domingo, 27 de junho de 2004

Poema para o Che


             A quinta edição de Cuestiones com la vida, da Galerna de Buenos Aires, segundo os editores, foi enriquecida com novos poemas e novas experiências de Humberto Costantini, (1924 – 1987), romancista e dramaturgo, considerado um escritor farol de sua geração. Este seu livro, publicado em 1986, divide-se em onze partes com um número desigual de poemas e na quarta, sob o título de “Más cuestiones con la vida”, o poema “Che”. Seus cinqüenta e três versos, cada um deles antecedido de um travessão, anunciando uma voz ou várias vozes que dizem, repetem, imaginam, perguntam, afirmam onde está Che Guevara que saíra de Cuba sem que, por algum tempo, fosse revelado o seu paradeiro.

            Nos quatro primeiros versos, as vozes enunciam o lugar em que ( a lo mejor), provavelmente está; seguem as que juram tê-lo visto. Logo, duas interrogações sobre o seu paradeiro. Uma que se dirige, respeitosamente, a alguém, tratando-o de senhor e a outra, interpelando uma pessoa de nome John. Os versos seguintes têm o verbo na primeira pessoa do plural, deveríamos, a indicar a tarefa que os verbos dos três versos seguintes determinam: filtrar, lavar, picar que, certamente, nada teriam de estranho não fossem os seus objetos: a água dos rios, as caras dos negros, a cordilheira dos Andes. Depois, o verbo dizem, de sujeito indeterminado, que, por sua vez, orientará os três versos seguintes. Ainda, o verso que se inicia com uma conjunção adversativa e com uma conjunção condicional a reafirmarem, no entanto, uma certeza. E os que, novamente, expressam a voz de um eu e mais uma vez falam de probabilidades.

             Cada um dos versos que pretendem dar o paradeiro do Che ou sugeri-lo se constroem com uma inversão do sentido lógico das coisas e afirmando incoerências. Certamente, se abrigam sob o signo de uma grande troça da paranóia que se apossou de vários governos ao buscar saber do paradeiro do Che quando se tornou público não estar mais em Cuba. Como se o simples ato de localizá-lo e prendê-lo fosse a solução para evitar que a idéia de revolução se extinguisse num Continente onde imperavam – e imperam – imensas desigualdades sociais. Assim, aventar a hipótese que talvez estivesse debaixo do tapete, dentro do guarda-roupa ou que, talvez, a cor havana fosse uma senha ou o peixe encarnado, um guerrilheiro parece tão verossímil quanto as afirmações de ter sido visto na forma de um gato nos terraços ou correndo pelos fios de telégrafo. E, maior, a caçoada, contida na pergunta – tem procurado bem dentro de sua cama? – dirigida a um senhor

(Alguém importante? Alguém influente? Alguém poderoso?). E, aquela outra – que é essa barba que aparece no teu casaco? – feita a um John que compreende, então, os outros, inumeráveis, que, ao norte do rio Grande, tem interesse em encontrar esse David rebelde, para eles um perigo no Continente que espoliam sem restrições. A partir dessas perguntas, como se fossem respostas, segue-se uma enumeração de providências a serem tomadas: lavar todas as caras dos pretos (sem dúvida, lembrando bem o racismo dos John), picar a cordilheira dos Andes e por a América do Sul numa garrafa térmica. Providências que mofam de atos oficiais, nem sempre distantes de decisões que, às vezes, beiram o mais perfeito e acabado ridículo.

 Que, na Venezuela, montava num violão; em Buenos Aires, entrava nos acordeões; no Uruguai, desafiava uma milonga com o diabo e, no Brasil, vestido de caboclo, baixava nos terreiros, são as suposições originadas dos disse-que-disse e em estreita relação com a idiossincrasia da maioria dos latino-americanos. Reafirmando, a partir da conjunção adversativa mas se ontem, ainda, saltou em Santo Domingo e da condicional se na Colômbia era cantiga de flibusteiros, as vozes dão fé de sua presença ou com a primeira pessoa do verbo, o vi nesta manha, ou indicada pelo pronome oblíquo: quase me mata na outra noite, ao entrar com um milhão de sátiros no meu sonho. Primeira pessoa que irá manifestar um desagrado três versos depois, não gosto desses berros junto ao peito e uma desconfiança: esses latidos de noite não são cachorros e essa sombra que passa, por que passa?antes do retorno às probabilidades expressas nos quatro últimos versos: provavelmente está no pampa e é grasnido, provavelmente está na rua e é vento. Antecedem as duas últimas que, hoje, é sabido, foram as mais fantasiosas, embora, no poema, sejam as únicas, entre todas as outras, que expressam seriedade para dizer o que é  passível de acontecer (é uma febre que não cura) ou o que é desejado que aconteça (é rebelião e está chegando). Fruto de um profundo desejo, são versos que abandonam o mundo fictício, onde é possível se esconder  embaixo do tapete, dentro do guarda-roupa; se metamorfosear em distintos seres seja um gato, peixe ou cachorro; estar presente na Venezuela, Colômbia, Uruguai, Argentina, Brasil, lugares  que estão bem  longe uns dos outros; realizar proezas somente possíveis num Continente que se permite conviver com um fantástico cotidiano: soltar duendes do espelho, penetrar em sonho alheio, entrar num acordeão. Ou aceitá-lo como crença (e a fé não precisa de explicações): baixar nos terreiros, participar de desafios com o diabo, assumir a forma de um som, ou ser o vento.

