalhara. O interventor manda interromper as perfurações.

            Atuações, entre várias outras, que Monteiro Lobato denomina programa de Não tirar petróleo, nem deixar que o tirem, cujo fito é manter o Brasil algemado aos trustes como um comprador que esses trustes desejam tornar perpétuo e para tal, contam com a ajuda dos governantes brasileiros. Estes, por inépcia ou desonestidade, se deixam levar: os Interesses Ocultos, primeiramente orientam os órgãos técnicos da administração, que aconselham os ministros que, por sua vez, conduzem os presidentes e, daí, os representantes no Congresso. Desse modo, partindo da pulga para o elefante, os trusts obteriam as leis mais adequadas aos seus intuitos, sintetiza Monteiro Lobato. Assim, a Lei de Minas que, juntamente com a negação da existência de petróleo no Brasil, na ótica de Monteiro Lobato, nada mais faz do que servir aos interesses das companhias estrangeiras. Assim, o Decreto-Lei 2.179, ao fixar os impostos sobre derivados de petróleo que porventura venham a ser produzidos no país – novidade até então nunca vista: determinar impostos sobre algo que ainda vai existir – contraria a política econômica vigente que taxa o produto estrangeiro para que a indústria brasileira, correspondente, possa se desenvolver e deixa a futura indústria do petróleo sem proteção nenhuma, equiparada à indústria estrangeira equivalente.

            Nesse constatar, registrar, documentar, acusar as manhas governamentais brasileiras e as alienígenas, quando se trata da existência de petróleo no Brasil e de seu aproveitamento, Monteiro Lobato esboça, lamentável e melancólico cenário: Um pântano com quarenta milhões de rãs coaxantes, uma a botar a culpa na outra do mal estar que sentiam. Procuram soluções políticas, mudam a forma de governo, derrubam um império vitalício para experimentar imperantes quadrienais, fazem revoluções, entrematam-se, insultam-se, acusam-se de mil crimes, inventam que o pântano permanece pântano ‘porque ha uma crise moral crônica’ [...] e mandam o ministro da fazenda correr Nova York e Londres de chapéu na mão a pechinchar dinheiro.