domingo, 28 de agosto de 2005

Os chapéus


                Ao longo do romance, ele se revela por um gesto, uma atitude, seu jeito de vestir e, muito,  por esses chapéus que o acompanham e estão sempre como que a compor-lhe a comovente figura.

            O passageiro do bonde [...], assim tem começo  O Louco do Cati, romance  de Dyonélio Machado. O  narrador, após definir o seu olhar, se detém no que nele havia, talvez, de extraordinário, o chapéu que usa: Um chapéu de copa alta, fendida bem no centro, como um desses pães que antes de ir ao forno as donas de casa entalham com um gesto fácil e profissional de bordo de mão. Nesse primeiro capítulo,  o personagem, o passageiro do bonde,  passa a ser o homem do chapéu pois nesse chapéu o  cobrador se fixa como, também, os  passageiros, curiosos em relação a sua pessoa e ao seu chapéu. Curiosidade que irá se repetir na viagem empreendida  com o grupo que ideara a excursão de Porto Alegre para o litoral. Ao pedirem informações a um praieiro, este,  apreensivo, olha para ele e para o seu chapéu. Plena de incidentes, a viagem se prolonga até o Rio de Janeiro. De regresso, em dado momento, o coronel que dele estava encarregado,  percebe o chapéu  que usa, forçando-lhe as orelhas para baixo. Porque, então, já era um outro chapéu. O primeiro, que sobressaía de seu dorso curvo, que harmonizava com seu colete, que os companheiros lhe põem na cabeça quando ele muda de lugar na caminhão em que viajavam,  Norberto,  que o anexara ao grupo,  empenhara ou vendera com o fito de enfrentar as despesas. Episódio que não consta do relato e  se revela, mais tarde, quando, ao chegarem, na prisão do Rio de Janeiro, Norberto, preocupado com a aparência do companheiro,  reflete, que, talvez,   não devesse ter metido  o pau naquele chapéu de copa alta, o chapéu dele. Igualmente, não  figura no relato, como obteve o boné de brim.  Na praia , logo no começo da viagem,  enquanto Norberto joga baralho , ele permanece esperando num  canto.Já estava sem o chapéu. Em sua substituição, trazia um boné de brim ( desses de praia), com uma pala de celulóide, também verde. Enterrado até as orelhas na sua cara escura,  não o salva da curiosidade dos passageiros do ônibus, no trajeto em que viajavam, ele e Norberto, já presos. Obedecendo a orientação de Norberto (não aparece explícita, apenas sugerida)  no restaurante  tira, vivamente, o boné da cabeça e o põe no bolso.  Depois, na saída da cadeia, em Florianópolis, Norberto manda que tire o boné e deixe de lembrança aos amigos de cela. Como lhe parece que tem menos jeito de andar sem chapéu, lhe dá o seu, enfiando-o na sua cabeça: Ficava grande. Entrava até as orelhas, as quais dobravam prá fora, sob a pressão das abas, como duas asa.

            E é este chapéu que irá usar, a partir de então. Ao ser posto em liberdade da prisão do Rio de Janeiro,  esquece as recomendações de Norberto, já livre, e com ele se desencontra. Porque reconhece o chapéu que havia sido seu, comprado em Montevidéu, Norberto dá por ele a espiar numa fresta de construção. Em outro dia,  quando  o  prepara para uma visita e coloca na sua cabeça o chapéu, Norberto lembra do outro, o de copa alta, o chapéu armado, que possuía.  Já na viagem de volta, há um momento em que a gola da capa de chuva esbarra contra o chapéu muito folgado, que lhe bailava na cabeça; em outro, permanece com o chapéu molhado  que  esmagava molemente umas orelhas, aparentemente tornadas também amolecidas com a chuva;  em outro, ainda,   deseja colocar algo no bolso, se atrapalha e não pode ajudar com a outra mão porque se achava ocupada com o chapéu.

            Se os chapéus do Louco do Cati despertam  a curiosidade e a sua singeleza submissa induz à solidariedade, eles são, também, motivos para tornar claro como ele se deixa levar nesse longo itinerário percorrido que o distancia de seu lugar de origem e que a ele o conduz de volta com a paciência de quem espera.

