-Você não pode ficar aí olhando para o pátio!
-Não estou olhando para o pátio e sim para o sol.
-Não pode também ficar olhando o
sol.
Diálogo exemplar referido em Memórias
torturadas ( e alegres) de um preso político.
Muitas
vezes Ildeu Manso Vieira faz menção à cidade. A seu nome, ao adjetivo que desse
nome advém, a algum de seus logradouros, à nuanças de luz, ao ar que nela
sopra, ao canto de seus pássaros, a uma efêmera visão apenas entrevista.
Porque
foi somente o que da cidade vislumbrou, o que dela pode perceber nos três anos
em que esteve preso. Curitiba, Avenida Paraná, Rua Marechal Floriano, Rua
Presidente Carlos Cavalcanti, Praça Rui Barbosa. Frio curitibano, céu
curitibano. Um sábado cinza, outro pleno de sol; uma sexta feira pesada de
templo nublado, um pálido sol, tardes
embaçadas, nevoeiro; um vento gelado, a brisa da madrugada. O canto agourento
do anu ou a voz alegre dos passarinhos nas ruas. Ao redor da cadeia, as árvores
copadas com seu verde garrafa eram, naquele
mundo repugnante cercado de muralhas,
um lenitivo para os presos. Como, poder olhar, numa das saídas da prisão para
os interrogatórios, as azáleas floridas
nas alamedas limpas e bem cuidadas da cidade.
No
dia 14 de setembro de 1975, numa das ruas centrais de Curitiba, foi dada a
Ildeu Manso Vieira, a voz de prisão que não precisa de motivos comprovados para
ser dada, como é usual nos regimes de exceção. Obedecendo às ordens de dois homens grandalhões, ele entrou no
carro, um fusca branco sem placa. Ao
chegar ao destino, devidamente algemado e encapuzado, foi submetido ao
interrogatório: iniciava-se a sessão de tortura, a primeira das muitas outras
que iriam ocorrer ao longo desse tempo em que permaneceu na prisão. Experiência
que deu origem ao livro Memórias torturadas (e alegres) de um preso
político.
Na
verdade, embora houvesse a preocupação por parte do governo estabelecido de que
tais fatos não fossem divulgados, eles sempre chegavam aos ouvidos de alguns,
aquela minoria atenta ao que se passa a seu redor, ainda que nem sempre
disposta a tomar partido diante dos desatinos oficiais. Mas o que, realmente,
acontecia nos porões do Sistema permaneceu, na época e, depois, por muito tempo, desconhecido dos
brasileiros. Assim, somente em 1991, o testemunho de Ildeu Manso Vieira viria à
luz, publicado sob os auspícios do Governo do Estado do Paraná. O relato das
torturas que sofreu e de seu cotidiano na
cadeia é um inequívoco registro do comportamento daqueles que sem condições
intelectuais, culturais e morais usaram, sem possuir o menor discernimento, do
poder que lhe foi auferido. Igualmente, um registro do imenso esforço dos
presos para suportar a falta de higiene, a má qualidade da alimentação, a
ausência de tratamento médico, o constrangimento advindo da falta de
privacidade e não se deixar vencer pelo cativeiro.
Um
universo composto pelos agentes do Sistema e por aqueles que pelo Sistema foram
trancafiados a oferecer toda uma galeria de perfis que, no entanto, Ildeu Manso
Vieira não abrigou sob um maniqueísmo partidário: delatores, subservientes,
invejosos, valentes, convictos, solidários, inescrupulosos, cruéis,
dissidentes, dogmáticos, justos.
Se,
entre os que detinham o poder e seus esbirros prevalecia o uso da violência e
das tramóias jurídicas, a heterogeneidade dos presos políticos trancafiados
num espaço exíguo, tornava o convívio
extremamente difícil: Era o mesmo que
colocar, em um canil, ratos neuróticos, gatos enfurecidos e cães raivosos. Mas, como seres humanos, vivendo nos
porões da cidade, se revelaram, neste relato de Ildeu Manso Vieira, nas suas misérias e nas suas grandezas.

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