domingo, 26 de outubro de 2003

As invenções do dizer 4



Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. No relato, se pontilham as hesitações expressas pela conjunção alternativa  que diluem as certezas dos homens da Conquista.
           

            No seu livro La novelística de Carlos Droguett (Madrid, Playor, 1983), Francisco A. Lomelí, no capítulo dedicado a El hombre que trasladaba las ciudades, diz que o escritor chileno, nesse livro, desenvolve duas correntes simbólicas: o significado da Conquista da América ibérica e a psique contraditória de Juan Núñez de Prado que, no romance, a representa, encarnando os sonhos desmedidos e a crueldade dos conquistadores.

            Lembranças, ações presentes, sonhos, impressões num todo movido ao ritmo das paixões a se expressar na voz de vários narradores que se incrustam nesse mundo caótico dos primeiros tempos do Continente, feito, sobretudo, de morte e de destruição. Daí, esse constante oscilar entre uma idéia e outra, entre um sentir e outro, entre uma ação e outra.

            Juan Núñez de Prado se vê diante das armas apontadas para ele, para protegê-lo ou para guardá-lo ou para matá-lo.  Seu olhar para os capitães, no desejo de que entendam que não estava nem a troçar nem a ameaçar, pode ser inocente ou aquoso. E seus atos, questionados pelo capelão por ter sido cruel ou injusto. Igualmente, seus capitães e seus frades – no fazer e desfazer da cidade – se submetem ao cambiante das coisas e das situações: Vasquez, a espada agarrada na mão, desejoso de se enfurecer em dois minutos para sair correndo atrás dos índios ou dos prisioneiros atados ou dos móveis antes de que os matassem ou amarrassem ou queimassem. Humarán, olhando os móveis quebrados ou novos, amontoados na rua como se não lhe interessassem em absoluto nem desejasse compra-los, desprezá-los ou despedaçá-los com as patas dos cavalos ou a ponta da espada [...]. O padre Carvajal a gritar friamente, como descobrindo uma destemperança, uma falta de cavalheirismo ou uma armadilha no trato que lhe era devido. E os soldados e os índios, por sua vez, sofrem a sina dos mais fracos e indefesos. Querendo ficar na casa, na cidade construída, eles, porém, chegam ou partem; ausentes, desaparecem os seus gritos de protesto ou explicação; adormecidos, o padre Carvajal lhes descobre uma febre ou um terror na escuridão; diante da ordem que não querem cumprir, deixam ver os olhos aterrorizados ou fatigados. Por vezes, são individualizados: um deles tem umas horríveis mãos de cigano ou aventureiro ou de bandido; outro, barba de berbere ou marroquino ou mudéjar ou turco; e  o que parecia zangado ou defraudado;  ainda,  o que respirava com cansaço ou com novo medo.  Este medo que é constante entre os índios: continuamente, bestas de carga, a levar nas costas os pedaços da cidade, há o que esmagado pela roupa ou pelo medo ou pela escuridão, ria sarcástico ou chorava de terror ou estranheza.        

             E no cenário das relações degradadas, estabelecidas com a chegada dos ibéricos, elas se expressam até mesmo pelo que é inanimado: viu brilhar os pés da cadeira na escuridão e caminhou até ela, a levantou e viu que havia outra, outra mais, todas em fila, colocadas de pé ou viradas, viradas pelo terror ou lufada de vento, pela urgência do terror ou da lufada de vento.

            Breves e incisivas, disseminadas no texto, essas expressões estampam intenções e sentimentos que as alternativas possíveis fazem oscilar: inspirado estratagema estilístico para expressar o que afirma, o que nega, o que duvida. Pois, assim, sinuoso e incerto, tresloucado nas certezas e nas crueldades o caminho dos ibéricos no Continente foi, outra vez, criado por Carlos Droguett.

 

domingo, 19 de outubro de 2003

As invenções do dizer 3


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir das Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes .O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no  lugar. No relato, o uso das comparações cumpre o desígnio de reafirmar nos símiles a conturbada alma dos homens e os seus atos.

