domingo, 21 de agosto de 2005

A filmagem


            A capa em branco e preto.  Despojada tanto quanto pode ser, num fundo branco, a figura nua de um homem negro, de costas,  do qual os ditames dos bons costumes fazem esconder as nádegas sob uma breve tarja na qual se inscreve o título do livro, Contos Negreiros (Rio de Janeiro, Record, 2005).  
            No índice, são mencionados não os contos mas os cantos: dezesseis textos que, se não possuem a estrutura tradicional do conto e tampouco a métrica e o ritmo do canto são,  abandonada a rigidez dos conceitos, o que o autor, Marcelino Freire,  determina que sejam. A narrativa em que prevalece, sobretudo, a síntese e privilegia um momento no qual se vislumbram o passado e o futuro,   feita de uma linguagem,  marcada pelo espontâneo e o singelo de um falante que deixa fluir a emoção, expressa, sempre, o sentimento dos marginalizados: os transgressores, os homossexuais, as prostitutas, os miseráveis.  Retalhos de vida se estabelecem. Tristeza no grande medo de enfrentar a vida; no sonho impossível de vir a ser branca, bonita e rica como o modelo da televisão;  na indignação  diante do fado feminino a legislar servidões; na miséria levando à venda de um rim (de um olho,  de um pé) ou do próprio corpo.

            Lirismo a emergir da cada um dos cantos, assim como de cada um deles emergem as  contradições  do sistema, como por exemplo a autoridade a proibir a  venda que um individuo queria fazer de seus órgãos mas não lhe oferece nenhuma condição para  suprir as suas mais elementares necessidades de alimentação ou de saúde.

Admirável no entrelaçar das vozes narrativas, na construção do diálogo, no ritmo da ação,o canto II, “Solar dos príncipes”.  Um narrador  que está próximo do que acontece como o indica o demonstrativo, dá início ao relato, informando: Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio.Talvez seja dele, também o testemunho sobre as palavras do porteiro  no seu susto (Meu Deus!) ou nas suas prováveis interrogações (O que vocês querem?, Qual o apartamento?, Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?). Porém, logo,  uma das pessoas do grupo  assume a narrativa quando responde: Estamos fazendo um filme,  explicação que se completa na voz feminina ao acrescentar: Um documentário.  Reposta que não convence, no diálogo em que um dos interlocutores tem ouvidos moucos, embora também seja preto. Mas a serviço dos moradores do prédio -  gerente de banco, médico, advogado (provavelmente brancos)  -     lhes endossa os preconceitos e, diante do que lhe é dito, não  sabe discernir o que é um documentário, o que é um longa-metragem e, possivelmente, quem é  Fernanda Montenegro ([..] aqui ela não mora) e só  tem condições de imaginar seqüestros, metralhadora, granada, cano longo.No seu medo, hesita entre correr e enfrentar – é homem ou não é homem?- mas,  categórico, nega a entrada no prédio e vai apertando os botões dos apartamentos: - Estou sendo assaltado, pressionado, liguem para o 190, sei lá. E, avisa: Vou chamar a polícia para espanto daqueles que, em paz, só querem fazer cinema: Chamar a polícia?

             Em meio aos  empecilhos, o narrador  explica: a idéia foi dele. A compra , em terceira mão, de uma câmara foi dele. O projeto foi dele: Imagens exclusivas, colhidas na vida da classe média:  como é ter um carro na garagem, dinheiro, internet e piscina. A idéia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador. Pois o morro (  ele mora no Morro do Pavão), argumenta, está aberto o tempo todo e é de peito aberto que  os moradores recebem esses que o apresentador do livro, Xico Sá, chama de sugadores estéticos da pobreza parda, branca ou negra: eles chegam, querem saber e  a gente do morro fala, desabafa, canta, dança e oferece a sua coca-cola.

            Diante do prédio, os cinco negros com seus nomes - como que de artistas, como que buscando outros destinos que não o da pobreza Johnattan, Caroline, Nicholson -   apenas querem saber como, no domingo, a família almoça, num projeto montado com tanto sacrifício: pois alguém, dentre eles,  deixou de ir trabalhar, alguém abriu mão de ficar com a família, esposa, cadela e filho”.  Pensam,  conseguir cartaz, dinheiro e sucesso. Exibir o filme, não um longa, só um curta,  no telão  da Escola, no salão de festas do prédio. No Festival de Brasília, no Festival de Gramado. Mas, a  polícia aparece com a sua sirena. O narrador, agora, assumindo a primeira pessoa, dá a ordem: Filma. E  filmaram tudo, isto é, o possível: alguns moradores nas sacadas, o porteiro se trancando nos vidros, as pessoas que apareceram,  o trânsito. E, o que, na verdade não falta nos filmes,  a polícia. Dos planos concebidos, nada restou. E a filmagem foi feita sob a égide de uma apressada improvisação, resultado desse costumeiro alijamento ao qual – perdoe-se o lugar comum – são os negros, sempre condenados, na inegável continuidade do regime escravagista do Brasil.
 

 Para que esse liame  passado/presente não  seja esquecido, Marcelino Freire e Silvana Zandomeni idearam essa instigante contra-capa: em fundo branco, um homem negro, nu. Também, agora, os ditames dos bons costumes exigem uma tarja sobre o que, na nudez, não deve ser mostrado. Só que nessa tarja,  aparece inscrito o registro  do ISBN,  que deve constar sempre, em toda publicação, na parte inferior e do lado direito da contra-capa. Identifica, com seus algarismos e seu código de barra, a nível internacional, o livro em questão. Em Contos negreiros, deslocado sobre a figura humana, sugere o preço de uma mercadoria que está à venda.

 

 

 

 




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