domingo, 18 de julho de 2004

Nerudianas: Ode ao beija-flor


            No dia 5 de fevereiro de 1948, o Tribunal de Justiça do Chile emitiu uma ordem de prisão contra Pablo Neruda que, passa, ajudado por amigos e durante meses, a viver escondido no seu país. O relato sobre esse período em que viveu de casa em casa, ludibriando a polícia, até atravessar os Andes a cavalo e chegar a San Martin de los Andes, na Argentina, foi feito por seu amigo José Miguel Varas no livro Neruda clandestino (Santiago, Alfaguara, 2003). Baseando-se, principalmente em três textos – o de Jorge Bellet, publicado na revista Araucária, o de Victor Bianchi, “Misión al lago Maihue” e o discurso de Pablo Neruda quando da entrega do Prêmio Nobel – além de outros, consultou, também, a imprensa da época e ouviu o testemunho de pessoas que, nesse período de clandestinidade da vida do Poeta, com ele conviveram. Entre eles o de Jaime Perelman que na época tinha doze anos e que cedeu o seu quarto e sua cama, para que os pais pudessem abrigar o Poeta e Delia Del Carril. Lembra-se que, fechados em casa, Pablo Neruda escrevia o Canto General e sua mulher passava o dia desenhando mãos e cavalos em grandes folhas de papel. À tarde, ao chegar das aulas ele e o irmão conversavam com o Poeta que lhes contava histórias de elefantes, de aves, de macacos ou improvisava cenas teatrais em que eram os donos dos textos e das atuações. Porém, desse convívio, o que mais o impressionou foi a “Operação beija-flores”. Pablo Neruda havia observado que nas trepadeiras floridas da casa vizinha apareciam muitos beija-flores para se alimentar. Pensou em atrai-los para os galhos secos do arbusto que estava perto de uma janela da casa onde se hospedava, explicando o seu plano para os meninos: primeiro fazer flores de papel colorido e, então, colocar sob elas, presas com arame, ampolas de injeção cheias de mel diluído na água. Ainda que toscas e de tamanhos diferentes, os beija-flores se deixaram enganar e iam diariamente sorver o mel das estranhas flores para alegria dos meninos e do Poeta.

            Anos depois, em 1955, Pablo Neruda compõe as odes que publica sob o título Nuevas Odas elementales (Buenos Aires, Losada, 1956). Entre as cinqüenta que dele fazem parte, a “Oda al pica-flor”. À semelhança de outros que fazem parte do livro, é um longo poema. Muito breves como a acompanharem o vôo relâmpago do pequeno pássaro, os versos o definem, aproximando-os da água, do fogo, do arco-íris. Dizem de seus movimentos (minúscula bandeira voadora, vibração do mel / raio de pólen) e metaforicamente, o descrevem numa sucessão de imagens (semente do sol, fogo emplumado, fio de ouro, fogueira verde). Entre elas, o Poeta o interpela (o que es, / de onde te originas?), numa pergunta cuja resposta ele próprio encontra. E perguntas e respostas expressam essa inclinação que possui o Poeta de se maravilhar diante das coisas e dos seres. Imagina-o nas antigas eras (na idade cega do dilúvio), no percurso mágico das transformações (a rosa congelada em antracita; o fragmento desprendido do réptil: última / escama cósmica, uma / gota / do incêndio terrestre para ser, agora, feito de beleza. Resposta a qual se encadeiam os dizeres sobre sua vida (dormes numa noz, giras / como luz na luz / ar no ar), sobre sua valentia (o falcão / com sua negra plumagem / não te amedronta), sobre as suas cambiantes cores (escarlate, amarelo, verde, laranja, negro).

            Na inigualável invenção com que se serve das palavras, o Poeta faz nessa ode explodirem nuanças de cor e danças do vôo, recriando o encanto sempre tão efêmero que é a presença de um beija-flor. Pequeno ser supremo, milagre que arde desde a Califórnia até a Patagônia, ele diz e ao esboçar a geografia americana, não lhe nega esse destino de Continente massacrado que os últimos versos do poema não deixam esquecer quando à luminosa figura do beija-flor, Pablo Neruda contrapõe a sombra ao definir o beija-flor também como pétala dos povos que calaram, / sílaba do sangue enterrado, / penacho / do antigo / coração/submerso.

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário