domingo, 14 de agosto de 2005

A cidade e seus porões


-Você não pode ficar aí olhando para o pátio!
-Não estou olhando para o pátio e sim para o sol.
-Não pode também  ficar olhando o sol.

Diálogo exemplar referido em Memórias torturadas ( e alegres) de um preso político.

           

            Muitas vezes Ildeu Manso Vieira faz menção à cidade. A seu nome, ao adjetivo que desse nome advém, a algum de seus logradouros, à nuanças de luz, ao ar que nela sopra, ao canto de seus pássaros, a uma efêmera visão apenas entrevista.

            Porque foi somente o que da cidade vislumbrou, o que dela pode perceber nos três anos em que esteve preso. Curitiba, Avenida Paraná, Rua Marechal Floriano, Rua Presidente Carlos Cavalcanti, Praça Rui Barbosa. Frio curitibano, céu curitibano. Um sábado cinza, outro pleno de sol; uma sexta feira pesada de templo nublado,  um pálido sol, tardes embaçadas, nevoeiro; um vento gelado, a brisa da madrugada. O canto agourento do anu ou a voz alegre dos passarinhos nas ruas. Ao redor da cadeia, as árvores copadas com seu verde garrafa eram, naquele mundo repugnante cercado de muralhas, um lenitivo para os presos. Como, poder olhar, numa das saídas da prisão para os interrogatórios, as azáleas floridas nas alamedas limpas e bem cuidadas da cidade. 
 

            No dia 14 de setembro de 1975, numa das ruas centrais de Curitiba, foi dada a Ildeu Manso Vieira, a voz de prisão que não precisa de motivos comprovados para ser dada, como é usual nos regimes de exceção. Obedecendo às ordens de dois homens grandalhões, ele entrou no carro, um fusca branco sem placa. Ao chegar ao destino, devidamente algemado e encapuzado, foi submetido ao interrogatório: iniciava-se a sessão de tortura, a primeira das muitas outras que iriam ocorrer ao longo desse tempo em que permaneceu na prisão. Experiência que deu origem ao livro Memórias torturadas (e alegres) de um preso político.

            Na verdade, embora houvesse a preocupação por parte do governo estabelecido de que tais fatos não fossem divulgados, eles sempre chegavam aos ouvidos de alguns, aquela minoria atenta ao que se passa a seu redor, ainda que nem sempre disposta a tomar partido diante dos desatinos oficiais. Mas o que, realmente, acontecia nos porões do Sistema permaneceu, na época e, depois,  por muito tempo, desconhecido dos brasileiros. Assim, somente em 1991, o testemunho de Ildeu Manso Vieira viria à luz, publicado sob os auspícios do Governo do Estado do Paraná. O relato das torturas que sofreu  e de seu cotidiano na cadeia é um inequívoco registro do comportamento daqueles que sem condições intelectuais, culturais e morais usaram, sem possuir o menor discernimento, do poder que lhe foi auferido. Igualmente, um registro do imenso esforço dos presos para suportar a falta de higiene, a má qualidade da alimentação, a ausência de tratamento médico, o constrangimento advindo da falta de privacidade e não se deixar vencer pelo cativeiro.

            Um universo composto pelos agentes do Sistema e por aqueles que pelo Sistema foram trancafiados a oferecer toda uma galeria de perfis que, no entanto, Ildeu Manso Vieira não abrigou sob um maniqueísmo partidário: delatores, subservientes, invejosos, valentes, convictos, solidários, inescrupulosos, cruéis, dissidentes, dogmáticos, justos.

            Se, entre os que detinham o poder e seus esbirros prevalecia o uso da violência e das tramóias jurídicas, a heterogeneidade dos presos políticos trancafiados num  espaço exíguo, tornava o convívio extremamente difícil: Era o mesmo que colocar, em um canil, ratos neuróticos, gatos enfurecidos e cães raivosos. Mas, como seres humanos, vivendo nos porões da cidade, se revelaram, neste relato de Ildeu Manso Vieira,  nas suas misérias e nas suas grandezas.

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