domingo, 25 de setembro de 2005

O Poeta e a vida


            “Oda a la vida” é o penúltimo poema de Odas elementales, livro publicado em Buenos Aires, no ano de 1954, no qual Pablo Neruda inicia o seu cantar das coisas simples  num intuito didático que se expressa no desejo de mostrar, descrever, doutrinar, corrigir, estimular como enumera Emir Rodríguez Monegal em El viajero inmóvil. Nos primeiros versos de “Oda a la vida”  Pablo Neruda  se mostra um ser humano como todos, a mercê dos sofrimentos que tornam as noites brancas: com um machado me golpeou a dor. Mas, sobrevindo o sono, com poderes de purificação, passou lavando como uma água escura / pedras ensanguentadas e, assim,  o novo dia estabelece, outra vez, a resistência. Na segunda estrofe, o Poeta se dirige à vida, chamando-a de taça clara a conter os repentinos senões que pode e que,  metaforicamente, designa de  água suja, vinho morto,  teias de aranha, além do  já conhecido – a agonia, as perdas – que alguns, constata,  podem considerar como perenes. O que, no entanto,  ele rebate, com firmeza, na estrofe seguinte, feita, o que é assaz raro neste livro, de um único verso. Prosaico, afirmativo na sua negação – Não é verdade.- a introduzir  os argumentos que afirmam o efêmero dos males  pois basta uma noite ou um minuto para que se instale  a vitória da limpidez, contida no cálice da vida, do trabalho amplo, desse movimento que faz nascer as pombas e estabelecer a luz sobre a terra. Apologia que irá se completar nos versos em que o Poeta compara a vida  com a  mulher amada, com a vinha e naqueles em que ,  justapondo palavras concretas e abstratas, torna a defini-la, conferindo lhe um dinamismo inesperado: guardas a luz e a repartes. Porém,  somente depois de lembrar os poetas ( os pobres poetas)  que sem lutar, a percebem amarga.


            A última estrofe, a  mais longa do poema, conduz ao ensinamento, calcado na sua visão de mundo,    dirigido aqueles que da vida renegam, que recebem os golpes sem resistir e se afogam no luto de um poço solitário.  Didático, Pablo Neruda repete que os males são passageiros, que basta esperar um minuto, uma noite, um ano . Que não importa o tempo necessário para que  a mudança se faça e sim o ato de abandonar a solidão, de perseguir respostas, de pretender suas mão  em outras mãos, de não adotar nem bajular a desdita mas, com ela se fortalecer.

            Ainda que o Poeta busque a simplicidade  o que na verdade, quase sempre,  procurou fazer, e  nas odes  foi uma intenção primeira  e que nesta “Oda a la vida” ela esteja presente  na menção de fatos corriqueiros ( não saíram contigo / da cama, corte a desdita / e se faça com ela / calças) ; na discrição das imagens (cor do inferno, entre os seios tens cheiro de menta);  na simplicidade dos símiles (como  uma vinha, dando-lhe forma de muro como à pedra os pedreiros) ; na combinação de palavras do cotidiano que desabrocham, sugestivas ( ternura de azeite delicado, som de tormenta) ,  ele não se deixa iludir ao enunciar suas verdades.  

             Assim, na afirmação final, a completar as palavras de ordem que pregam o repúdio da solidão mentirosa e da infelicidade,  como que inconteste, se erige a crença do Poeta nesse destino comum a todos os homens: a vida nos espera / a todos [..] . Mas a ressalva que se lhe segue,  a impor restrições, – a todos / os que amamos / o selvagem perfume de mar e menta / que [ a vida]  tem entre os seios -    revela,   a sabedoria de aceitar que, nem sempre,  a palavra cai em terreno fértil; que, nem sempre, tampouco, todos são os que as entendem. 

