A capa em
branco e preto. Despojada tanto quanto
pode ser, num fundo branco, a figura nua de um homem negro, de costas, do qual os ditames dos bons costumes fazem
esconder as nádegas sob uma breve tarja na qual se inscreve o título do livro, Contos
Negreiros (Rio de Janeiro, Record, 2005).
No
índice, são mencionados não os contos mas os cantos: dezesseis textos que, se
não possuem a estrutura tradicional do conto e tampouco a métrica e o ritmo do
canto são, abandonada a rigidez dos
conceitos, o que o autor, Marcelino Freire,
determina que sejam. A narrativa em que prevalece, sobretudo, a síntese
e privilegia um momento no qual se vislumbram o passado e o futuro, feita de uma linguagem, marcada pelo espontâneo e o singelo de um
falante que deixa fluir a emoção, expressa, sempre, o sentimento dos
marginalizados: os transgressores, os homossexuais, as prostitutas, os
miseráveis. Retalhos de vida se
estabelecem. Tristeza no grande medo de enfrentar a vida; no sonho impossível
de vir a ser branca, bonita e rica como o modelo da televisão; na indignação
diante do fado feminino a legislar servidões; na miséria levando à venda
de um rim (de um olho, de um pé) ou do
próprio corpo.
Lirismo
a emergir da cada um dos cantos, assim como de cada um deles emergem as contradições
do sistema, como por exemplo a autoridade a proibir a venda que um individuo queria fazer de seus
órgãos mas não lhe oferece nenhuma condição para suprir as suas mais elementares necessidades
de alimentação ou de saúde.
Admirável no
entrelaçar das vozes narrativas, na construção do diálogo, no ritmo da ação,o
canto II, “Solar dos príncipes”. Um
narrador que está próximo do que
acontece como o indica o demonstrativo, dá início ao relato, informando: Quatro negros e uma negra pararam na frente
deste prédio.Talvez seja dele,
também o testemunho sobre as palavras do porteiro no seu susto (Meu Deus!) ou nas suas
prováveis interrogações (O que vocês
querem?, Qual o apartamento?, Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?). Porém, logo, uma das pessoas do grupo assume a narrativa quando responde: Estamos fazendo um filme, explicação que se completa na voz feminina ao
acrescentar: Um documentário. Reposta que não convence, no diálogo em que
um dos interlocutores tem ouvidos moucos, embora também seja preto. Mas a
serviço dos moradores do prédio -
gerente de banco, médico, advogado (provavelmente brancos) -
lhes endossa os preconceitos e, diante do que lhe é dito, não sabe discernir o que é um documentário, o que
é um longa-metragem e, possivelmente, quem é
Fernanda Montenegro ([..] aqui ela
não mora) e só tem condições de
imaginar seqüestros, metralhadora, granada, cano longo.No seu medo, hesita
entre correr e enfrentar – é homem ou não
é homem?- mas, categórico, nega a
entrada no prédio e vai apertando os botões dos apartamentos: - Estou sendo assaltado, pressionado, liguem
para o 190, sei lá. E, avisa: Vou
chamar a polícia para espanto daqueles que, em paz, só querem fazer cinema:
Chamar a polícia?
Em meio aos
empecilhos, o narrador explica: a
idéia foi dele. A compra , em terceira mão, de uma câmara foi dele. O projeto
foi dele: Imagens exclusivas, colhidas na
vida da classe média: como é ter um carro na garagem, dinheiro,
internet e piscina. A idéia é entrar num
apartamento do prédio, de supetão, e
filmar, fazer uma entrevista com o morador. Pois o morro ( ele mora no Morro do Pavão), argumenta, está
aberto o tempo todo e é de peito aberto que
os moradores recebem esses que o apresentador do livro, Xico Sá, chama
de sugadores estéticos da pobreza parda, branca ou negra: eles
chegam, querem saber e a gente do morro
fala, desabafa, canta, dança e oferece a sua coca-cola.
Diante do prédio, os cinco negros
com seus nomes - como que de artistas, como que buscando outros destinos que
não o da pobreza Johnattan, Caroline, Nicholson - apenas querem saber como, no domingo, a família
almoça, num projeto montado com tanto sacrifício: pois alguém, dentre
eles, deixou de ir trabalhar, alguém abriu
mão de ficar com a família, esposa,
cadela e filho”. Pensam,
conseguir cartaz, dinheiro e sucesso. Exibir o filme, não um longa, só um curta, no telão
da Escola, no salão de festas do prédio. No Festival de Brasília, no
Festival de Gramado. Mas, a polícia
aparece com a sua sirena. O narrador, agora, assumindo a primeira pessoa, dá a
ordem: Filma. E filmaram tudo, isto é, o
possível: alguns moradores nas sacadas, o porteiro se trancando nos vidros, as
pessoas que apareceram, o trânsito. E, o
que, na verdade não falta nos filmes, a
polícia. Dos planos concebidos, nada restou. E a filmagem foi feita sob a égide
de uma apressada improvisação, resultado desse costumeiro alijamento ao qual –
perdoe-se o lugar comum – são os negros, sempre condenados, na inegável
continuidade do regime escravagista do Brasil.
Para que esse liame passado/presente não seja esquecido, Marcelino Freire e Silvana
Zandomeni idearam essa instigante contra-capa: em fundo branco, um homem negro,
nu. Também, agora, os ditames dos bons costumes exigem uma tarja sobre o que,
na nudez, não deve ser mostrado. Só que nessa tarja, aparece inscrito o registro do ISBN,
que deve constar sempre, em toda publicação, na parte inferior e do lado
direito da contra-capa. Identifica, com seus algarismos e seu código de barra,
a nível internacional, o livro em questão. Em Contos negreiros, deslocado
sobre a figura humana, sugere o preço de uma mercadoria que está à venda.

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