domingo, 11 de julho de 2004

Nerudianas: Ode à colher


         Em 1954, Pablo Neruda publica Odas elementales, resultado de seu desejo, assim o explica em Confieso que he vivido, de reescrever muitas coisas já contadas, ditas e reditas. Foi um livro muito bem recebido pela crítica, mesmo daquela que, até então, lhe havia sido adversa. Nele revelou, como nos que se lhes seguiram, Nuevas odas elemementales (1956) e Tercer libro de las odas (1957), um novo rumo na sua poesia, um dos seus mais ricos ciclos poéticos. Com admirável claridade e alegria, busca mostrar a beleza das coisas simples, aceitando o dever que acredita ser o do poeta: cantar para todos e, com o seu canto, dar um sentido à vida.

            “Oda a la cuchara” (Ode à colher) pertence ao Tercer libro de las odas, cujo primeiro poema, “Odas de todo el mundo”, como a “Ode à crítica I” e “Ode à crítica II” (respetivamente de Odas elementales e de Nuevas odas elementales), é um dos manifestos desse lirismo que pretende doutrinar com versos: o que é belo também é um ensinamento para os homens. Como o pregão de um mascate – Eu vendo odes, De tudo / um pouco / tenho / para todos – Pablo Neruda as oferece: elas são de todas as cores e tamanhos, seráficas, selvagens, finas / enroladas / como arame ou de inclinação dolorida / cobertas / pelo / aroma / enterrado / dos lilás. Um universo em que se misturam as escuras alegrias infundadas, as coisas do coração partido, com a simplicidade do cotidiano, presente no tomate, no cimento, nos trens, na colher.

            A estrofe inicial da “Ode a la cuchara” remete a esse querer transmitir ensinamentos. Nos primeiros versos, define a colher como a concha, a mais antiga mão do homem, cuja forma, na madeira ou no metal de que é feita, deixa perceber, ainda, o molde / da palma / primitiva [...], oco nascido da palma de sua mão, ao qual o homem acrescenta um braço de madeira. Assim, espalhou-se por itinerários feitos de montanhas, rios, barcos e cidades, castelos e cozinhas onde o difícil – algo na aparência tão óbvio, mas que o Poeta não deixa por dizer – foi ela juntar-se com o prato do pobre e com sua boca.

A quinta estrofe é feita da voz do Poeta , não mais a defini-la, cada / vez / mais / perfeita, a lembrar que, pequenina, na mão da criança, lhe oferece o mais antigo / beijo da terra /[...], porém a assumir um coletivo indicado pelo verbo, na primeira pessoa do plural, que propõe o tempo de uma nova vida. Os verbos lutar e cantar, indicando as ações necessárias, num gerúndio a expressar continuidade, e o verbo será a expressar a certeza desse mundo sem fome que o Poeta vislumbra. E que imagina imenso com todos os pratos na mesa, um vapor oceânico de sopa e um total movimento de colheres. O alimento, um direito de todos os homens como a beleza e a alegria, representada pelas flores, acrescidas a essa mesa posta e farta. Flores humanizadas pelo adjetivo felizes que envolve também o alimento (a sopa fumegando) e aos que dele usufruem (compreendidos no total movimento de colheres). Significado luminoso e em acorde com o pensamento do Poeta ao almejar uma sociedade sem castas. E, em acorde com os primeiros percursos da colher ao abrigar a água e o sangue / selvagem / palpitação / de fogo e caçada e a herança silenciosa, / das primeiras águas que cantaram. Na sua voz, que deseja ensinar, se mistura a que procura o interlocutor (Sim, colher, diz um de seus versos) e a que exprime a sua esperança e a de outros na utopia de entrever o mundo sem fome. E iluminado pela beleza das flores felizes.

 

 

 

Um comentário:

  1. Muito interessante essa ode a colher, como um poeta consegue acoplar os utilitários utilizados pelos homens, fazendo um histórico de sua evolução, bem como seu uso tanto pelo pobre como pelo rico. Imagino que as colheres foi um instrumento primeiramente utilizado pelos de poder aquisitivo maior.

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