E premonitório o verso Essa confusão na Bolívia é coisa sua (Ese lío en Bolívia es cosa suya.), que Humberto Costantini define como adivinhador, ao explicar numa nota que segue o poema, ter ele sido escrito quando Ernesto Guevara ainda vivia. Quando, ainda era possível imaginá-lo invencível e, então, se permitir um poema em que os versos valem, cada um por si, separados sempre por um ponto final; em que as expressões prosaicas ou de um sentido que remete a outro ou, ainda, estranhas ao espanhol, reafirmam a troça que sonho ou exorcismo reina absoluta.

Porém, desta vez, a vida não imitou a arte. Na Bolívia, onde conseguiram lhe seguir os passos e se concluiu a caçada, ele foi, apenas, um homem mortal a se mover num mundo  injusto, hostil e adverso.
 

domingo, 20 de junho de 2004

Cantiga para o Che

No Egito, uma longa composição musical de Rau Mohamed lamenta a sua morte. Na França, Collete Magny; na Itália, Elena Morandi; no Brasil, Sérgio Ricardo; na Espanha, Antonio Antiquera. Na América Latina, os melhores nomes da música, então chamada de protesto: Pablo Milanês, de Cuba; Daniel Viglietti, do Uruguai; Victor Jara, do Chile e uma infinidade de outros mais. As canções dizem de seus méritos e de seus ideais – América libre es la patria mia –, da semente que deixou e que nem o vento, nem a neve irão destruir. Ou expressam uma despedida ou afirmam que não morreu, pois cada guerrilla nueva lo hará sentirse vivir. Também falam desse espaço de planaltos e selvas por onde encaminhou seus passos e desses militares, da fúria dos poderosos que o seguiram até a sua morte da qual não haverá esquecimento. Algumas, são puro lamento, expresso na música e nas vozes; outras, querem ser alegria porque acreditam no valor da  herança que deixou. Quase nenhuma delas, salvo por aqueles que, se constituindo exceção, têm interesse pelo que acontece no Continente,  foi ouvida pelos brasileiros,  pois, sabidamente,  o Breasil dá as costas para a América Latina. Assim, somente trinta anos depois e porque um amigo, o Dr. Joaquim de Montezuma de Carvalho, insigne ensaísta português, me enviou cópia de um texto publicado em A nossa gente (Ano XXVII, número 1.112, de 2004) tomo conhecimento do disco Galicia Canta, de 1970, o primeiro a ser editado com poemas e música galega, proibidos na Espanha. Com a ajuda de Celso Emilio Ferreiro, cuja obra serviu de guia a muitos poetas galegos dos anos 60, um grupo de jovens artistas, que procuraram refúgio na Venezuela, realizaram um trabalho de resgate dessas composições. Entre as doze cantigas que compõem o disco, hoje uma raridade, a “Pandeirada ao Che”, tem música de Xulio Formoso, numa interpretação em que está presente o toque do pandeiro de Celso Emilio Ferreiro, para o poema de Farruco Sesto Novás.
            Nascido em Vigo, cidade da Galícia, na Espanha, Farruco Sesto Novás emigrou, em 1943, com a família, para a Venezuela onde se formou em Arquitetura e onde se tornou um dos seus mais destacados profissionais. Embora esteja profundamente arraigado no seu país de adoção, conserva o galego como língua literária. Seus livros foram publicados em Caracas, geralmente em edições de reduzida tiragem. Da estrela e da fouce (1967) foram somente duzentos exemplares. A ele se seguiram Por unha mulher (1976), Porta Aberta (1976), Poema de amor a Rosalia (1985). No poema “Pandeirada ao Che”, Farruco Sesto Novás, militante de esquerda, se prende não à figura do Che, mas à mensagem de seu ideal revolucionário. Usando  um tema que parece ser caro aos poetas da Galícia, o vento, o  incorpora ao ideal do guerrilheiro que se quer livre e desimpedido para ir e vir e assim  poder se espalhar. Um vento que é como uma estrela, como uma foice, que nada imobiliza e que nada, nem mesmo a morte, detém. Um vento pleno de vontade de queimar e de transformar; um vento que muda em rosas o sangue que o antecede, que abate os inimigos, que afugenta as sombras, dando lugar ao amanhecer. Um vento de lua nova que é luz do dia. E que, assim, invencível, tem um nome. A voz do poeta, dirigindo-se ao guerrilheiro, o diz: um vento que leva o teu nome Che. Verso que é entremeado aos demais do poema e se repete sete vezes, formulando a certeza de que haverá mudanças e que elas partirão da figura revolucionária do Che Guevara e de seus ideais.
            Uma cantiga, nesses idos de 1970, ainda a prenunciar futuros, ainda a presumir esperanças.