 

            Há o trajeto dos homens e seus animais, que se adentram no Continente em busca de bens antes nunca possuídos. E o caminho das paixões, percorrido na alma de cada um. E, assim emergem, profusamente ricos, no texto de El hombre que trasladaba las ciudades  os matizes  da afetividade nos quais se inscrevem as comparações. Disseminadas no romance, se constroem em seqüências que não apenas retratam o ser humano e o desvelam como, na sua diversidade, reafirmam a inconfundível habilidade estilística de Carlos Droguett. Tomadas a esmo ao longo das páginas do segundo capítulo, “El segundo traslado”, o exame de cinqüenta delas, introduzidas pelo comparativo como, revela que, muitas vezes, o primeiro elemento da comparação é um capitão, soldados,  padres ou índios.

            Nomeado, o capitão Guevara, Cortés e Pizarro e Anton de Luna. O capitão parecia mais tranquilo e mais despreocupado como o homem que faz uma coisa e pensa em outra. E Cortés e Pizarro, são aqueles que não conheceram, afirma Juan Núñez de Prado, estes tremores, este suave desejo de ser bom e sanguinário como uma necessidade, como uma fatalidade que te alimenta. Anton de Luna, já morto, é retirado da forca por um dos padres e levado até a cova recém cavada: rodou sobre si mesmo e caiu de frente como se estivesse embriagado demais[...]. Mencionado antes ou depois da sequência comparativa que, no entanto, a ele se refere, o padre Carvajal parecia muito cansado, lançando, agora, seu cansaço como uma febre feia, como uma desolação infinita que não lhe correspondia conservar.  Ou sentindo-se muito sozinho, caminhou até o quarto e dormitou com pressa e aquilo era como se recém viesse chegando, como se acabasse de descer do cavalo e cair desmaiado no chão [...].

            Referidos apenas como esses anônimos que se diluem no meio de tantos, os soldados e os índios. Entre eles, o soldado que não queria abandonar a cidade e agredido pelos outros que o empurraram, caminhou como bêbado, mas não estava bêbado, tinha sede, desejos de beber vinho e dormitar agora e esquecer os golpes[...]. Ou, os temerosos de sofrer demais, de não serem capazes de suportar um terrível sofrimento e como o selvagem no fundo da caverna ou a criança no fundo da escuridão, gritam para espantar seu temor [...]. E os índios escondidos nas madeiras e nas roupas olhavam com seus rostos inexpressivos como se formassem parte da solidão, como se os golpes que haviam despedaçado os troncos, afundados os tetos e os forros e espalhado as portas e as arcas os tivessem salpicado também [...].

            Nessa repetição que norteia a estrutura do romance e é presença constante na sua expressão lingüística, o segundo elemento da comparação traça perfis, estados de alma, sofrimentos. O que irá ocorrer, igualmente, nas seqüências em que o primeiro elemento é um animal cujo padecer, no entanto, é devido aos humanos: os bois arrastando as carretas à beira do abismo fugindo com os focinhos cheios de babas, os olhos exorbitados e tranqüilos como ignorantes e torpes, sem saber como enfrentar a morte  e a desolação. O cão que pertencera a dois soldados assassinados dentro de casa por não aceitarem partir com a cidade, corria e voltava,  a uivar como se desculpando, como desejando acender esse curto uivo para iluminar seus amos.

Com exceção de estrelas, comparadas a pedregulhos sujos; das espadas nuas, feias, velhas, como se enrugando ao sol;  do ouro que brilhava e fugia sob a água como peixes; do sangue que brilhava ao sol como bandeira;  da cidade que crescia sem pressa como as árvores que rodeavam a praça;  do incêndio que tal como a água passa encima e limpa toda sujeira, em que ambos elementos são reais, em  outras comparações em que  o primeiro elemento designa seres inanimados, o segundo os vai humanizar: o sol no alto do céu como que olha para o capitão, como que adivinha o seu frio; as luzes se inclinavam para o outro lado como se tivessem desejado deixá-lo a sós, discutindo suas traições e suas tramóias com o padre Cedrón.

Enleando-se em pleonasmos, acrescentando-se adjetivos, mesclando uns e outros na busca do universo intrínseco desses homens que lhe povoam a ficção, Carlos Droguett  se renova sempre.Como um mago das palavras faz alguém evocar, nesse árido mundo das conquistas o feminino ausente e, então, esparso em nomes, não, porém na paixão que, num crescendo de brasa-braseiro- incêndio faz viver e nesse viver, se diluir: ai Juan, as noites mornas de primavera, as noites rangentes do verão quando o céu reluz como uma espaçosa brasa e a boca de Amparo ou Consuelo ou Assunção ou Rosário ou Claudia ou Marcela Paz está ardente e olhas para ela na treva luminosa, ves seu  colo, seu peito ardente como uma brasa, como um braseiro, como um incêndio alvo que te incorpora e te dissolve, Juan[...]      

domingo, 12 de outubro de 2003

As invenções do dizer 2


El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Ações e gestos se cumprem outra vez e temores e dúvidas e certezas e sofrimentos. No relato, igualmente, expressões se repetem e significados se volvem mais intensos e de grande força poética.
           