domingo, 18 de setembro de 2005

O Poeta e a morte


            Pablo Neruda, recém havia chegado em Barcelona, na década de trinta, quando recebeu a notícia da morte de seu amigo Alberto Rojas Giménez,  figura ímpar que ele descreveu em Confieso que he vivido e cuja morte,  ocasionando-lhe uma dor muito intensa,  foi motivo da elegia que, então, escreveu: “Alberto Rojas Giménez viene volando”, longo poema de vinte e duas estrofes, publicado na Revista Ocidente e, que faz parte, também, de Residencia en la tierra.  Como observa Emir Rodriguez Monegal em El viajero inmóvil, a notícia, recebida através de um telegrama, chegou, para Pablo Neruda, como se o  próprio Alberto Rojas Giménez  viesse voando - daí esse estribilho que acompanha cada uma das estrofes -  e com ele, todo o seu mundo, arrastado como por um furacão de poesia. Um mundo onde as violetas, as magnólias, os lírios, a papoula suavizam o prosaico de um cenário urbano cujos contornos se oferecem na enumeração que mescla dentistas, advogados, aviadores, notários, mulheres que desfazem tranças com farmácias, cinema, canais, túneis, caracóis congelados e peixes sujos, meninas submergidas e plantas cegas. Sobretudo, um espaço intensamente relacionado com Alberto Rojas Giménez e com o que a sua perda significou para o Poeta. Assim, as palavras indicativas de lugar, nas primeiras treze estrofes – entre, sob, mais abaixo, mais além, sobre, perto, enquanto conduzem  o amigo desaparecido, através dos mares, num percurso situado  entre a realidade e o sonho. É o inverno chuvoso, como poucos, até então, no Chile, em que Alberto Rojas énez atravessou a cidade, sem agasalho, loucura  que resultou na broncopneumonia que o iria matar dois dias depois; e é a  chuva torrencial caindo sobre a cidade durante o seu velório e que inundaria o cemitério, que leva Pablo Neruda a falar do “cemitério sem paredes”, da chuva a cair dos dedos do amigo,  de seus ossos, de seu “coração caindo em gotas”. Aniquilamento  que  ele quer refutar  (“Não estás ali rodeado de cimento”, “Não é verdade tanta sombra”, “Não é verdade tanta sombra em teus cabelos”)  mas que,  inelutável,  deve  ser aceito ainda que  no eufemismo  do verso “com traje novo e olhos extinguidos/vens voando”.

            As últimas estrofes da elegia dizem de uma natureza sombria, marcada por  “andorinhas mortas”,  “vento negro”,  “peixes sujos”,  “mar morto”, “um cheiro de manhãs chovendo”. E da tristeza que o invade na alma onde chora, na solidão do “nada” e do “ninguém”, somente povoada de “uma escada degraus quebrados” e de um “guarda chuva”.   

            Nesse alternar de expressões que remetem ao trivial com as que,  ricamente sugestivas, beiram o alucinatório –  nelas,talvez,  já esteja o prenúncio da poesia “sem pureza” que Pablo Neruda postulará no primeiro editorial da revista Caballo verde para la poesia, publicada em Madrid no mês de outubro de 1935 – se formam matizes cambiantes nos quais se inscreve, igualmente, a ilusão do Poeta. Porque do amigo possui, somente, o que presume ouvir ( as suas asas  e o seu lento vôo)  e, de certo, apenas, esse golpear da “água dos mortos”.

 Em meio aos versos da última estrofe,  ainda a falar das perdas – Alberto Rojas Giménez vem voando “sem açúcar, sem boca, sem roseirais”- advém a compreensão do Poeta. Seu amigo vem voando  “ sozinho entre  mortos, para sempre sozinho” a cumprir o fado dos humanos.

domingo, 11 de setembro de 2005

Apoiado em Pablo


          Foi escrito entre outubro de 1979 e maio de 1980, em Caracas e Mérida e em Paris, o que foi chamado por Carlos Droguett de um prólogo poético à narrativa que leria no  “Coloquio sobre el Cuento latinoamericano”, realizado na Sorbonne, em 1980,  o que não ocorreu por falta de tempo:  um  poema, gênero inusual no romancista chileno, cujo título “Augusto Pinochet Ugarte viene volando”, foi calcado  em “Alberto Rojas Jimenez viene volando” de Pablo Neruda. Ao título, perfeitamente, reconhecível, Carlos Droguett acrescenta a expressão  “Apoyado en Pablo”,  o que significa ter usado a mesma estrutura de estrofes de três versos e o mesmo estribilho: Vienes volando, em cada uma delas. Porém, enquanto Pablo Neruda expressa, no seu poema, a tristeza que sentiu, ao receber, na Espanha, onde recém havia chegado, a notícia da morte de seu amigo Alberto Rojas Jimenez, o romancista chileno exprime o sofrimento indignado diante dos crimes cometidos pelo militar que usurpou, com indescritível violência, o governo de seu país. Como relata no seu livro de memórias, Confieso que he vivido, Pablo Neruda escreveu as vinte e duas estrofes sob o signo imediato da emoção; ao acrescentar a seu poema datas e lugares, Carlos Droguett registra a duração do tempo em que o poema foi sendo escrito, no exílio, fruto de uma emoção experimentada seis anos antes e que se intensifica com o passar do tempo. Enlaçando-se a figuras precisas – o amigo, o déspota – os poemas revelam, na sua intenção e nos  seus sentimentos ser  um o reverso do outro. Assim, o que há de luminoso na menção à figura do amigo, - Oh! papoula marinha,oh!parente meu / oh guitarreiro vestido de abelhas, celeste voz- é sombrio desprezo nas referências ao verdugo chileno: Vestido de assassino e inteiramente nu, oh! traidorzinho vestido de cadáveres.
 

De claros-escuros é feito o vôo de Alberto Rojas Jimenez, companheiro  de juventude do Poeta que lhe traça o perfil como um elegante, um boêmio, um desprendido, uma figura que tudo ilumina. No poema de Carlos Droguett é um retraçar de caminhos turvos:  Pentágono, Carlos Prats estraçalhado pela bomba de um atentado, o palácio de La Moneda incendiado, dólares, garras, de onde emergem os esquerdistas cegos, as donzelas rotas, os operários desaparecidos, os berços afogados, os estudantes mortos, punhais, túmulos, queixumes, vítimas, a bandeira suja que, indissoluvelmente, se liga aos cenários e aos tempos de horror a que o 11 de setembro de 1973 condenou o Chile; e um percorrer de   labirintos de misérias: sob túmulos e cadáveres, além do sangue, dos ossos, do próprio vômito, sobre saques e farmácias, entre frascos de aspirina morta.

            Na última estrofe, a morte condenando ao aniquilamento – não mais sombra ou nome, não mais açúcar ou roseirais – iguala Alberto Rojas  Jimenez a todos os mortais. Como o iguala a definitiva solidão do ser humano diante da morte que o Poeta presume: Vens voando, sozinho solitário / só entre os mortos, para sempre só.  Versos retomados, na íntegra, por Carlos Droguett, também, na última estrofe do seu poema. Antes, porém, não poupa esse cujo nome não ilude. Nos seus versos, ele  vem  voando sobre um cemitério só dele, onde seus pobres regimentos se extraviam.  Ele vem voando enquanto  seus próprios excrementos caem, enquanto o sangue de seus dedos caem, enquanto o pus de sua família cai, enquanto suas vítimas e suas genuflexões caen. E, se, voando, ele vem liberto de crimes ( dos túmulos e das greves), vem  igualmente privado de consolos ( do açúcar,  do pão, da pátria, dos sapatos). Acompanhado, porém, dos seis mil olhos, fatais, já desfeitos.

            “Augusto Pinochet Ugarte viene volando” não foi lido no auditório da Sorbonne nesse dia de maio. Carlos Droguett voltou a seu exílio na Suiça e não viveu para voltar a pisar a terra de seu país, livre dos esbirros ditatoriais.