domingo, 13 de junho de 2004

A recusa do silêncio

            Hoje, Tomas Eloy Martinez é um dos importantes romancistas argentinos. Sua obra atravessou, o que não é muito freqüente em relação aos escritores da América Latina, as fronteiras do Brasil, em traduções que se sucederam: Santa Evita (1996), O romance de Perón (1998), O Vôo da Rainha (2002) e, anunciado para outubro deste ano, pela Companhia das Letras, El cantor de tangos. No entanto, talvez, poucos se lembrem de um texto seu, publicado no primeiro número de Versus, um jornal bimestral de reportagens, idéias e cultura, fundado por Marcos Faerman. Na capa, de Luiz Gê, tornado conhecido pela sua colaboração na revista O Balão,  criada pelos estudantes da USP, em oposição à censura instaurada pela Ditadura Militar, o desenho de um rosto. Dele, muito próximo, em desespero ou em prece ou algemadas, se alçam as mãos. Em tamanhos diversos, esse rosto se repete em branco e preto e, maior, em vermelho, mancha gritante e denunciadora, cujo significado se completa nos títulos das matérias. “Eu fui condenado à morte. (Confissões de um repórter argentino). Eu me condenei à morte. (Diário de um escritor peruano). Nós vivemos na morte. (A vida num hospital mineiro)”. A primeira delas foi assinada por Tomas Eloy Martinez que uma nota explica tratar-se de um jornalista argentino, conceituado, não somente por editar o “Suplemento Cultural” de La Opinión, como por seu livro La pasión según Trelew (1973), relato do massacre de dezesseis políticos, ocorrido numa base naval Argentina e, nesse ano, um dos livros mais vendidos. Já a violência que se instalara no país, explodia em todas as frentes, diz Jacobo Timerman no seu livro Prisioneiro sem nome, cela sem número (Rio de Janeiro, Codecri, 1982). Coexistiam, na Argentina: guerrilhas trotkistas urbanas e rurais; esquadrões da morte peronistas de direita; grupos terroristas armados pertencentes aos grandes sindicatos, para cuidar de questões sindicais; grupos paramilitares das Forças Armadas, dedicados à vingança de seus homens assassinados; grupos parapoliciais, tanto da esquerda quanto da direita, disputando a supremacia dentro das forças policiais federais e provincianas; e grupos terroristas de direitistas católicos, organizados por conspiradores opostos às propostas do Papa João XXIII de reconciliação com os padres liberais de esquerda, que buscavam aplicar – geralmente com um zelo anárquico – a tese ideológica da reaproximação entre a Igreja e os pobres. Uma situação dramaticamente caótica que tornou possível a um senador declarar, em discurso no Parlamento, Na Argentina, sabe-se quem mata, mas não quem morre.

Houve um momento, relata Jacobo Timerman, em que reunidos na sede do jornal La Opinión, para analisar a situação, um grupo de jornalistas políticos e trabalhistas decidiram que ainda havia esperanças e que precisavam, apenas, dar início à batalha de tudo explicar. Porém, houve, e em muito maior número, aqueles momentos em que se tornava claro ser impossível compactuar com a violência que agredia, indistintamente, induzindo a vasta maioria da população ao silêncio. Um silêncio que Tomas Eloy Martinez recusava. E, num país onde, em poucos anos, uma centena de jornalistas havia desaparecido, não foi uma surpresa ver seu nome encabeçando a lista das pessoas que, segundo a AAA (Alianza Anti-comunista Argentina) deveria deixar o país em 48 horas. Até então, continuara a trabalhar no jornal e a não dar importância às ameaças recebidas pelas chamadas telefônicas e pelos toques de campainha, no meio da noite, embora soubesse que elas eram um sinal inequívoco do pântano nacional da insegurança fatal em que, ele, tanto quanto seus compatriotas, se moviam. Contudo, ao tomar conhecimento de que dois sujeitos tinham interrogado o porteiro do edifício, onde morava, sobre os seus hábitos e outros haviam anotado as características de seu automóvel, decidiu levar a sério as intimidações e pedir ajuda a Jacobo Timerman, dono do La Opinión, que já o havia escondido durante uma semana, para deixar o país. No texto da Versus, tradução do que foi publicado em La Opinión, Tomas Eloy Martinez fala sobre o que ocorria na Argentina em 1974 e dos esforços que então fez para ficar no seu país e daquele que estava fazendo para voltar. Entretanto o que relata – as agressões reais e as ameaças constantes a estabelecer o medo no país, as perseguições, os assassinatos – ao isentá-lo da humilhante cumplicidade do silêncio, igualmente, sela a sua sorte: O homem que escreveu esta reportagem é um condenado à morte, consta uma nota que acompanha o seu texto.


