Hoje, Tomas Eloy Martinez é um dos
importantes romancistas argentinos. Sua obra atravessou, o que não é muito
freqüente em relação aos escritores da América Latina, as fronteiras do Brasil,
em traduções que se sucederam: Santa Evita (1996), O romance de Perón
(1998), O Vôo da Rainha (2002) e, anunciado para outubro deste ano, pela
Companhia das Letras, El cantor de tangos. No entanto, talvez, poucos se
lembrem de um texto seu, publicado no primeiro número de Versus, um jornal bimestral de reportagens, idéias e
cultura, fundado por Marcos Faerman. Na capa, de Luiz Gê, tornado conhecido
pela sua colaboração na revista O Balão, criada pelos estudantes da USP, em oposição à
censura instaurada pela Ditadura Militar, o desenho de um rosto. Dele, muito
próximo, em desespero ou em prece ou algemadas, se alçam as mãos. Em tamanhos
diversos, esse rosto se repete em branco e preto e, maior, em vermelho, mancha
gritante e denunciadora, cujo significado se completa nos títulos das matérias.
“Eu fui condenado à morte. (Confissões de um repórter argentino). Eu me
condenei à morte. (Diário de um escritor peruano). Nós vivemos na morte. (A
vida num hospital mineiro)”. A primeira delas foi assinada por Tomas Eloy
Martinez que uma nota explica tratar-se de um jornalista argentino,
conceituado, não somente por editar o “Suplemento Cultural” de La Opinión,
como por seu livro La pasión según Trelew (1973), relato do massacre de
dezesseis políticos, ocorrido numa base naval Argentina e, nesse ano, um dos
livros mais vendidos. Já a violência que se instalara no país, explodia em
todas as frentes, diz Jacobo Timerman no seu livro Prisioneiro sem nome,
cela sem número (Rio de Janeiro, Codecri, 1982). Coexistiam, na Argentina: guerrilhas trotkistas urbanas e rurais;
esquadrões da morte peronistas de direita; grupos terroristas armados
pertencentes aos grandes sindicatos, para cuidar de questões sindicais; grupos
paramilitares das Forças Armadas, dedicados à vingança de seus homens
assassinados; grupos parapoliciais, tanto da esquerda quanto da direita,
disputando a supremacia dentro das forças policiais federais e provincianas; e
grupos terroristas de direitistas católicos, organizados por conspiradores
opostos às propostas do Papa João XXIII de reconciliação com os padres liberais
de esquerda, que buscavam aplicar – geralmente com um zelo anárquico – a tese
ideológica da reaproximação entre a Igreja e os pobres. Uma situação
dramaticamente caótica que tornou possível a um senador declarar, em discurso
no Parlamento, Na Argentina, sabe-se quem mata, mas não quem
morre.
Houve um
momento, relata Jacobo Timerman, em que reunidos na sede do jornal La
Opinión, para analisar a situação, um grupo de jornalistas políticos e
trabalhistas decidiram que ainda havia esperanças e que precisavam, apenas, dar
início à batalha de tudo explicar. Porém, houve, e em muito maior número,
aqueles momentos em que se tornava claro ser impossível compactuar com a
violência que agredia, indistintamente, induzindo a vasta maioria da população
ao silêncio. Um silêncio que Tomas Eloy Martinez recusava. E, num país onde, em
poucos anos, uma centena de jornalistas havia desaparecido, não foi uma surpresa
ver seu nome encabeçando a lista das pessoas que, segundo a AAA (Alianza
Anti-comunista Argentina) deveria deixar o país em 48 horas. Até então,
continuara a trabalhar no jornal e a não dar importância às ameaças recebidas
pelas chamadas telefônicas e pelos toques de campainha, no meio da noite,
embora soubesse que elas eram um sinal
inequívoco do pântano nacional da insegurança fatal em que, ele, tanto
quanto seus compatriotas, se moviam. Contudo, ao tomar conhecimento de que dois sujeitos tinham interrogado o
porteiro do edifício, onde morava, sobre os seus hábitos e outros haviam
anotado as características de seu automóvel, decidiu levar a sério as
intimidações e pedir ajuda a Jacobo Timerman, dono do La Opinión, que já
o havia escondido durante uma semana, para deixar o país. No texto da Versus,
tradução do que foi publicado em La Opinión, Tomas Eloy Martinez
fala sobre o que ocorria na Argentina em 1974 e dos esforços que então fez para
ficar no seu país e daquele que estava fazendo para voltar. Entretanto o que
relata – as agressões reais e as ameaças constantes a estabelecer o medo no
país, as perseguições, os assassinatos – ao isentá-lo da humilhante
cumplicidade do silêncio, igualmente, sela a sua sorte: O homem que escreveu esta reportagem
é um condenado à morte, consta uma nota que acompanha o seu texto.
Fora da Argentina, ainda que lhe digam, e ele o
repete, não ser mais habitual ver pelas ruas o Ford Falcon em busca de suas
presas, nem tantos cadáveres despedaçados, atirados nos depósitos de lixo e
terem se tornado raras as ameaças de morte, o medo não o abandona porque
reconhece que deixou de ser, como jornalista, testemunha dos fatos para se
converter em protagonista. Então, o que escreve, também é a sua história.
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