 

 

 

 

domingo, 4 de setembro de 2005

O chapéu perdido


 
            Ele ocupa um lugar no bonde e chama a atenção do cobrador e dos passageiros ao dar o centenário, um dinheiro falso, para pagar a passagem e, também, pelo chapéu que usava. E’ o homem do chapéu, magistral figura do romance O Louco do Catí de Dyonélio Machado. No fim da linha, vê, ao longe, o armazém e para lá se dirige. Outra vez, o impasse com o seu centenário que acaba negociado pelos cigarros que fora comprar. Os fósforos, pagos por um dos rapazes que ali estavam preparando uma viagem breve até o mar. A eles, se incorpora. Parecia ser meio louco (o que não tinha importância) e sem recursos (somente daria despesas), mas, Norberto que apressava os companheiros para a partida, concluiu que empenhariam o seu chapéu. E, assim, se iniciou, para ele, a viagem que resultaria bem mais longa do que a anunciada. 

 Se, na ida até o Rio de Janeiro e no Rio de Janeiro as circunstâncias e Norberto lhe determinaram o cotidiano, na sua volta para o sul, o itinerário, os meios de transporte, o alojamento, o traje, algum lazer foram decididos por aqueles que aceitaram dele se fazer cargo. Além de sua iniciativa de entrar no bonde em Porto Alegre, descer no fim da linha, comprar cigarros e, já em Caxias, a passagem para Santa Maria, ao longo desse percurso que não escolheu, esteve sempre sob a guarda de alguém. Protegido, porém despojado de vontade própria. Raramente, manifestou o seu querer e, quando o faz, ele não é atendido. Assim, Norberto decide que deve voltar para o sul, mas na pensão onde moravam propõem que fique ainda um tempo; depois, a sua revelia, o embarcam, recomendado a um casal, para Santos. Ao chegar,  eles o levam junto para São Paulo e, na volta, é embarcado para Florianópolis. Lá, o médico de bordo passeia com ele pela cidade e lhe consegue lugar num caminhão que ia para Lages. O chofer o hospeda na sua casa (Lhe sai mais em conta), decide se vai junto com a família para a feira e, para atender ao desejo da mulher, quando deve ir embora. Para isso, pede ao coronel que partiria para Caxias que o leve junto. O coronel, não apenas lhe cede um lugar no carro, como providencia o seu pernoite e, no dia seguinte, a viagem de trem para Santa Maria, onde o convence a dar uma volta pela cidade. Depois, a viagem para Livramento, e de avião (o coronel lhe paga a passagem) para Quaraí. O mau tempo que impedira a viagem por terra, obriga à aterrissagem forçada, em pleno campo, perto de uma fazenda para onde se dirigem os passageiros. Um deles, tem a capa preta com botões dourados. O louco do Catí não lhe tirava os olhos, encolhido, desandando no vento, que tudo fazia para lhe arrebatar o chapéu de Norberto... o chapéu que lhe ficava grande. Na tarde escura, se assusta diante dessa figura, de aspecto estranho, lendário e grita  – O Cati! O Catí!. É a lembrança que o persegue desde guri: o temor que a todos paralisava diante do que ocorria no Cati; o homem preso, manietado que iria ser morto, que vira quando menino. Lembranças feitas do medo a ressurgir sempre que se depara com imagens remetendo à muralhas, a uniformes negros ou à situações que presume ser ou que, efetivamente, são de violência. E que sob o mau tempo, o levam a fugir pelo campo e desaparecer. Ia em busca do... Cati! , conduzido, guiado noite a dentro, já sem o fito de lutar, se entregava aos demônios de sua infância e não errava a estrada. Quando o dia rompeu Já vinha sem o chapéu. Compreendera que não valia a pena se opor ou fugir dos fantasmas que estavam na origem de sua humilhação inferior: olhar triste, gestos de alegria, silêncio. Ao seu redor, sob as nuvens que se afastavam, a terra se clareava toda e as ruínas do Cati, cenário de tantos crimes, já não eram mais do que escombros. A luz e a nova certeza o transformaram e com o chapéu extraviado, perdera-se o querer dos outros. Liberto, ele sorria.
            Era, ainda, muito moço.