            Em 1977, na Suíça, onde vivia como exilado político, Carlos Droguett disse a Francisco A. Lomeli, numa entrevista, que o revolucionário de um escritor é reescrever a História e falar de sua terra, contar a História que os historiadores não escreveram. Nos seus romances da Conquista, ele não inventa personagens nem episódios e em El hombre que trasladaba las ciudades, o terceiro da trilogia, o dilema de Juan Núñez de Prado – entregar a outro a cidade que fundara ou defendê-la como algo que lhe pertence –, registrado nas fontes históricas se adentra nos desejos e obsessões que o romance delineia: o turbilhão de sonhos e lutas em que ele e seus capitães e seus soldados se enredaram e o martírio que o perseguir esses sonhos representou. E se a paisagem com as árvores, as águas, os montes, o céu, as flores e com os animais, os cavalos, as ovelhas, as mulas, os cães e os pássaros se mostram, freqüentemente, plenos de vida, as relações entre os homens, por sua vez, se mostram, sempre cruéis. E submissas, sempre, aos renovados conflitos que no relato labiríntico do romance, muitas vezes, se reafirmam num dizer de vasto e engenhoso uso do pleonasmo.
            No segundo capítulo, “El segundo traslado”, eles são numerosos. Alguns, relacionados ao cenário em que se inscrevem as paixões dos homens onde o gado bramava, roçando as árvores e lançando sua gritaria lastimosa na direção do céu, esse céu cálido e cheio de fumaça e havia ruído, ruído de soldados que caminhavam sobre a madeira ruído de conversas, onde se escutavam vozes, queixas, murmúrios, rezas talvez, murmúrios misteriosos e fatais e viam-se flores, grandes vasos de flores, uma sacada inteira florida. Porém, principalmente, se referem ao estado dos prisioneiros (era tão velho, tão velho, estavam amarrados, amarrados firmemente, vira a cabeça triste, ligeiramente triste, do padre Carvajal (estava cansado, cansado), dos soldados (as cadeiras sem fundo, as cadeiras coxas como soldados, como pobres e tristes soldados que retornam da deserção, da traição, da forca [...]), dos feridos (tão quebrados, quebrados como as portas e janelas). Também, abundantes, os que se referem às relações entre os homens. Quando o capitão Miguel Ardiles, com seus soldados chega na cidade a meio desmanchar, Juan Núñez de Prado se espanta: viu as cordas que atavam os prisioneiros e viu Ardiles rir nervosamente, seus belos dentes agora carcomidos, seu belo riso franco e audaz agora atemorizado e incrédulo [...]. E a presença do verbo, repetido para duas realidades, ambas degradadas (homens amarrados, significando dissidências e um riso nervoso a indicar insegurança) e a presença do advérbio agora deixam mais cruel a transformação ocorrida, como cruel é o que diz: trago feridos e doentes, doentes e feridos te trago [...]. Palavras que repete, mudando-lhes o lugar na frase, a confirmar sofrimentos e a sua emoção que o narrador registra e que vai ao encontro da emoção de Juan Núñez de Prado: soluçava e ele soluçava[...]. Ou, quando um soldado, querendo defender o seu direito de ficar onde construíra a casa, enfrenta Juan Núñez de Prado ao constatar o possível anseio de procurar um apoio, no verbo agarrar: tens medo e te agarras a uma adaga, te agarras a teu medo para não rodar no abismo [...]. E, também, às convicções. Diz Vázquez ao padre Cedrón que o acusa de matar soldados: Não, padre, eu não os mato, os mata o vice rei e o rei também, e o vice rei é, além disso, sacerdote, os mata Deus e olha que Deus gosta da justiça molhada, espremo as folhas do antigo testamento e vejo que gotejam. Como gotejam tuas mãos, Vasquez, disse lentamente o padre, dando-lhe uma bofetada. O pleonasmo, nesse caso, se apresenta com o uso do verbo no fim da frase, enunciada por um interlocutor e a sua repetição na frase seguinte,  introduzida por uma comparação, pelo outro interlocutor e possuindo, então, sujeitos diferentes.
            Evidente, nestas seqüências, a capacidade inventiva do escritor chileno que se revela, e em profusão, no uso de pleonasmo atido a qualquer classe de palavra, seja ela um advérbio, um verbo, um pronome, uma preposição, um adjetivo ou um substantivo.
            Assim, nada mais que em relação a alguns substantivos e adjetivos, é fácil perceber que o pleonasmo se apresenta com dois substantivos justapostos (tinha a cara cheia de lágrimas e sangue, lágrimas e sangue do padre); um substantivo repetido, sendo, o segundo,  modificado por um adjetivo anteposto (o velho deve ser um malvado, um suave malvado); um adjetivo anteposto no primeiro deles e por dois, pospostos no segundo (com receosa ironia, uma ironia provisória e insegura); um substantivo e um adjetivo repetidos, tendo, entre eles, uma oração (é um homem bom, juro que é um homem bom); um substantivo e um adjetivo repetidos, mas para qualificar seres distintos (cavalos cansados, índios cansados, delgado sol, delgado medo), um adjetivo repetido, sendo, o segundo, modificado por um advérbio de modo (era evidente, era tristemente evidente); um adjetivo para completar o sentido de dois verbos distintos (despertavam nervosos e se limpavam nervosos do barro e do sangue).
            No romance em que se sucedem as noites e os dias no céu cambiante, em que o vento, a chuva, os ruídos, dos homens e dos animais, aparecem e tornam a aparecer, o uso do pleonasmo é, sem dúvida, parte desse repetir-se incessante, que o talento de Carlos Droguett torna cheio de  fascínio.
 

