domingo, 26 de março de 2006

Tríptico da desesperança


            São trinta e seis contos reunidos sob o título Teresa, que esperava as uvas, livro de estréia de Monique Revillion que acaba de ser publicado pela Geração Editorial, de São Paulo. No dizer da autora, seus temas, amor, sexo, velhice, encontros e desencontros, são universais. Inscritos na paisagem urbana, cenário de violências, solidões e afetos sem destinatário, os contos ora se constroem de um quase nada, como a diluir da situação dramática a sua carga afetiva. Assim, o toque solidário do entregador de pizza na mão da mulher que ele presume infeliz, quando o atende na porta; assim, o gesto de apertar um urso de pelúcia da mulher na seção de brinquedos do supermercado. Ora, reconstroem fatos terríveis, não fossem eles banalizados pelo cotidiano, como a trajetória da menina, personagem de “Uma história de M” que, se inventada por Monique Revillion, no entanto, está sendo vivida (igual ou semelhante) por um número infindo de crianças brasileiras, o que ninguém ignora; como o drama de Ezequiel, do conto “O soldado Ezequiel”, designado para fazer o relatório sobre os cinco mortos, jogados numa picada deserta; como o ódio nascido das carências e desabrochado no uso das drogas do conto “Os primeiros que chegaram”.

            Ou, a crueldade que se instala, repentina, num momento familiar, fadado à alegria do convívio. Em “A janela”, uma história banal: a filha que se envergonha do pai. Mimada por ele que procura lhe oferecer o que de melhor a lida do fumo garantia e sofrida pelo abandono da mãe, alimentava uma solidão, a sua e a dele, que não admitia palavras. No dia de sua formatura, o pai prepara um café da manhã especial, se apronta e fica à espera. Ela aparece, bonita na roupa nova, se desvia da ternura paterna para, antes de sair, dizer que sem sapatos ele não podia ir, que era melhor ficar em casa. E sem mais nada dizer, nem sorrir, nem hesitar, seguiu o seu rumo. Para o leitor se esclarecem os atos do pai, que o relato já enunciara: tirou o terno lustroso, descalçou as sandálias, vestiu a camiseta e as alpargatas de lona. Tenta retomar o cotidiano ao cevar um mate, ao tirar a mesa e guardar a broa que não fora tocada. No quarto da filha, prostrado, passa os dedos sobre as letras do convite, sabendo que em algum lugar haviam estampado o seu sobrenome. Na tristeza, rebuliço de navalhas por dentro, vislumbra o futuro sem consolo, sem encontro.

“Bibelô” se inicia com a manhã deslizando numa promessa de alegria porque o único neto viria para o almoço. Depois, o detalhar de um início de dia, destinado a não ser como os outros, na busca de agradar com o batom, o perfume, o vestido, o penteado e a mesa posta e a comida caprichada. Quase ao meio dia, a chegada do neto com o amigo e o almoço de conversa cerimoniosa, a ausência deles da sala e o vislumbrá-los mexendo no guarda-roupa, o neto com o par de brincos de pérola na palma da mão, a frase dizendo que A velha nem vai dar falta, as risadas. Antes de irem embora, repetiram a sobremesa e o neto esbarrou no bibelô de louça branca que, em cacos, ficou no chão. Na vida da velha senhora se instalou o vazio.

De um retomar de lembranças é feito “O triciclo azul”. Ao retornar à velha casa dos pais, ele se depara com seus guardanapos de crochê, suas almofadas no sofá, seus móveis antigos. E com a surpresa do triciclo recém pintado com o pneu sobressalente preso com parafusos novos na traseira. Afloram-lhe as lembranças da meninice, do amor que recebera dos pais, dos laços que rompera com suas ausências. Até saber, pela faxineira, que o pai pintara o triciclo e encomendara o bolo de aniversário, esperando por ele, na certeza de que chegaria. Lembrou-se da promessa não cumprida e que não se dera conta, ao telefone, da voz desfigurada do pai, que então viera enterrar.