 

 

domingo, 21 de agosto de 2005

A filmagem


            A capa em branco e preto.  Despojada tanto quanto pode ser, num fundo branco, a figura nua de um homem negro, de costas,  do qual os ditames dos bons costumes fazem esconder as nádegas sob uma breve tarja na qual se inscreve o título do livro, Contos Negreiros (Rio de Janeiro, Record, 2005).  
            No índice, são mencionados não os contos mas os cantos: dezesseis textos que, se não possuem a estrutura tradicional do conto e tampouco a métrica e o ritmo do canto são,  abandonada a rigidez dos conceitos, o que o autor, Marcelino Freire,  determina que sejam. A narrativa em que prevalece, sobretudo, a síntese e privilegia um momento no qual se vislumbram o passado e o futuro,   feita de uma linguagem,  marcada pelo espontâneo e o singelo de um falante que deixa fluir a emoção, expressa, sempre, o sentimento dos marginalizados: os transgressores, os homossexuais, as prostitutas, os miseráveis.  Retalhos de vida se estabelecem. Tristeza no grande medo de enfrentar a vida; no sonho impossível de vir a ser branca, bonita e rica como o modelo da televisão;  na indignação  diante do fado feminino a legislar servidões; na miséria levando à venda de um rim (de um olho,  de um pé) ou do próprio corpo.

            Lirismo a emergir da cada um dos cantos, assim como de cada um deles emergem as  contradições  do sistema, como por exemplo a autoridade a proibir a  venda que um individuo queria fazer de seus órgãos mas não lhe oferece nenhuma condição para  suprir as suas mais elementares necessidades de alimentação ou de saúde.

Admirável no entrelaçar das vozes narrativas, na construção do diálogo, no ritmo da ação,o canto II, “Solar dos príncipes”.  Um narrador  que está próximo do que acontece como o indica o demonstrativo, dá início ao relato, informando: Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio.Talvez seja dele, também o testemunho sobre as palavras do porteiro  no seu susto (Meu Deus!) ou nas suas prováveis interrogações (O que vocês querem?, Qual o apartamento?, Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?). Porém, logo,  uma das pessoas do grupo  assume a narrativa quando responde: Estamos fazendo um filme,  explicação que se completa na voz feminina ao acrescentar: Um documentário.  Reposta que não convence, no diálogo em que um dos interlocutores tem ouvidos moucos, embora também seja preto. Mas a serviço dos moradores do prédio -  gerente de banco, médico, advogado (provavelmente brancos)  -     lhes endossa os preconceitos e, diante do que lhe é dito, não  sabe discernir o que é um documentário, o que é um longa-metragem e, possivelmente, quem é  Fernanda Montenegro ([..] aqui ela não mora) e só  tem condições de imaginar seqüestros, metralhadora, granada, cano longo.No seu medo, hesita entre correr e enfrentar – é homem ou não é homem?- mas,  categórico, nega a entrada no prédio e vai apertando os botões dos apartamentos: - Estou sendo assaltado, pressionado, liguem para o 190, sei lá. E, avisa: Vou chamar a polícia para espanto daqueles que, em paz, só querem fazer cinema: Chamar a polícia?

             Em meio aos  empecilhos, o narrador  explica: a idéia foi dele. A compra , em terceira mão, de uma câmara foi dele. O projeto foi dele: Imagens exclusivas, colhidas na vida da classe média:  como é ter um carro na garagem, dinheiro, internet e piscina. A idéia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador. Pois o morro (  ele mora no Morro do Pavão), argumenta, está aberto o tempo todo e é de peito aberto que  os moradores recebem esses que o apresentador do livro, Xico Sá, chama de sugadores estéticos da pobreza parda, branca ou negra: eles chegam, querem saber e  a gente do morro fala, desabafa, canta, dança e oferece a sua coca-cola.

            Diante do prédio, os cinco negros com seus nomes - como que de artistas, como que buscando outros destinos que não o da pobreza Johnattan, Caroline, Nicholson -   apenas querem saber como, no domingo, a família almoça, num projeto montado com tanto sacrifício: pois alguém, dentre eles,  deixou de ir trabalhar, alguém abriu mão de ficar com a família, esposa, cadela e filho”.  Pensam,  conseguir cartaz, dinheiro e sucesso. Exibir o filme, não um longa, só um curta,  no telão  da Escola, no salão de festas do prédio. No Festival de Brasília, no Festival de Gramado. Mas, a  polícia aparece com a sua sirena. O narrador, agora, assumindo a primeira pessoa, dá a ordem: Filma. E  filmaram tudo, isto é, o possível: alguns moradores nas sacadas, o porteiro se trancando nos vidros, as pessoas que apareceram,  o trânsito. E, o que, na verdade não falta nos filmes,  a polícia. Dos planos concebidos, nada restou. E a filmagem foi feita sob a égide de uma apressada improvisação, resultado desse costumeiro alijamento ao qual – perdoe-se o lugar comum – são os negros, sempre condenados, na inegável continuidade do regime escravagista do Brasil.
 