 

 

 

 

 

 

 

 

domingo, 5 de outubro de 2003

As invenções do dizer 1


Em 1973, a Noguer, de Barcelona, publicou El hombre que trasladaba las ciudades. Sem se afastar da verdade histórica, Carlos Droguett a refaz, insuflando-lhe vida e criando um dos mais belos e perfeitos romances da Literatura Hispano-americana. A partir da Crônicas de la Conquista de América, a narrativa se constrói sobre o destino da cidade de Barco, fundada por Juan Núñez de Prado, a mando do Vice-rei do Peru. Ameaçado pelos espanhóis do Chile que pretendem o território, quer salvá-la e, para isso, a muda de lugar três vezes. O segundo capítulo, “El segundo traslado”, narra a viagem que já se iniciara, a decisão de permanecer no lugar considerado bom, os primeiros trabalhos que a reconstroem e, ainda, a meio construir, a ânsia de, outra vez, mudá-la de lugar. Na maestria da estrutura narrativa, também, a de uma expressão lingüística em que as combinações entre adjetivos e advérbios são surpreendentes e inovadoras.



Carlos Droguett quis, na ficção, contar a grande aventura que foi fundar uma cidade e mudar quatro vezes o seu assento. O fato e os homens que o realizaram, ele os conheceu em documentos históricos, cujos dados não falseia e se encontram, ao longo do romance, inseridos num relato que deixa ver, nos seus meandros, a apurada técnica em que a expressão é de um magistral conhecimento do fazer literário.

Assim como Eça de Queiroz,  de quem foi um admirador, o seu texto nesse romance se enriquece de uma desmedida abundância de adjetivos como o demonstram os 2736 que usou nas cento e trinta e três páginas do primeiro capítulo (a edição de 1973, da Noguer, tem um total de 418 páginas). Uma presença, não somente quantitativa, mas grandemente marcada pela audácia, num múltiplo uso de recursos, seja quanto a seu lugar na frase, seja quanto à relação estabelecida com o substantivo a que se refere ou com outros elementos: verbos, conjunções, advérbios.