            Palavras cuidadas, narrativa que flui no ritmo do tempo ou que no passado e no presente se entrelaça, expressão de um sentir ou de uma visão de mundo, por vezes, surpreendentes revelam, nesses contos, uma escritora cujo talento não precisa trilhar caminhos conhecidos para perseguir o seu próprio estilo

domingo, 19 de março de 2006

No sinaleiro


 

 Em Las venas abiertas de América Latina, história do saque continental desde as caravelas até os tempos do jato”, como sintetiza Hugo Neira , o Brasil está presente entre os outros países que se deixam exaurir na calamitosa entrega de suas riquezas. Dias y noches de amor y de guerra, publicado em 1978, sete anos depois, relata o que foi viver (ou sobreviver) sob as ditaduras do Continente e das emoções que marcaram Eduardo Galeano como profissional e como aquele que tem olhos de ver o mundo. Então, registra um Brasil, como o Paraguai, o Chile, a Argentina, o Uruguai, envilecido pelas perseguições e torturas, instituídas pelos seus regimes de exceção: O primeiro morto por tortura desencadeou, no Brasil, em 1964, um escândalo nacional. O morto por tortura número dez, apenas apareceu nos jornais. O número cinqüenta foi aceito como normal. Também, fatos como a estranha premonição da cigana que anunciou a Guimarães Rosa o momento de sua morte; o assassinato de Vladimir Herzog; o nascimento de Felipe, filho de seu amigo Eric Nepomuceno e o encontro com Darcy Ribeiro, quando, depois de operado, já estava de partida para o Peru. E a história do homem que durante o dia trabalhava no aeroporto do Galeão, limpando aviões e, à noite, incorporava Vovô Catarino no seu terreiro, numa favela do morro carioca. 

            No ano de 1982, Eduardo Galeano publica Los nacimientos, o primeiro volume de sua trilogia Memoria del fuego, pequenos textos relatam a História da América desde antes da chegada dos ibéricos até o ano de 1984 , e do Brasil fala do padre Anchieta, do Padre Vieira e de Zumbi. No segundo volume, Las caras y las máscaras (1984), além dos textos dedicados ao Padre Anchieta, Dr. Luiz Gomes Ferreira, Aleijadinho, Manuel da Costa Ataíde, Tiradentes, Euclides da Cunha, Machado de Assis, Antonio Conselheiro, Jacinta de Siqueira, Barão de Mauá, Joaquim Nabuco (e menções a José Bonifácio, Castro Alves, Rui Barbosa e Luiz Gama), outros se referem aos usos e costumes da sociedade colonial, ao ouro e às riquezas do Brasil a serviço da metrópole e às políticas extraviadas do país. Em El siglo del viento, o terceiro volume da trilogia, (1986), escreveu sobre jogadores de futebol, escritores, músicos, homens públicos, artistas e sobre a sociedade em que se moviam onde era lei açoitar marinheiros por faltas cometidas; onde o ódio entre famílias ordenava a vingança perpétua; onde os racistas do país ocupavam cargos importantes no governo; onde a nova capital, apenas terminada, excluiu aqueles que a levantaram com suas mãos” e se instituiu a cidade do governo, a casa do poder, sem povo nas praças, nem calçadas para caminhar; onde, para salvar o país de males inventados, se instauravam ditaduras que jamais sequer intentaram resolver os males reais, não se propondo propiciar terra para os brasileiros, nem dar condições para que se alimentassem condignamente, pois, em 1974, dos  setenta e dois milhões de subnutridos do país, treze milhões estavam tão vencidos pela fome que já nem podiam correr.

            Na verdade, todos esses perfis, todos esses fatos teriam sido passíveis de chegarem ao conhecimento dos brasileiros se a maioria da população soubesse ler, se as fontes de leitura fossem de livre acesso a todos, se houvesse liberdade de expressão. E, se alguns perfis e alguns fatos, por razões diversas, não tivessem sido ignorados ou se as informações sobre outros tantos, por sua vez, não tivessem sido encobertas.

Eduardo Galeano ao lembrar vivências, ao recontar a História da América o fez livre de compromissos cerceadores e, assim, a revelou sob um outro prisma, como um sinaleiro de novos caminhos, apontando realidades não poucas vezes escamoteadas ou negadas.