 Para que esse liame  passado/presente não  seja esquecido, Marcelino Freire e Silvana Zandomeni idearam essa instigante contra-capa: em fundo branco, um homem negro, nu. Também, agora, os ditames dos bons costumes exigem uma tarja sobre o que, na nudez, não deve ser mostrado. Só que nessa tarja,  aparece inscrito o registro  do ISBN,  que deve constar sempre, em toda publicação, na parte inferior e do lado direito da contra-capa. Identifica, com seus algarismos e seu código de barra, a nível internacional, o livro em questão. Em Contos negreiros, deslocado sobre a figura humana, sugere o preço de uma mercadoria que está à venda.

 

 

 

 




domingo, 14 de agosto de 2005

A cidade e seus porões


-Você não pode ficar aí olhando para o pátio!
-Não estou olhando para o pátio e sim para o sol.
-Não pode também  ficar olhando o sol.

Diálogo exemplar referido em Memórias torturadas ( e alegres) de um preso político.

           

            Muitas vezes Ildeu Manso Vieira faz menção à cidade. A seu nome, ao adjetivo que desse nome advém, a algum de seus logradouros, à nuanças de luz, ao ar que nela sopra, ao canto de seus pássaros, a uma efêmera visão apenas entrevista.

            Porque foi somente o que da cidade vislumbrou, o que dela pode perceber nos três anos em que esteve preso. Curitiba, Avenida Paraná, Rua Marechal Floriano, Rua Presidente Carlos Cavalcanti, Praça Rui Barbosa. Frio curitibano, céu curitibano. Um sábado cinza, outro pleno de sol; uma sexta feira pesada de templo nublado,  um pálido sol, tardes embaçadas, nevoeiro; um vento gelado, a brisa da madrugada. O canto agourento do anu ou a voz alegre dos passarinhos nas ruas. Ao redor da cadeia, as árvores copadas com seu verde garrafa eram, naquele mundo repugnante cercado de muralhas, um lenitivo para os presos. Como, poder olhar, numa das saídas da prisão para os interrogatórios, as azáleas floridas nas alamedas limpas e bem cuidadas da cidade. 
 

            No dia 14 de setembro de 1975, numa das ruas centrais de Curitiba, foi dada a Ildeu Manso Vieira, a voz de prisão que não precisa de motivos comprovados para ser dada, como é usual nos regimes de exceção. Obedecendo às ordens de dois homens grandalhões, ele entrou no carro, um fusca branco sem placa. Ao chegar ao destino, devidamente algemado e encapuzado, foi submetido ao interrogatório: iniciava-se a sessão de tortura, a primeira das muitas outras que iriam ocorrer ao longo desse tempo em que permaneceu na prisão. Experiência que deu origem ao livro Memórias torturadas (e alegres) de um preso político.

            Na verdade, embora houvesse a preocupação por parte do governo estabelecido de que tais fatos não fossem divulgados, eles sempre chegavam aos ouvidos de alguns, aquela minoria atenta ao que se passa a seu redor, ainda que nem sempre disposta a tomar partido diante dos desatinos oficiais. Mas o que, realmente, acontecia nos porões do Sistema permaneceu, na época e, depois,  por muito tempo, desconhecido dos brasileiros. Assim, somente em 1991, o testemunho de Ildeu Manso Vieira viria à luz, publicado sob os auspícios do Governo do Estado do Paraná. O relato das torturas que sofreu  e de seu cotidiano na cadeia é um inequívoco registro do comportamento daqueles que sem condições intelectuais, culturais e morais usaram, sem possuir o menor discernimento, do poder que lhe foi auferido. Igualmente, um registro do imenso esforço dos presos para suportar a falta de higiene, a má qualidade da alimentação, a ausência de tratamento médico, o constrangimento advindo da falta de privacidade e não se deixar vencer pelo cativeiro.

            Um universo composto pelos agentes do Sistema e por aqueles que pelo Sistema foram trancafiados a oferecer toda uma galeria de perfis que, no entanto, Ildeu Manso Vieira não abrigou sob um maniqueísmo partidário: delatores, subservientes, invejosos, valentes, convictos, solidários, inescrupulosos, cruéis, dissidentes, dogmáticos, justos.