Fora da Argentina, ainda que lhe digam, e ele o repete, não ser mais habitual ver pelas ruas o Ford Falcon em busca de suas presas, nem tantos cadáveres despedaçados, atirados nos depósitos de lixo e terem se tornado raras as ameaças de morte, o medo não o abandona porque reconhece que deixou de ser, como jornalista, testemunha dos fatos para se converter em protagonista. Então, o que escreve, também é a sua história.

domingo, 6 de junho de 2004

A emoção da manhã


Navegaciones y regresos foi publicado pela editora Losada de Buenos Aires em 1959. Na verdade, é o quarto livro das odes que Pablo Neruda começara a escrever em 1952 e que marcam o novo rumo de sua poesia: cantar as coisas simples para homens simples. Uma poesia didática, diz Emir Rodríguez Monegal (El viajero inmóvil, Buenos Aires, Losada, 1966), cujo fim é ensinar, mostrar, descrever. Nelas, Pablo Neruda canta o mundo que o rodeia e que, de alguma forma, o impressiona seja o ar, o fogo, o mar, o amor, a alegria, a claridade, os animais, as plantas, as coisas.

            “Oda a una mañana del Brasil”está entre aquelas que resultaram de uma vivência. Fruto das emoções de que foi impregnado diante de uma exuberante natureza tropical que, no poema de seis estrofes, se mostra nas cores e no movimento dos seres que a habitam. Nada mais prosaico do que o primeiro verso: Esta é uma manhã do Brasil. Na sua claridade, o Poeta se insere – Vivo dentro de um violento diamante, / toda a transparência / da terra / se materializou / sobre / minha testa  – como um ser especial com a marca na testa que o privilegia e num mundo mágico que é cercado pela floresta e iluminado. Mundo que mal esboça, nele inscrevendo, porém, a vida que emerge no crescimento das árvores, dos insetos, dos dias para se ampliar no universo imenso em que todas as cigarras que existem desde que existe o mundo, se unem para cantar. Apenas nas borboletas, se fixam os versos da terceira estrofe. Elas se movem no ar, nas flores, no nada: baile feito de cores que o Poeta, ingenuamente, enumera. Retorna ao ciclo da vida, na quarta estrofe, outra vez ao verde, a lembrar a mata e na referência a um amplo rio / que se despenca / em plena solidão. Novamente, o movimento dos répteis, dos mil seres que trocam de planta, de água, de pântano, de toca, das aves atravessando o ar aos quais se acrescentam, na quinta estrofe, os sons que são um grito, um canto, / um vôo, uma cascata.

            O meio-dia chega, a luz se espalha e tudo / fica imóvel. Já não é mais, somente, o Poeta a se saber dentro de um violento diamante, impressão que sente diante dessa vibrante e imensa luz, mas, no tempo que se detém e em que tudo, a terra, o céu, a água entra na sua caixa de diamante. Como um círculo no qual se encerra um universo, contido nos pequenos seres e nas suas vozes, na correnteza do rio, na luz.

            E a metáfora (cristal verde do mundo para significar floresta; voz de mel, de sal, de serraria, de violino delirante para o canto das cigarras). E as comparações (se estende / a luz como se tivess e /nascido em novo rio / que corresse e cantasse enchendo o universo, ampla é a claridade como uma nave / do céu, vitoriosa). São recursos que, assim como esse uso do adjetivo em combinações inusuais – violino delirante, meio-dia sossegado, aves abrasadoras, violento diamante – ou o seu acúmulo diante de um substantivo (voadoras, sucessivas e remotas para borboletas) se alternam com a simplicidade inscrita em outros versos, para transmitir a emoção da beleza. Para o Poeta ela é essencial e ao afirmá-la e ao descrevê-la a deseja para todos.

 Ao partir sempre de uma experiência concreta que deseja compartilhar, o ciclo das odes, com versos que expressam a crença na vida e a confiança no futuro, é um dos mais ricos e mais pessoais do Poeta. Pablo Neruda, para quem as formas e as cores e os perfumes e os sons que procura apreender são sempre plenos de significados, nessa “Oda a una mañana del Brasil”, se deixa, apenas, maravilhar.