            No texto “Alguém”, que recebe como data o ano de 1969 e como cenário Em qualquer cidade, Eduardo Galeano olha e vê: Em  uma esquina, diante do semáforo vermelho, alguém engole fogo, alguém limpa para-brisas, alguém vende toalhinhas de papel, chiclete, bandeirinhas, bonecas que fazem pipi.

domingo, 12 de março de 2006

Efêmeros laços: a cidade

            Santiago, Lima, Buenos Aires: um itinerário que os usurpadores do poder, no Continente, traçaram para muitos, na década de 70 e que o poeta registrou no seu livro Na vertigem do dia (Civilização Brasileira, 1980). Em Santiago, Ferreira Gullar chegou quando ainda era possível ter esperanças para o que, afinal, resultaria ter um triste epílogo. No primeiro poema (são dois que ele dedica ao Chile, sob o título “Dois poemas chilenos”, datados de junho e setembro de 1973), Santiago é mencionada no verso inicial, que o advérbio quando relaciona com a sua chegada na cidade, no outono e, também, mencionando que os chilenos abastados buscavam se pôr a salvo (a fugir) com seu dinheiro (dólares) e suas frustrações (dolores). É, outra vez, o advérbio quando que torna a dizer dessa chegada, agora precisando o mês: maio, tempo em que a revolução ainda se fazia. No segundo poema, o nome da cidade não está presente, sim a menção de ser aquela de Allende. É primavera (setembro, como a data que acompanha o poema revela) e os pássaros cantam. Também, longe, gorjeiam as metralhadoras que Allende, interlocutor a quem ele se dirige, já não pode escutar, como tampouco defendê-lo dos fascistas. Escrito no dia 16, anuncia a tirania que chega / para nos matar, irmanando-se, no uso da primeira pessoa do plural, com o povo chileno ou com os que professam idéias contrárias às dos vencedores.
            “Passeio em Lima” foi escrito em 1974. Registra, como soe acontecer, amiúde, nos seus poemas, esse momento vivido e único que o verbo no presente e o adjetivo demonstrativo tornam próximo. O primeiro verso delimita um espaço que somente o título do poema identifica: Debaixo desta árvore e a sensação que nesse espaço lhe advém: sinto no rosto o calor de suas flores vermelhas. Um sentir e uma impressão (como se dentro de um relâmpago) que o levam a refletir sobre a matéria da flor (pode ser de pano, pode ser de trapo) para, poeticamente, legislar que é a mesma da palavra / e da alegria no coração do homem.

            Surpreendendo-se a si mesmo no seu corpo dobrado (magro, mistura de nervos e ossos) que repousa num divã e na sua solidão (apoiado apenas em mim mesmo), a cidade de Buenos Aires é presença nos trinta e seis graus e meio de calor e no que dela pode ver pela grande janela da sala. O que importa, é, outra vez, o momento – solidão, passividade que, aliás, o título “Homem sentado” já sugere – que os últimos versos dizem ser da melancolia da perda na lembrança de plantas verdes que já morreram.

            E, desesperançado, esse outro momento vivido em Buenos Aires. No poema “Ao rés do chão”, nada diz da cidade ou de seus habitantes e, se não fosse mencionado o seu nome, nada com ela se relacionaria na enumeração dos objetos que o espelho reflete, nos espaços vazios, na ausência de ruídos. Um mundo estático e amorfo como estático e amorfo se mostra o poeta: deitado, como um objeto que respira, fora do ângulo do espelho, na solidão em que os outros objetos (que não foram nomeados) se apresentam como humanos: eles não se gostam e ficam de costas uns para os outros a indicar um reino de solidão que é o reino próprio dos homens.

            Ainda a mencionar um crepúsculo de Buenos Aires, o primeiro poema do livro, “Minha medida”. Seu tema é o Brasil, a sua gente, a sua fome e a referência a Buenos Aires, embora anódina, é a breve presença que não deixa esquecer essa vivência de exilado, esse lugar onde escreveu, também, “A alegria”, “A voz do poeta”, “Primeiros anos”, “Digo sim” que trazem a data de 1975. Pedaços de vida, construídos por emoções que laços de afeto enovelam, ignorando fronteiras o que é assaz raro entre os habitantes do Continente. Porque o destino de seus países, inegavelmente, semelhante ou idêntico, deveria levá-los a se conhecer. No entanto, preconceitos, idéias falsas, ignorância os separam fazendo com que não existam uns para os outros.