Considerando-se, apenas, os quase duzentos advérbios de modo (dos quais quarenta repetidos uma, duas, três, quatro, cinco, oito, nove vezes) que aparecem no segundo capítulo, “El segundo traslado”, é evidente que a sua presença obedece, modificando ou reforçando, o que lhe é próprio: indicar como se realiza a ação do verbo, o que explica o número de vezes com que alguns aparecem no texto: lentamente e suavemente (oito vezes), certamente e simplesmente (cinco vezes). Menos freqüente, os advérbios que acompanham os adjetivos. Ou nas expressões que definem o sentir dos homens da conquista – subitamente tristes, ligeiramente triste, verdadeiramente aterrorizado, terrivelmente cansado, atrozmente cansado, profundamente machucado, simplesmente doente, mortalmente sozinho, definitivamente enfastiado, completamente sozinhos, abandonados ou despertos. Ou, poucos, nas que mostram algo de um perfil: um rosto ligeiramente avermelhado, umas fontes ligeiramente grisalhas, uma barba sinistramente dura e enegrecida, um braço totalmente nu, branco e ligeiramente machucado; de um cenário em que se movem os homens e os animais: as árvores cresciam com renovada força espantosamente verdes e frondosas, um céu alto e sereno, excessivamente limpo, um céu horrivelmente azul. Cenário também, feito da cidade, completamente desfeita, do fosso terrivelmente profundo que a defende, do seu respirar morno imensamente fiel e confiante, de suas  casas pacificamente iluminadas na noite. E dos objetos que dela fazem parte: uma porta violentamente nova, umas cadeiras incrivelmente despojadas, desumanizadas, abandonadas, a alta torre da igreja, disforme, frágil, comovedoramente feia ou ingênua. Além desse uso em que o advérbio funciona duplamente, remetendo-se também ao substantivo, Carlos Droguett também se ampara de outros recursos que jogam com sentidos díspares e são imensamente ricos na expressão dos sucessos que são parte dessa história cruel e trágica em que a mudança da cidade se revela como obra de seres fabulosamente práticos, não de sonhadores, de homens de ação, não de lunáticos, pusilânimes, loucos e acovardados, como um espaço em que se mostram soldados teatralmente ensangüentados, mesas com os pés virados para cima grotescamente desonestas, frades endemoniadamente teimosos,  enforcados já estendidos se mostrando docemente apegados na escuridão, a ela se incorporando  parecendo limpamente tranqüilos. Ardiloso emprego do advérbio que, também, freqüentemente, se entrelaça ao pleonasmo – recurso sempre presente em El hombre que trasladaba las ciudades.


No relato do Padre Carvajal, que permaneceu na cidade quando da primeira mudança efetuada e se fazer cargo dos mortos que retira da forca para enterrar, surge, inesperada, uma seqüência que revela o luminoso de um momento lúgubre como o reverso de uma medalha ou um jogo de luz e sombra: Subi outra vez [as escadas da forca] e peguei Alonzo del Arco, não tive dificuldade alguma em atraí-lo na minha direção, como se viesse a meu encontro, seu corpo estava brando e maleável, muito leve e perfumado também, a flores frescas, flores vivas, dando a impressão de haver estado estendido sobre elas, pois tinha o corpo molhado até  as costas, só os seus braços pareciam excepcionalmente secos, demasiados secos, suspeitosamente secos. Se no primeiro advérbio a sua relação com o adjetivo não se mostra inovadora, nem o seu sentido causa dúvidas, ainda que posa parecer estranho, ou inverossímil, apenas os braços estarem secos quando o corpo inteiro se apresenta molhado, o segundo advérbio, com um significado que remete a uma particularidade própria do ser humano, indica se tratar, o que foi expresso pelo adjetivo, não somente apenas de uma exceção, mas de algo suspeito e que não será esclarecido pelo personagem que enuncia a seqüência, ele mesmo incapaz de entender o porquê de estar o corpo molhado e secos os braços.

Em outro momento do relato, discutem a propósito das mortes determinadas pelos capitães, Juan Núñez de Prado e o Padre Cedrón que, então, olha para o seu interlocutor com os olhos muito abertos e fixos, completamente frios e desleais, nada cristãos nem caridosos, tampouco zangados, olhos perfeitamente práticos e inteligentes e sadios. Neste caso, os dois advérbios comuns, não se afastam de um uso regido pelas normas e se valorizam na sua relação com o substantivo olhos, pelo número de adjetivos que o qualificam.

O romance é o único meio de compreender a História, diz Christiane Montalhetti, no seu livro Le Voyage, le monde et la bibliothèque. Carlos Droguett, não somente faz compreender esses momentos da Conquista da América, pelos ibéricos, em El hombre que trasladaba las ciudades, como recria, no inventivo jogo de combinar palavras, um mundo pleno de novos sentidos.