            Se, entre os que detinham o poder e seus esbirros prevalecia o uso da violência e das tramóias jurídicas, a heterogeneidade dos presos políticos trancafiados num  espaço exíguo, tornava o convívio extremamente difícil: Era o mesmo que colocar, em um canil, ratos neuróticos, gatos enfurecidos e cães raivosos. Mas, como seres humanos, vivendo nos porões da cidade, se revelaram, neste relato de Ildeu Manso Vieira,  nas suas misérias e nas suas grandezas.

domingo, 7 de agosto de 2005

Para além das imagens


             Num breve e denso artigo, “A recepção literária de Neruda em Portugal”, Manuel G. Simões historia a presença de Pablo Neruda em Portugal, desde 1946, possivelmente o ano em que, pela primeira vez, um poema seu, “Farewel”, traduzido por Jorge Emilio, aparece na Antologia Confronto, até 2004 quando alguns textos registram, sobretudo, o centenário de seu nascimento. Na verdade, uma presença que  só tardiamente irá se enriquecer o que, sem dúvida,  nada tem a ver com a qualidade da obra mas com as orientações ideológicas que determinaram as edições portuguesas e as importações de livros durante os muitos anos da ditadura fascista em Portugal. A esse cuidadoso estudo que reúne valiosas informações sobre as relações de poetas portugueses com Pablo Neruda  e sobre seus livros publicados em Portugal, sobretudo ns últimas décadas, seguem -se a tradução de “A lâmpada marinha” e de “Saudade” feitas por Manuel G. Simões, a lista das principais edições em Portugal das obras do poeta chileno, compreendidas entre 1969 e 2004, um estudo de Eugênio Lisboa, “Pablo Neruda e o Livro”. E  a antologia organizada por Cristino Cortes,  sob a rubrica “Neruda, cem anos  depois” que, também,  dá o título à obra, publicada em 2004, pela Universitária Editora, de Lisboa. Os setenta e sete poetas portugueses que dela fazem parte, na sua maioria nascidos nas décadas de 20,30 e 40,  homenageiam não apenas o homem comprometido com as causas sociais e a sua voz que é, também a voz  de um homem amoroso mas, a beleza e o fascínio de sua expressão.

Entre os poemas, “Seis fotografias de Pablo Neruda”, de Nicolau Baião, surpreende pelo inusitado ao descrever, aparentemente em prosa,  fotos do Poeta. São frases curtas  que, em seis tempos, traçam uma biografia feita de emoções presumidas por aquele que tem diante de si as fotos que imagina. Assim, embora haja um registro de tempo ( o Poeta aos três anos e aos seis, já adolescente, aos vinte e três anos, depois, adulto), e de espaço ( sala de aula, uma praça de Santiago, uma sala),  e a menção às pessoas com as quais ele está ou que o rodeiam ( o pai, o professor, uma jovem colega, os passantes, César Vallejo), e a um detalhe de seu traje (veste uma camisa branca de pregas) ou de seu cabelo (o cabelo é um pouco revolto, como se lhe tivesse dado um brisa indiscreta e prazenteira)  a comporem a imagem, o que Nicolau Saião quer fixar é o sentir do Poeta na sua relação com o mundo. Um  sentir vislumbrando no olhar ou num gesto, numa expressão. Na “Primeira foto”, a  expressão ansiosa do menino de três anos, sua mão como que “enclavinhada na fímbria do casaco de seu progenitor. Nas demais, presentes, no olhar, o susto, algo de inquietação, serenidade e decisão. Já adulto, mostra no rosto uma ricto intraduzível, um claro sofrimento.  Como o narrador ficcional que tudo conhece de seu personagem, Nicolau Saião ou sabe ou presume saber mais do que a foto deixa ver. Então, os limites da realidade e da invenção se esbatem. Há nomes de pessoas, de lugares e de livros; há suposições e dados improváveis nas afirmações desse falante, presente no texto, que se deixa ver na autoridade de uma primeira pessoa do plural ( podemos imaginar), e no ater-se ao que, em princípio, pode ser do conhecimento de todos ( entende-se, percebe-se)   ou ao que ninguém ignora (é sabido)  para, nessa cumplicidade, delinear o poeta chileno, menos na sua imagem do que nos seus momentos vividos.  E’quando se mostra irrelevante rastrear o falso e o  verdadeiro nesse dizer poético de Nicolau Baião.