domingo, 5 de março de 2006

O aprendizado


            Emilie chegou do Líbano ao Brasil e casou com um emigrante também vindo do Oriente. Na sala de sua casa, a enobrecê-la, tinha tapetes de Kashir e Isfahan e, guardados a chaves, trajes que trouxera: uma indumentária luxuriante, costurada com brocados magníficos. Confinada num recanto escuro, abandonada e em desuso, a vestimenta parecia aludir a um corpo vivido em outro tempo, caminhando sobre outro solo e desafiando as estações de uma região longínqua. As jóias trazidas de sua terra, porém, ela as usava, ainda que, somente, em ocasiões especiais. À mesa, unia a família, um dos poucos momentos em que se hasteava a bandeira da paz, com os pratos que preparava e que, também, eram laços com o mundo de onde viera: pães de massa folhada, tabule, esfiha com picadinhos de carneiro, doces de semolina com nozes e mel, compota de pétalas de rosa, pernil de carneiro assado com tâmaras, folhados de nata e tâmara, arroz com amêndoas e o pistache, as amêndoas, as tâmaras, o gergelim. Em algumas manhãs de sábado, ela preparava o fígado de carneiro segundo o ritual de sua gente. Temperado com sal, pimenta do reino e hortelã, era comido com as mãos junto com o pão e o zátar. E o simples aroma dos figos – Só os figos da minha infância me deixavam estonteada desse jeito – era motivo para se lembrar das proezas dos homens das aldeias de sua terra, dos passeios entre as ruínas romanas, dos templos religiosos construídos em séculos distintos”, das brincadeiras no lombo dos animais, dos conventos debruçados sobre abismos, da paisagem feita de cedros negros, de córregos, de videiras, de oliveiras, de figueiras, crescendo perto do claustro ou da igreja.

            Mas, é a língua da infância que a faz mais próxima das suas origens. A que fala nas conversas familiares, acompanhada de muitos gestos; a que irrompe nas festivas reuniões de sábado entre os amigos. Aquela que ensina ao filho mais velho, por ter nascido antes do que os outros três? Por se encontrar, ainda, muito próximo de suas lembranças, de seu mundo ancestral? para quem, embora familiar, soava como a mais estrangeira das línguas estrangeiras. Quando lhe anuncia que no sábado seguinte estudariam juntos o alifebata, conta “que a sua avó lhe ensinara a ler a escrever, antes mesmo de freqüentar a escola. Como a refazer esse caminho, percorrido na meninice, inicia o filho, ensinando sem método, sem ordem, sem seqüência, apontando para mercadorias da loja e para objetos pessoais, numa miscelânea da qual não estava ausente nem a beleza (almofadas bordadas com arabescos) nem os perfumes (pequenos recipientes de cristal contendo cânfora e benjoim) que então nomeava. As palavras eram repetidas muitas vezes, depois,  muitas vezes, escritas e copiadas na caligrafia que lembrava as marcas das asas de um pássaro que rola num espelho de areia. Uma aprendizagem dos sons, das letras, da gramática que foi se fazendo, num esforço, cujo significado era a aceitação do papel que lhe coubera: ser, entre os filhos, eleito o interlocutor de sua mãe. Ao conversar com ele, não traduzia, não tateava as palavras, não demorava na escolha de um verbo, não resvalava na sintaxe. Feliz, soberana, desprendida de tudo, ela podia eleger os caminhos por onde passa o afeto: o olhar, o gesto, a fala. Como se, somente assim, por essa fala recôndita, pudesse se revelar inteiramente, pois, ainda que senhora de afetos, não foram poucos os momentos em que se submeteu ao silêncio.

            Personagem de Relato de um certo Oriente (Companhia das Letras, 1989, 2005), em cuja vida se inscrevem os seus amores de mãe, de mulher, de irmã  Emilie é regida, sobretudo, por esse desenraizamento a que o abandono da terra natal pode ocasionar.

            Milton Hatoum, pela voz de seus narradores, não a revela inteiramente. Mas, a sua presença, ainda que diluída pelas zonas de sombra que pontilham o relato, é de inigualável força ficcional.